sábado, 19 de agosto de 2023

Talvez a Voz do Anjo …

Parou em frente à porta, indeciso. Do lado de cá uma vida que o olha de soslaio. Do outro lado, o ângulo recto que indica o  lado certo. Tinha-se-lhe entranhado nos poros aquela crença de não pertença, de contestação perpétua, de enfant terrible.

Uma vida em carrossel, a fugir do establishment, mas que o mantinha no mesmo lugar sempre que acabava a corrida.

Colocou a mão na maçaneta, deteve-se, retirou-a. Afinal, se a rodasse, se a porta se abrisse, teria que mandar parar o carrossel e saltar para o caminho que o ângulo recto formara do outro lado.  Impossível.

Se ao menos uma voz lhe desse um sinal … se lhe aparecesse uma espécie de anjo que  varresse os demónios que com ele permaneciam… se houvesse uma mão que conseguisse sustê-lo e fazê-lo acreditar que do outro lado da porta a vida é mais fácil e os dias mais luminosos …

Ferviam-lhe os pensamentos. Não podia nem queria fraquejar. Qual mar revolto, ondas de vai e vem, mergulhava e vinha à tona, enrolado nas correntes que criava com o seu próprio corpo, rebolava na areia e rapidamente retornava à água fria para de novo a desafiar.

A olhar para a porta, trémulo e transpirado, com a cabeça a latejar, recuou no tempo. Ah, como gostaria de o ter feito parar e ter tido disponibilidade para perceber muitos dos porquês. Nunca quis. Não quis ouvir, não quis pensar, não quis falar. Vivia uma realidade só sua. Paralela. Onde não havia espaço para assuntos sérios nem para a reflexão. Apenas o fácil. Apenas o que lhe interessava em cada momento. Lembra-se que tudo podia ter sido diferente. Ah, se tivesse dado ouvidos às várias vozes de anjo, que dizia, o atormentavam … que não lhe davam sossego … afinal, nas vozes existiam luzes. Luzes que teimavam em mostrar-lhe o caminho certo. Preferiu não ouvir. Não ver. O breu.

Sentia os pés pregados no chão. Imóveis. Reparou que estava estático num grande quadrado de mármore cinzento. As arestas eram perfeitas. As juntas que o ligavam aos outros quadrados, embora desgastadas, harmonizavam o chão. Não sabia se seria das solas dos sapatos ou de um bocado de mau polimento no mármore, pareceu-lhe que não conseguia deslizar daquele preciso bocado de chão, para outro mais brilhante e mais polido. “Que raio!... Mais parece que estou colado neste quadrado!...” E estava. Não com cola verdadeira, mas com aquela espécie de cola que torna tudo estático, sem evolução, sem horizonte, sem verdade. Apenas ali. Dentro dos quatro lados.

Com a mão cada vez mais trémula e as pernas a fraquejar, a camisa ensopada pela transpiração e o cabelo em desalinho, olhou de novo para a porta. Um barulho ao fundo lembrou-lhe o mar. Não podia ser. Estava a quilómetros do oceano. Olhou para trás. Nada, a não ser o corredor envolto na penumbra, tranquilo.  Seria música? Não. Embora o carrossel da sua vida girasse insistentemente em torno de si próprio, o que ouvia não era a sua banda sonora. Um tremor de terra? O chão parecia fugir-lhe por baixo das solas pregadas no chão, sem resvalarem um milímetro. Também não.

Uma aragem. A porta entreabriu-se. Ainda que não tenha tido coragem para rodar a maçaneta, uma extrema curiosidade tomou-o de assalto. Cada vez mais nervoso e transpirado perguntou-se quem? Como? … A luz entrou como um flash que aos poucos deixou de o ofuscar e permitiu que visse que do outro lado as linhas rectas do ângulo conviviam em harmonia, debruadas por campos de flores multicor, onde não havia lugar a ervas daninhas e onde por entre os espinhos que invariavelmente cresciam aqui ou ali, existia sempre a capacidade de prosseguir caminho a bem e com bom senso. O mar também tinha ondas, mas os mergulhos nas correntes eram ponderados, para evitar que alguém se magoasse. O carrossel, esse não girava em torno de si próprio, mas era um longo comboio que conduzia a imensos lugares, efectuando paragens sempre que alguém queria entrar e iniciar a tal viagem que conduz além do quadrado de mármore mal polido.

Ficou imóvel. Nem um passo para cá. Nem um passo para lá. Ali. No entre portas.

“Olá, sou a tua voz de anjo. Chamaste por mim?”…


quinta-feira, 6 de maio de 2021

A Sã Loucura de Não se Ser Louco


- Ó Mãe, mas eu quero ficar mais um bocadinho a falar com a senhora … Ela é minha amiga e eu gosto das histórias que ela me conta …vá lá … só mais cinco minutos …  - Era sempre assim, Manelinho implorava à mãe que o deixasse ficar mais um pouco a falar com a sua amiga especial. Sentia uma afinidade e um carinho  tão grandes por aquele rosto marcado pelos anos, mas sereno, como se de família sua se tratasse. Mal sabia ele …

Ana, assim se chamava, era dona de uma sabedoria ímpar, experiente, consistente, simples. Teria cerca de sessenta anos quando a sua vida mudou o rumo, fruto de vicissitudes da vida, que julgou incontornáveis, procurando um caminho de paz interior, longe dos dias em montanha russa que sempre vivera, dos rostos do costume, das conversas banais e rotineiras, das inúmeras e graves discussões familiares, de uma pressão desmedida.

Sempre fora o timoneiro de uma barcaça várias vezes remendada, mas que nunca deixara naufragar, pela sua persistência, força e convicção. A vida moldou-a desde cedo, pois nunca se encaixara muito nos cânones vigentes, e embora pessoa de princípios e valores, de que não abdicava, fora sempre considerada uma espécie de “outsider” no seio da família tradicional e conservadora. Quis-se independente no final da adolescência, conciliando estudos e trabalho, procurando sempre o caminho a seguir em cada etapa, de acordo com a sua forma de estar e pensar. Nunca se negou a tarefas, sacrifícios, invenções, reinvenções, desde que fosse sua convicção que seria por aí o trilho. Fez família, amparou, ajudou, e por maiores que fossem as dificuldades, enfrentava-as com hercúlea força, para o bem de todos os seus.

Os anos passaram a correr, a maratona começava a pesar, os desafios do quotidiano, que sempre foram a sua mola, já não eram agarrados com o mesmo entusiasmo, o cansaço instalava-se.

Não fosse a sua habilidade para dar a volta interiormente, e teria caído numa depressão profunda ou desistido daquilo a que chamavam vida.

Tudo se agigantava em seu redor. As pessoas tinham mudado os comportamentos para pior, mostrando o que de mais ruim havia nelas. A intolerância crescia-lhes dentro. A manipulação e dissimulação aumentavam. A escala de valores, onde ainda existiam,  contava-se pelos dedos. Eram assim os seus dias. Enfrentando uns e outros, com aquela sua mania de querer ajudar, mas sofrendo desilusões sucessivas a cada virar de esquina, a cada degrau de existência.

Um dia, decidiu-se: “vou fazer-me de louca”. Aos loucos não se exige nada. Não se conta com eles, porque simplesmente são loucos. Não têm que dar resposta, ou dão uma ao calha. Não têm que privar só porque é socialmente correcto. São livres de rir, de saltar, de esbracejar, de falar sozinhos, de cantar, pois afinal … são loucos.

Assim determinada, fazendo-se passar por louca, procurou um local que a acolhesse e onde pudesse ter a “sua” paz. Fez a mala e partiu, pedindo que não a procurassem, prometendo que mais tarde faria chegar a informação sobre o seu paradeiro. Obviamente que tinha que se preparar. O certo é que passaram três anos sem que desse sinal de vida. Egoísmo seu? Talvez, mas o desgaste a que tinha chegado, não lhe dava sequer alento para reencontros familiares ou de amigos.  Até que um dia …

Na terra que tinha escolhido para viver, uma vila simpática, próximo do mar e onde era absolutamente desconhecida, começaram a chegar turistas à procura de tranquilidade e uns dias de lazer com qualidade. Tinha por hábito sentar-se na esplanada de um parque a ler, escrever ou simplesmente observar. Havia dias em que levava o cavalete, uma tela e tintas, e lá fazia uns rabiscos. Foi num desses dias que uma criança aí dos seus dois anos, rebiteza e de sorriso franco, como só as crianças conseguem ser, parou ao pé dela a olhar para a tela.

“Olá!”

“Olá! Como te chamas?”

“Manelinho” disse a criança meio atabalhoadamente. “O que estás a pintar? Eu também gosto de pintar. Deixas-me?”

Ante a aflição da mãe, Ana na sua voz pausada tranquilizou-a dizendo que não tinha mal nenhum a intromissão da criança e que se ela permitisse o deixava pintar um pouco. Enquanto Manelinho se entretinha, a conversa foi fluindo entre as duas. Percebeu-lhe um sotaque que não lhe era estranho e ficou perturbada. Alguém da sua zona. Não queria que a descobrissem… Virou-se para o Manelinho e começaram a pintar em conjunto. A criança estava encantada. Tagarela, foi-lhe percebendo o carácter e ficou rendida àquela minúscula pessoa. Passada uma hora despediam-se daquele encontro, que viria a repetir-se outras vezes.

Um dia, Ana levou um livro de contos e entretiveram-se com histórias. A mãe do menino, aproveitava para ela também pausar um pouco e preguiçar ao sol. “Sabes, tu podias ser a minha avó”, exclamou o Manelinho cheio de entusiasmo. “Eu? Porquê? Achas que sou parecida com a tua avó?” – “Não. Eu não tenho avó. Está louca, diz o pai. O que é louca, contas-me?”

Ana gelou. Atrofiou. Estonteou e pensou desmaiar. “O que é? Estás bem amiga?” – “Sim… já passa …”. Engoliu em seco, secou-se-lhe a garganta, o olhar turvou e uma lágrima escorreu.

Olhou para Manelinho, chamou a mãe e deu meia volta, pedindo desculpa por uma indisposição súbita. A cabeça fervia. O pensamento corria. A dúvida crescia.

Durante uma semana não foi ao parque, mas o desejo de ver aquela criança corroía-a. Certamente já teriam acabado as férias e teriam regressado à terra, que bem podia ser a sua…

Enganou-se. Mal se aproximou do seu canto, já uma voz corria ao seu encontro de braços abertos. “Afinal vieste! Estás melhor? Que te aconteceu? Queria ver-te! Quero pintar ou ouvir histórias.” Não havia tela nem livro. O seu coração palpitava. Transpirava. Fez um esforço, respirou fundo e lá prosseguiu. “Olá meu querido! Olha, coisas de gente velha … tive uma má disposição, mas já passou. Hoje não trouxe nada, pois pensei que já tinhas acabado as férias com a mamã”.  Sofia, a mãe, disse que tinha decidido ficar mais uns dias. Que precisava estar longe e que à distância lhe era possível trabalhar e acompanhar o Manelinho. Como a compreendi … Mas não fiz perguntas. Nem queria respostas … apenas aquele momento.  Mas Sofia insistiu em falar de si, da vida… Ana mal conseguiu manter a compostura e não se denunciar. Sofia, era sua nora, e Manelinho seu neto … aquele anjo palrador, curioso, cheio de entusiasmo, era sangue do seu sangue … como calar? Como lidar com a situação? Não podia falar, ou talvez sim… afinal estava louca, e os loucos são isso mesmo …loucos ...


quinta-feira, 29 de abril de 2021

O Vazio de um Umbigo

 

Como me soube bem aquela tarde de Outono… Há imenso tempo que tinha programado a visita, mas as impossibilidades de agenda iam adiando uma conversa já de si atrasada. A nossa amizade é pura como só as amizades de infância o sabem ser. Crescemos a brincar na rua, a jogar ao berlinde, a andar de bicicleta, mais tarde descobrimos o gosto em comum pelas artes, pelas diversas culturas, pelas viagens sem destino marcado, até que as nossas vidas profissionais nos separaram geograficamente e embora perto no coração, a distância física era significativa.

Depois de muito combinarmos e descombinarmos, chegou enfim o dia em que pudemos tagarelar sem fim, rir, chorar, mas acima de tudo celebrar o facto de estarmos vivas e de saúde.

A Mané escolheu um local lindo para tomarmos um chá acompanhado de uns biscoitos caseiros, que faziam a delícia de qualquer mortal. Uma imensa janela abria-se sobre o jardim em degraus, deixando entrar o sol que nos aquecia a alma e a conversa. Achei-a abatida, pálida, com algumas rugas a querer espreitar naquele rosto de pele clara. Os olhos tinham o brilho de sempre e a mesma expressão sincera. A gargalhada não tão solta, continuava a ser contagiante. De facto os anos iam passando por nós e nós pela vida, e era inevitável que as marcas não fossem visíveis.

- Estou tão feliz, amiga! Que saudades imensas de estar contigo, de partilhar conversas, da nossa cumplicidade… Sabes que falarmos ao telefone ou por mensagem não é a mesma coisa. Gosto das tuas interpelações e de quando me abanas nos assuntos. Tem sido tão difícil superar esta fase da minha vida…

- Mané, sabes que comigo não há evasivas. Que a confiança que temos uma na outra não é de ontem e que sempre estive aqui para te ouvir. De facto, não é de todo a mesma coisa. Gosto de falar contigo e percebes que te leio os traços, as expressões, os silêncios e os altos mais nervosos. Sei-te de cor, como canta o Paulo Gonzo. Por isso estava tão preocupada contigo e com os sucessivos adiamentos do nosso encontro. Mas pronto, chegou o dia e estou muito contente, apesar de preocupada.

De facto a Mané, estava a passar um mau bocado. Era uma pessoa com um êxito profissional incrível, fruto de muito trabalho, mas tinha-se envolvido sentimentalmente com a pessoa errada. Alguém com uma dualidade doentia, que prosseguia vários caminhos em simultâneo, acabando por perder-se nos seus próprios labirintos e usando a arrogância e a prepotência como arma de defesa, para se escudar das mil inseguranças que tinha. Kevin era um escritor já com algum reconhecimento, bem falante e charmoso. Aparentemente resolvido, parecia emanar um super à vontade acerca da vida e de si mesmo.  Vivia com descontracção, embora com muitas regras que se auto impunha, e que a Mané por vezes não conseguia compreender, por mais que se esforçasse. Os anos foram correndo, ela na sua vida extremamente ocupada, ele uma pessoa  bastante requisitada socialmente. Tentavam conjugar agendas e momentos com cedências quase sempre da Mané, já que Kevin de tão obcecado consigo próprio era praticamente inflexível.

- Mas como conseguiste viver estes anos todos nessa espécie de farça, amiga? Medo de estares sozinha? Falta de amigos por perto? Mané, tudo o que me tens estado a contar é mau demais…

- Eu sei minha querida Luísa. A situação só a mim dizia respeito. Aliás, a mim e ao Kevin, mas no momento que percebi que não era aquele o Kevin que transparecia para o lado de fora, já me tinha deixado enredar na teia de manipulação que tão bem sabe tecer com todos os que lhe chegam perto e que de alguma forma lhe despertam algum tipo de interesse, não enquanto pessoas, mas enquanto veículos para atingir determinados objectivos. Burra que fui ao pensar que aquele pedaço de homem falava com sinceridade e que era aquela boa alma que parecia ser.

- O que interessa é que conseguiste colocar um ponto final na história, machucada, claro está, mas estás inteira, continuas a ser aquela mulheraça gira, culta e amiga, e aqui estamos para o que der e vier. Não queria estar na tua pele nem por um bocadinho (apesar de o Kevin ser assim arraçado de George Clooney, mas tu da Amal teres apenas parecenças no cabelo…). Pelo que me contas, ele tanto quis enfatizar a sua pessoa, que se perdeu dele próprio e perdeu também o pé daquilo que era a sua base de sustentação, ou seja, dos seus leitores e seguidores. Isso é muito mau… Eu fui percebendo pelas publicações que ele fazia que existiam imensas incongruências entre o que ele dizia e o que praticava. Era assim tipo, faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço, porque esse patamar só a mim está reservado. Percebi que o umbigo dele ficou enorme e confesso-te que houve uma altura em que o bloqueei nas redes,  porque imaginava o teu sofrimento e não conseguia sequer lê-lo. Uma caixinha de surpresas o menino escritor …

- Foi mau Luísa. Muito mau. Quando percebi que ele estava a caminhar por uma rampa perigosa, de tão escorregadia, tentei fazer-lhe ver que existe algo mais além do umbigo, e que o tombo era apenas uma questão de tempo. Correu tão mal, que jurei a mim própria não voltar ao assunto e guardar para mim o prenúncio de uma realidade que estava à vista. Daí para cá, é o que sabes. Solidão, cada vez mais perdido de si no seu casulo de arrogância, e não sei como a vida do Kevin seguirá. Mas olha, também já nem estou muito preocupada com isso. Guardo na memória bons momentos, tenho a plena consciência de que tudo fiz para o ajudar a reencontrar o trilho, e é isto … Se ele um dia tirar as palas dos olhos, e deixar o deslumbramento de lado, talvez já seja tarde demais. Aliás, eu penso que neste momento já é tarde…. Ele saberá, ou não …

- Miúda, és uma mulher de fibra! Torce mas não quebra! Tenho tanto orgulho em ti … Que bom ter-te de volta. Já pensaste nos programas que vamos ter que fazer durante esta tua estadia por cá? Sabes que podes sempre contar comigo!

- Sei querida Lu, só a ti posso contar estas coisas. Ninguém mais me compreenderia, e aliás, não falaria destes assuntos com mais ninguém. Tardou, mas cheguei! Será que podemos brindar com chá?

- Porque não? Brinde a nós, à amizade e à vida, que apesar de nos pregar partidas desagradáveis, merece ser vivida! Olha lá para fora amiga! Estás a ver os raios de sol a incidir na janela? É sinal de que há sempre uma nova luz, uma nova oportunidade e um novo dia! Alcança a tua paz interior e vais ver que é tudo menos cinzento na tua cabeça. O Kevin… que faça o trabalho de casa se quiser, e pode ser que ainda reencontre também alguma luz…

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Maré


Eram oito da manhã e o meu desejo era que a noite caísse e os ponteiros indicassem que já eram horas de me deitar. Mais uma noite mal dormida, angustiante, num reboliço de lençóis e almofadas, onde a cabeça latejava.
Tinha já perdido a conta dos dias e das noites deste estar. Uma amargura o amanhecer, em dias que se sucediam, como os degraus que conduziam ao meu apartamento, encarrapitado num loft sem elevador. Não via esperança, nem tão pouco o sol nascente que entrava pela enorme janela do terraço, tinha o condão de me animar. Muito pelo contrário. Ante o vazio dos dias, suspirava pela noite, pelo breu e pelo momento em que julgava que tudo tinha parado do outro lado do meu mundo. Não conseguia motivar-me para saír de casa, e como qualquer pessoa comum, procurar a vida. Tinham sido três anos duros, de mudanças sistemáticas, de frustrações, de revolta e injustiça. Lido mal com a injustiça e com a falsidade. Talvez exagere na minha entrega e o meu grau de ingenuidade seja elevado. O certo é que acredito nas pessoas, na sua “aparente” disponibilidade e bondade, e acabo sempre por me desiludir.
Arranjei um copo com leite gelado e sentei-me no terraço. Em frente, o rio corria tranquilo, numa imagem  de espelho, azulado, saudável e intimista. Privilégio meu poder desfrutar a vista, sem que nada se interpusesse. Ao longe ouviam-se vozes. O dia tinha há muito começado a dar sinais de vida. Fui bebericando o leite, sem qualquer vontade e consegui enganar dois biscoitos que jaziam na caixa que a Marta me tinha trazido há quinze dias. A cabeça continuava pesada, de tal forma que os olhos me doiam por dentro. Recostei-me na espreguiçadeira e semi cerrei-os, numa tentativa de alívio. Um apito despertou-me daquele meio torpor. Era um navio a entrar na barra. Parecia querer cumprimentar a cidade. Detive-me a olhá-lo e a imaginar quem seriam os passageiros e ao que viriam. Turistas, curiosos, meros viajantes, solitários ou famílias, tudo era possível… Nunca tinha feito um cruzeiro, nem sequer era coisa que me fascinasse - já que era muita gente num mesmo espaço durante demasiado tempo, num convívio obrigatório -  mas dei comigo a pensar que nesta minha privação de um mundo exterior por opção própria, me começavam a faltar os rostos. Gosto de olhar para os rostos, estudá-los, percebê-los para além do visível. Talvez pelas decepções que fui apanhando, comecei a ter uma atitude mais radiológica em relação aos outros.
Dez horas… e ainda faltam tantas para anoitecer … Preciso saír de casa, pensei. Tenho que me libertar desta prisão de mim mesmo, a que me reduzi nos últimos tempos.
Tomei um duche, agarrei numa pequena mochila e desci os seis lances de escadas que separavam o meu refúgio do mundo real. Há seis meses que tinha ali “aterrado” e há quatro que não ia à rua. Fazia as compras on line e trabalhava à distância. Duas vezes por mês a minha prima Marta visitava-me e levava-me uns mimos. Era a única pessoa a quem dava acesso ao meu espaço físico e interior. Gostava de falar com ela. Ouvia-me, nas minhas palavras e nos meus silêncios, e respeitava-os. Tinha uma vida demasiado preenchida e muitas vezes me falou sobre a necessidade de abrandar, e no equilíbrio, na tentativa de me fazer pensar que a solução está sempre no bom senso, nos pratos da balança, que não devem pender em demasia para nenhum dos lados. 
Senti-me uma espécie de zombie. Fiquei atordoado com o barulho dos carros. Caminhei um pouco e depois de comprar o jornal, sentei-me numa esplanada para tomar um café e uma água. Como gostei do cheiro do papel de jornal… parecia ter vindo de outra época… passei os olhos pelas “gordas, guardei-o na mochila e voltei a caminhar, não sem antes me ter rendido novamente ao comprimido que me atenuava as dores de cabeça persistentes. Efeito psicológico ou placebo, era já um vício, apesar de saber que a toma contínua era prejudicial.
Dei comigo a entrar para o barco que fazia a ligação entre as duas margens. Talvez tivesse sido o apito matinal do navio a conduzir-me. Sentei-me no convés superior, a descoberto do sol. Soube-me bem o sol no rosto e na pele,  e a brisa que me afagava, com meiguice. Durante os vinte minutos de travessia fui-me detendo nos rostos, nos traços das minhas companhias de “viagem”. Curioso como num planeta tão povoado, todas as fisionomias e feições são diferentes. Jovens, menos jovens, gente de trabalho, apaixonados, solitários, escritores, pintores,  todos cabiam naquele barco, que mais não era do que uma amostra de mundo. Rostos cansados, sofridos, outros radiantes e alguns pensativos ou observadores. Tentei adivinhar ao que iam e na minha cabeça criei histórias para cada um daqueles que me despertou a atenção.
Já na outra margem telefonei a Marta. Talvez estivesse em casa e aceitasse almoçar.
No regresso senti-me cansado. A cabeça continuava a doer-me, mas o meu olhar e o meu ânimo eram diferentes. A Marta ficou contente por me ver e depois do almoço enquanto os miúdos se entretinham a atirar pedras para o leito do rio e a contar os barcos ancorados na marina, conversámos longamente sobre as minhas angústias existenciais e sobre a necessidade de saír da reclusão, encarar a vida e as pessoas e ter a coragem de abraçar o mundo tal como ele é, mas não perdendo nunca de vista os meus princípios e os meus propósitos. Dei-lhe razão. Fechar-me em mim trouxe-me não só solidão, como um alhear do que me rodeia, já que propositadamente cortei a ligação da tv e os gigas da net que tenho disponíveis, chegam apenas para trabalhar. O telefone há muito que está em modo avião e quase me serve apenas de relógio. De facto, existem momentos em que necessitamos ficar a sós connosco próprios, para percebermos qual o nosso lugar e o nosso papel no caminho da vida.
Anoiteceu. Não me entreguei à cama na ânsia de fechar os olhos, dormir e fazer que não existia. No terraço percebi que tinha um lugar único sobre a vida que se sentia lá fora. Sobre o rio que trazia consigo a boa energia das marés. A lua quase explodia de luz. Fiquei a olhá-la como nunca a tinha olhado. Quis que fosse cúmplice dos meus pensamentos e decisões. Já não me doía a cabeça e nem me lembrei dos comprimidos.
São oito da manhã… acordei leve e bem disposto. Está sol.  O navio apitou de novo. Vai de saída. Se descer as escadas rápido ainda consigo vê-lo saír da barra…
Nuno

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Saber Escutar o Tempo


Estavam nervosos, embora tentassem disfarçar e manter uma postura descontraída. Sabiam que o fim de semana não seria fácil, como fácil não é qualquer despedida de quem se quer bem.
- Já acabaste os telefonemas todos?
“Quase todos. Só me falta ligar à minha tia Maria, à Anabela, ao meu primo Manel, à Bibi e à irmã e…”
- Olha, e se deixasses os telefonemas para depois?... Afinal, estes são os nossos dois últimos dias antes de partires e desde que saímos de ainda não largaste o telefone cinco minutos… Não pensei passar o fim de semana com um telefone, mas sim contigo… - Francisco mostrava-se desgostoso e descontente. Apesar de compreender a partida de Luísa, tinha imensa dificuldade em aceitar a distância que os ia separar por tempo indeterminado. Era uma pessoa frágil e com algumas inseguranças, que tentava encobrir através do seu lado mais extrovertido.
“Francisco, tens que perceber. Quando terminar todas as chamadas, fico liberta para nós. É como se não existisse telefone. Não fiques aborrecido, vá lá…”  - Luísa era despachada, prática, não empatava e tinha uma sinceridade tamanho do mundo nos olhos.  Era uma pessoa de objectivos traçados, que tentava cumprir a todo o custo. Não admitia falhas consigo própria, e por isso era também muito exigente com as outras pessoas, sobretudo com as que lhe eram próximas.
- Não é uma questão de ficar ou não aborrecido. É sim questão de querer aproveitar todos os minutos que nos restam, para estar contigo, sem interferências. Luísa, sabes o quanto me custa a tua partida. Não quero falar disso agora, nem quero que te sintas mal por isso, mas sonhei este fim de semana sem telefones, desculpa.
“ Ok…. Vou ser breve e dentro de minutos sou toda tua, meu amor. Olha, queres ir marcando mesa no restaurante onde costumamos ir quando cá vimos? Assim não corremos o risco de ter que ficar na fila como na última vez. E se quiseres, podes encomendar o peixe também.”
Iria sentir falta da determinação e afirmação de Luísa. Muito lhe devia do patamar de estabilidade a que tinha chegado. Sempre tivera namoradas, umas giras, outras nem tanto, mas nenhuma conseguiu chegar tão dentro como Luísa. A sua voz tranquila e limpa,  penetrava-lhe os sentidos, deixando-o perfeitamente desarmado e acalmando-lhe a inquietude inata.  Passavam horas a conversar, e quanto mais tempo passavam juntos, mais dificuldade Francisco tinha em se separar. Não sendo psicóloga, foi Luísa que o estudou e o ajudou a caminhar numa fase de alguma turbulência emocional, em que duvidada de si, da vida e da sociedade. Revelou-lhe fraquezas, questões mal resolvidas, caminhos inseguros e ela, sempre paciente e terna, foi ouvindo, questionando, ajudando e trouxe à tona um novo Francisco, que agora, nervoso, sofria com a sua partida.
Tinha aceite uma bolsa fora do país, ganha por mérito num trabalho de pesquisa em que se envolveu profunda e apaixonadamente. Iria para Inglaterra dentro de dois dias, por tempo indeterminado. Também lhe era difícil partir sem Francisco, mas se na vida existem tempos para tudo, este era o tempo do grande desafio e enriquecimento pessoal. Afinal, o seu eu dizia-lhe para ir, pois só poderia estar bem com os outros, se estivesse bem consigo própria. E a bolsa ia fazer-lhe bem, seguramente. Sentia-se estagnada num trabalho e numa cidade que nada tinham que correspondesse aos desafios que ela própria se colocava. Apenas a prendia a relação com Francisco, que, chegada a este patamar, se era verdadeira, tinha forçosamente que sobreviver à distância. Afinal ir a Inglaterra faz-se com a mesma naturalidade com que se viaja do Algarve ao Minho e até demora menos tempo …
“ Ready. Terminei os telefonemas.” – Abraçou Francisco, que a acolheu apaixonado. Olhou-a nos olhos, beijou-a e com um afago doce e carinhoso apertou-a contra si, como se quisesse absorvê-la e impedir que descolasse dele.
- A mesa está marcada e o peixe encomendado, mas confesso que não saía daqui agora…
“Pois… eu também não… mas … é melhor irmos. Aliás, acho que estou a ficar com fome. Sim, apetece-me o peixe e um vinho branco gelado. Vamos!”
Teriam todo o fim de semana para se amar, para se olhar, para se acariciar. Ao serão observariam a lua e sob a sua luz perder-se-iam nas palavras, nos gestos, na respiração ofegante da paixão. Era deles a certeza da cumplicidade e da força da relação que viviam. Se Luísa era afirmativa e determinada, Francisco, aprendeu com ela que não existe conselheiro e professor melhor do que o tempo. É ele que determina o rumo e saber escutá-lo, no silêncio, é precioso.
Luísa e Francisco

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Alma


- Tão sossegada a olhar o horizonte… em que pensas Kica querida?
“Em ti…”
- Em mim, como? Bem ou mal?
“Não posso pensar mal. Não tenho razões para isso. Aliás, como poderia pensar algo menos bom de alguém que me tem feito tão bem?...”
Manel, envolveu-lhe o pescoço e os ombros com os seus braços e  beijou-a na testa. Olhou o luar, de um brilho intenso, e manteve-se assim. Kica recostou-se num afago meigo e doce.
- Posso saber onde é que eu andava então no teu pensamento?
“ Podes claro. Sabes, têm sido tão bons estes dias nesta paz de vista maravilhosa, que já tenho saudades…”
- Acredita que para mim tem sido uma bênção esta semana contigo. Por aqui ficaria mais uns tempos. Fazes-me tão bem, minha querida, mesmo quando estamos em desacordo ou refilas…
“Ahahah, olha lá o meu mau feitio … deves ser a primeira pessoa que me diz que a minha refilice lhe faz bem! Só tu mesmo …
- Falo a sério. A forma simples como colocas os assuntos, como equacionas a vida, tem-me feito pensar, e por isso me sinto tão bem ao teu lado. Já falámos bastantes vezes sobre as nossas diferenças de vida e de estar, mas no fundo, penso que toda a nossa relação se resume àquilo que é a simplicidade e a autenticidade. Gosto do teu despretensiosismo e da tua frontalidade, ainda que saibas que eu possa pensar de outra forma. Não receias dizer o que te vai na alma, e aprecio isso. Não gosto de pessoas que dizem sempre que sim, apenas para fazer jeito, mas que ficam a remoer. Nem mesmo daquelas que de tão ocas que são,  não conseguem ter uma opinião formada e deixam-se ir embaladas conforme o vento sopra. Para mim és um desafio que nunca tinha vivido. És uma luz que se acende quando o breu se instala e me desperta para o caminho.
“ Bem, com tantos elogios, fico sem jeito… Mas olha, eu sou assim, como vês. Não me vergo para fazer jeitos, tão pouco me calo se acho que devo intervir. Prezo a sinceridade e a honestidade acima de tudo e gosto das coisas simples da vida, como já percebeste. Estar aqui contigo, longe da civilização, a percorrer caminhos que nem imaginava,  comer em tascas de pura genuinidade, conversarmos horas a fio sentados no chão ou num muro qualquer, tem sido tudo aquilo que eu gosto e que eu sou.  Lido mal com frivolidades e aparências. Fujo delas a sete pés. Gosto de passar sem que reparem em mim, por forma a poder manter-me sempre quem sou em qualquer lugar e em qualquer ocasião. Podes até pensar que serei um pouco bicho-do-mato, o que possivelmente terá a sua pontinha de verdade, mas o certo é que ou estou bem, ou não estou. Cheguei àquele patamar em que não faço nada que vá contra mim.”
- É isso Kica querida. É isso que me encanta e fascina em ti. Seres tu. Como deves calcular, muitas pessoas têm cruzado a minha vida, mas sempre com um objectivo. Cansei-me dessa vida, dessa gente. Prefiro este recato, nosso, cúmplice, verdadeiro e simples, do que todos os outros caminhos que tenho pisado. Sei bem que dentro de dias voltaremos aos nossos mundos reais e que esta paz acabou. Mas enquanto a temos, e teremos mais vezes, se a vida o permitir, desfrutemos sem angústias e sem sofrermos por antecipação.
“ Não estou a sofrer por antecipação, meu amor. Aliás, estou muito, muito bem, como podes ver. Estava apenas a pensar que me fazes falta. Quando os rios e as pontes nos afastarem, o vazio vai aparecer, embora atenuado por tão boas memórias que vão viver comigo. Serão elas a dar-me alento para prosseguir os meus dias alucinadamente preenchidos. Já sinto falta desta paisagem, deste ar, deste cantinho tão maravilhosamente nosso. “
- Anda, vamos dar uma volta ao luar. Vou lá dentro buscar agasalhos.
Um gentleman. Simpático, educado, culto, divertido, temperamental e por vezes impaciente. Eis o homem por quem Cristina (Kica para Manel) se tinha apaixonado. Um amor sem explicação uniu-os, sabendo ambos de antemão quão difícil seria terem uma vida “normal” de casal. Talvez tivesse sido esse o desafio para ambos. Sobreviver a um relacionamento distante, gastos que estavam de relacionamentos moribundos e que nada lhes acrescentavam. Tinham as vidas profissionais separadas por muitos quilómetros, intensas e imprevisíveis, o que lhes dificultava a previsibilidade de momentos a dois. Aproveitavam todas as alturas em que havia algum vazio nas suas actividades para viverem dias só deles, longe de tudo e de todos, e onde só os dois existiam.
A noite estava luminosa. Uma aragem ligeira fazia lembrar que o Outono se aproximava. Caminharam por entre os vinhedos, juntos, na alma, no coração, e na paixão. O silêncio da encosta quase deixava ouvir a conversa das estrelas. Entre eles criaram histórias de pessoas improváveis, tão improváveis quanto eles,  e que mais tarde seriam transcritas. Entre o beijo, o afago e a gargalhada, tiveram a certeza de si. Almas gémeas? Não … não existem. Existe sim o gosto, a essência, a cumplicidade e um caminho de alma a percorrer…
Kica e Manel

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Imortal


A notícia chegou como uma bomba. Confesso que nos primeiros minutos não consegui articular uma única palavra. Tinha um nó enorme na garganta, a cabeça a latejar e um aperto no peito. Transpirava mas estava gelada e trémula.
- Que se passa Maria? Estás branca… Fala! Aconteceu alguma coisa? Estás de telefone na mão, hirta, como se fosses uma estátua… O que foi?
Não conseguia falar. Corri para o jardim e atirei-me para a piscina, ainda de pijama. Precisava sentir a água fria despertar-me daquele pesadelo e refrescar-me a cabeça ardente.
- Maria! Não estás bem! Fala, rapariga! Ana, Clara! Zé, Francisco, Rui! Cheguem aqui por favor! Passa-se algo grave. Não estou a perceber nada…
Depois de umas quantas braçadas e de mergulhar vezes sem conta, com todos em volta da piscina, cada um a gralhar para seu lado, saí e embrulhei-me na toalha que a Ana me estendia. “Maria, estás gelada. Toma, enxuga-te e vai mudar de roupa. Tem calma. Já percebi que se passa alguma coisa grave. Respira fundo. Queres que vá contigo lá dentro?” Não. Não queria ir lá dentro, nem queria mudar de roupa. Respirei fundo e sentei-me.
- Amigos, aconteceu algo terrível. Não estou a conseguir lidar com a situação, mas tenho que vos contar. É transversal a todos. Estamos todos no mesmo barco. É mau, muito mau …
As lágrimas começaram a caír numa torrente sem fim. A raiva, a revolta, o sentimento de injustiça apoderaram-se de mim.
- Então Maria… tem calma … Clara, trás um copo de chá frio com açúcar por favor.
Fui bebendo o chá e balbuciando palavras que ninguém entendia.
- Carro? Mas qual carro? Os carros estão todos à porta, excepto o do Paulo que deve ter passado a noite em casa da Lúcia de novo.
Ante o meu grito, fez-se silêncio … carro? Paulo? … “Aconteceu alguma coisa ao Paulo? Maria! Fala por favor!”
Com esforço e perfeitamente dessincronizada, lá consegui dizer que tinha recebido um telefonema da GNR a perguntar se conhecia um Paulo da Costa. Que esse Paulo tinha tido um acidente do qual resultou a morte imediata dele e da pessoa que seguia com ele, uma Lúcia Abreu. Que pediam que fosse ao hospital para fazer o reconhecimento dos corpos e avisasse os familiares.
Do silêncio geral, passou-se ao borburinho. Cada um a falar para seu lado. Que não, não era possível, como tinha sido, onde tinha sido, porque tinha sido, que o Paulo e a Lúcia não mereciam, que devia ser engano, Paulos da Costa pode haver muitos certamente …
- Gente, párem, por favor! É o nosso Paulo e a nossa Lúcia … Eu explico, mas calem-se um minuto. É mau demais e muito difícil para todos nós.
Era de facto muito doloroso. O nosso grupo de amigos vinha de há mais de dez anos. Todos os anos arrendávamos uma moradia grande nas férias e passávamos duas ou três semanas juntos. Éramos cúmplices, amigos, irmãos, e os namorados e namoradas que se iam juntando ao grupo, adquiriam o mesmo estatuto.  Era como se de repente nos sentíssemos amputados de uma parte de nós.
O Paulo despistou-se e foi embater numa árvore. Excesso de velocidade ao que o guarda me disse. De facto, sempre lhe conheci essa veia de adrenalina máxima ao conduzir. Gostava de velocidade e os carros que tinha, sempre potentes, desafiavam-no no asfalto. Muitas vezes lhe tínhamos chamado a atenção. Já não era nenhum garoto inconsciente e o prazer de voar pela estrada, tinha que ser refreado. Além disso, a sede de vida e o gosto com que desfrutava cada momento, por vezes tiravam-lhe o raciocínio lógico das situações. Vivia cada dia e cada momento como se fosse o último. Era um prazer imenso tê-lo como companhia. Nele não existia negativismo, e se a vida era para ser vivida, então que se cumprisse com o máximo prazer em cada momento. Amigo do seu amigo. Bem disposto. Jovial. Educação extrema e cultura apurada. Os olhos verdes rasgados faziam furor no sector feminino, que gostava de atiçar. Namoradas conheci-lhe muitas. Aliás, era-lhe difícil fixar-se numa por muito tempo, pois a forma como vivia, não era compatível com relações profundas e duradouras. Até que apareceu a Lúcia. Miúda pacata, que sabia gerir-lhe as emoções e os impulsos e por quem se apaixonou como nunca antes. Lúcia tinha casa própria não muito distante da nossa, e o Paulo por lá pernoitava sempre que ela conseguia conciliar três ou quatro dias de folga. Por isso não estranhávamos a sua ausência em casa de noite. Era uma relação já com mais de ano e meio, e apesar de Lúcia ser uma mulher para quem o valor da independência e da liberdade tinha um peso fundamental, o certo é que conseguiu através da sua noção de liberdade, gerir a liberdade do Paulo e torná-lo menos impulsivo e menos ávido de vida e de aventura. Gostava de os ver. Uma relação que todos testemunhámos, que de início nos pareceu estranha, mas que estava a dar frutos. “Contigo vou até ao fim do mundo”, dissera-lhe Paulo num dos nossos últimos jantares. Ironia do destino ….
O desespero era geral. Cabisbaixos, dirigimo-nos ao hospital, para aquele momento terrível da confirmação.
Regressados a casa, depois das formalidades, a única vontade que tínhamos era a de acabar com as férias. Não fosse a intervenção do Rui, e as malas eram feitas naquele momento.
- Meus queridos amigos, estamos todos muito tristes e com uma enorme sensação de vazio. Pode parecer a maior estupidez, neste momento, mas tenho vindo a pensar qual seria o desejo do Paulo no dia de hoje. De facto nos milhões de conversas que tivemos, a morte nunca foi tema. Estava muito longe dele, tal a paixão que tinha pela vida. Por isso, e se me colocar no pensamento dele, acredito que não quereria que estivéssemos tristes e derrotados como estamos. O Paulo está vivo nas nossas memórias, com a sua alegria, o seu charme, a sua bondade e a sua ponta de loucura sã, de que tanto gostamos e que tanto nos puxou para cima sempre que estivemos em momentos menos bons. Penso que a maior homenagem que poderemos fazer-lhe é celebrarmos a vida. A dele e a da Lúcia. Não haverá choros, não haverá coroas de flores a debitar um cheiro sinistro de funeral. Vamos organizar rapidamente um vídeo com os melhores momentos do Paulo e da Lúcia, vamos projectá-lo na quinta dele e será lá e desta forma que nos despediremos deles antes de os devolvermos à natureza. Estou certo de que ambas as famílias vão aceitar esta ideia. Afinal, somos um todo.
Anoiteceu. Sentada na varanda da casa da quinta do Paulo, olho para o rio, lá em baixo. Corre sereno. Um raio de lua ilumina-o. Sombras parecem dançar. Na minha cabeça ouço o Paulo cantar na sua voz sincopada e depois dar uma das suas gargalhadas “ passei ao largo de uma bela carreira de cantor” – tantas vezes assim foi …
As sombras continuam a dançar sob a luz do luar – há pessoas imortais!...