Parou em frente à porta, indeciso. Do lado de cá uma vida que o olha de soslaio. Do outro lado, o ângulo recto que indica o lado certo. Tinha-se-lhe entranhado nos poros aquela crença de não pertença, de contestação perpétua, de enfant terrible.
Uma vida em carrossel, a fugir do
establishment, mas que o mantinha no mesmo lugar sempre que acabava a corrida.
Colocou a mão na maçaneta,
deteve-se, retirou-a. Afinal, se a rodasse, se a porta se abrisse, teria que
mandar parar o carrossel e saltar para o caminho que o ângulo recto formara do
outro lado. Impossível.
Se ao menos uma voz lhe desse um
sinal … se lhe aparecesse uma espécie de anjo que varresse os demónios que com ele permaneciam…
se houvesse uma mão que conseguisse sustê-lo e fazê-lo acreditar que do outro lado
da porta a vida é mais fácil e os dias mais luminosos …
Ferviam-lhe os pensamentos. Não
podia nem queria fraquejar. Qual mar revolto, ondas de vai e vem, mergulhava e
vinha à tona, enrolado nas correntes que criava com o seu próprio corpo,
rebolava na areia e rapidamente retornava à água fria para de novo a desafiar.
A olhar para a porta, trémulo e
transpirado, com a cabeça a latejar, recuou no tempo. Ah, como gostaria de o
ter feito parar e ter tido disponibilidade para perceber muitos dos porquês.
Nunca quis. Não quis ouvir, não quis pensar, não quis falar. Vivia uma
realidade só sua. Paralela. Onde não havia espaço para assuntos sérios nem para
a reflexão. Apenas o fácil. Apenas o que lhe interessava em cada momento.
Lembra-se que tudo podia ter sido diferente. Ah, se tivesse dado ouvidos às
várias vozes de anjo, que dizia, o atormentavam … que não lhe davam sossego …
afinal, nas vozes existiam luzes. Luzes que teimavam em mostrar-lhe o caminho
certo. Preferiu não ouvir. Não ver. O breu.
Sentia os pés pregados no chão. Imóveis.
Reparou que estava estático num grande quadrado de mármore cinzento. As arestas
eram perfeitas. As juntas que o ligavam aos outros quadrados, embora
desgastadas, harmonizavam o chão. Não sabia se seria das solas dos sapatos ou
de um bocado de mau polimento no mármore, pareceu-lhe que não conseguia
deslizar daquele preciso bocado de chão, para outro mais brilhante e mais
polido. “Que raio!... Mais parece que estou colado neste quadrado!...” E
estava. Não com cola verdadeira, mas com aquela espécie de cola que torna tudo
estático, sem evolução, sem horizonte, sem verdade. Apenas ali. Dentro dos
quatro lados.
Com a mão cada vez mais trémula e
as pernas a fraquejar, a camisa ensopada pela transpiração e o cabelo em
desalinho, olhou de novo para a porta. Um barulho ao fundo lembrou-lhe o mar.
Não podia ser. Estava a quilómetros do oceano. Olhou para trás. Nada, a não ser
o corredor envolto na penumbra, tranquilo. Seria música? Não. Embora o carrossel da sua
vida girasse insistentemente em torno de si próprio, o que ouvia não era a sua
banda sonora. Um tremor de terra? O chão parecia fugir-lhe por baixo das solas
pregadas no chão, sem resvalarem um milímetro. Também não.
Uma aragem. A porta entreabriu-se.
Ainda que não tenha tido coragem para rodar a maçaneta, uma extrema curiosidade
tomou-o de assalto. Cada vez mais nervoso e transpirado perguntou-se quem? Como?
… A luz entrou como um flash que aos poucos deixou de o ofuscar e permitiu que visse
que do outro lado as linhas rectas do ângulo conviviam em harmonia, debruadas
por campos de flores multicor, onde não havia lugar a ervas daninhas e onde por
entre os espinhos que invariavelmente cresciam aqui ou ali, existia sempre a
capacidade de prosseguir caminho a bem e com bom senso. O mar também tinha
ondas, mas os mergulhos nas correntes eram ponderados, para evitar que alguém
se magoasse. O carrossel, esse não girava em torno de si próprio, mas era um
longo comboio que conduzia a imensos lugares, efectuando paragens sempre que
alguém queria entrar e iniciar a tal viagem que conduz além do quadrado de
mármore mal polido.
Ficou imóvel. Nem um passo para
cá. Nem um passo para lá. Ali. No entre portas.
“Olá, sou a tua voz de anjo. Chamaste
por mim?”…