terça-feira, 25 de novembro de 2014

Uma Única Palavra


“ ….Minha senhora, - João inicia a sua explicação à mãe de Rui após alguma reflexão e análise-, a situação do seu filho Rui, merece-nos particular atenção, mas não quero de todo enganá-la ao dizer que poderei resolver tudo sozinho. Nem eu tenho essa capacidade, nem a família se pode alhear do problema.  O Rui é portador de um desvio de personalidade, que afecta directamente os seus comportamentos e a sua visão da realidade, transportando-o para factos e situações que só ele pode viver e só ele pode perceber, desvio esse que pode confundir-se por vezes com doença mental.

- Doutor, pode precisar o que diz? – a mãe pareceu inquietar-se. Seria ela capaz de lidar com essa realidade que se estava a anunciar? – Desvio de personalidade como? Doença mental? – Sim, o Rui por vezes tinha comportamentos estranhos, coisas que não percebia, conversas de outras realidades, mas daí a doença mental?.....

- D.Maria José, o Rui, entre outras coisas, é uma pessoa muito carente, que permaneceu demasiado tempo sozinho em criança, privado de um convívio normal e regular com os pais, a quem não foi proporcionado  crescer e desenvolver-se no seio de uma família dita “normal”, e que precisamente pela ausência sistemática de quem o poderia ter ajudado a trilhar caminhos, se defendeu na criação de uma realidade só sua, onde a fantasia foi ganhando lugar, e  a linha entre a realidade e essa fantasia, na sua mente ficou diluída. Sabe D.Maria José,  a falta da presença dos pais, a falta de carinho e de atenção em criança, pode conduzir muitas vezes à formação de jovens e adultos com este tipo de perturbações. E  estas manifestam-se das mais variadas formas – há quem  se manifeste pela rebeldia, quem enverede pelas drogas, pelo álcool, quem se defenda estudando muitíssimo e tente assim colmatar essa falta, numa ânsia de tudo querer saber e tudo querer abarcar, numa actividade cerebral permanente, e há quem fantasie e crie mentalmente realidades à sua maneira, e em função delas tente organizar a sua vida, ainda que sempre desfazadas, e que conduzem com frequência a situações de extrema complicação , pelo facto de não terem noção da realidade material, emocional, familiar, etc.

- Mas o doutor acha que é essa a situação do Rui? Que ele vive uma vida alheada de tudo? E acha que o facto de ter crescido muito “à sua custa” pode ter contribuído para isto?

- Exactamente. Sabe,  o desenvolvimento pessoal está directamente ligado aos afectos e à qualidade dos mesmos. Não à quantidade ou qualidade de brinquedos, jogos ou consolas… Muitas pessoas tentam colmatar a falta de afecto com bens materiais, mas ao fazê-lo, em vez  de estar a “consolar” a criança, está sim, a contribuír para um problema futuro relacionado com o sentimento de posse a todo o custo, muito presente na tal fuga ou disfarce da realidade.

…E a conversa foi fluindo, a explicação dada pelo Dr.João, médico psiquiatra de renome, veio abrir-lhe a mente para algo em que nunca tinha pensado a sério, tal era a velocidade dos seus dias, semanas e meses, entre táxis, aviões e escritórios, tentando suprir a todo o custo a falta do marido, ausente desde os três anos de idade de Rui. Afinal, todo o drama que estava a viver com Rui, se resumia a uma palavra – carinho.”

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Jogo da vida


“E mais uma vez  recomeçavam a jogar, não sem que ao Luís, restasse alguma esperança de pelo menos uma vez, conseguir ganhar.

Porquê? Porque é que naquele grupo de cinco miúdos, habituados a tardes inteiras de convívio, jogos e brincadeiras, era ele quem invariavelmente acabava por perder? Se se sentia um privilegiado por ser dotado de capacidades intelectuais que o faziam distinguir-se dos outros,  não fazia sentido nenhum, dia após dia, ter que conviver com aquele sentimento que o entristecia – perder um jogo.

Aninhas, a irmã mais nova, 7 anos acabadinhos de fazer, era perspicaz e atenta. Bastava uma pequena distracção de qualquer um dos irmãos, e já ela levava o jogo em avanço, o que geralmente gerava briga pela parte dos séniores.

Esta miúda vai longe – comentava o pai, estupefacto com a sua  capacidade de raciocínio rápido.  O facto é que Aninhas, menina furação, para quem as regras e as obrigatoriedades lectivas eram um desagrado, tinha uma capacidade invulgar quando posta em confronto com outros parceiros de brincadeiras e jogos.  E assim, ela brilhava, ela ia criando o seu mundo, a sua corte,  argumentando com os demais, firmando as suas convicções, e todos lhe ficavam rendidos.

Zeca, Maria e Afonso, trigémeos e irmãos do meio deste quinteto, divertiam-se na sua cumplicidade intrínseca, a aquecer os ânimos entre Luís e Aninhas.  Não fosse a mãe, a controlar à distância esses momentos de menor cordialidade, e o jogo acabava com as peças espalhadas, os cartões amarrotados e verdadeiras fúrias entre eles. Que fazer então, quando se tem filhos com temperamentos e características tão diferentes? Por vezes sentia-se perdida…  e lá ia pensando que cada pessoa é única, com suas virtudes e defeitos, que acabariam por se aceitar uns aos outros, e que a ela competia educar, dar regras, ensinar o caminho, mas teriam que ser os filhos, cada um à sua maneira a trilhá-lo. Afinal, no seu dia a dia, na sua profissão, era com isso que lidava: os pacientes que recebia no consultório, eram todos diferentes, e a ela apenas competia ajudar a tornarem-se pessoas melhores, a estarem bem consigo e com os outros, e aceitarem o mundo envolvente, independentemente da condição socio-económica, religião ou outros aspectos particulares.

Afinal, tudo na vida das pessoas serve para medir, tirar ilacções, orientar, e ajudar.  Todas são diferentes e como tal devem ser respeitadas. Era esse o discurso final que fazia aos seus 5 filhos no final de tais confrontos. Apenas três coisas devem ser comuns a todos: respeito, verdade, honestidade.

- Meninos, por hoje acabou o jogo! Horas de jantar!”

 

 

A Tela

…”E enquanto via a chama a crepitar na lareira, odulando, provocando reflexos de vários tons laranja, ora mais vivos, ora mais mortiços, num desafio imparável, recordava com alegria as tardes de inverno da sua juventude.
Lá longe, onde as notícias do mundo chegavam mais tarde, onde as tecnologias de informação como hoje se conhecem, eram uma miragem, onde o relacionamento interpessoal e a entreajuda eram o pilar mais fundamental da sociedade onde vivia.
Valores eram valores.... Respeito, amizade, sinceridade, palavras-chave de um dia a dia onde os escassos 500 habitantes da aldeia, fundamentavam o seu ser e o seu viver, mau grado as imensas dificuldades quotidianas, as condições deficitárias de sobrevivência, decorrentes de uma débil actividade económica da região, o frágil acesso a um ensino capaz que proporcionasse mais oportunidades, e satisfizesse a sua enorme vontade de tudo apreender, e tudo querer saber.
Tempos idos esses, onde o mínimo pormenor fazia a diferença, onde para confraternizar tudo era motivo, onde qualquer objecto era imaginado e transformado num qualquer alvo de necessidade latente.
Repentinamente, deteve-se na contemplação daquela chama, no conforto do seu lar actual, na cidade a que chamou sua, rodeada de pessoas cultas mas frias, com vida confortável mas egoístas, bem sucedidas mas calculistas, e para quem os valores do seu passado nada representavam.
Levantou-se, pegou na paleta e no pincel, dirigiu-se para o cavalete sempre presente, e com uma velocidade frenética começou a pintar com traços rápidos e incisivos, como que a querer espelhar naquela tela todos os contrastes da sua vida.”…

Caminhando ...

…“Com o caír da tarde, o caminho convidava à reflexão. As tonalidades das folhas espalhadas pelo chão, sombreadas pela ténue réstia de sol; o som calmo da água a correr no ribeiro; a velha árvore mais além, encerrando em si décadas de histórias passadas sob os seus ramos agora despidos; a pedra onde crianças e gentes menos jovens se sentam a descansar.
Tudo invariavelmente no mesmo lugar, no seio de uma beleza invulgar, propicia uma catadupa de pensamentos e sentimentos, que lhe assolam o ser.
Folhas são páginas de vida, que se desenrola mais ou menos colorida, mais ou menos sombreada; água a correr no ribeiro, o correr dos dias, ora calmos, ora tumultuosos; a árvore a sabedoria adquirida ao longo dos anos, espelhada em ramos diversos, sempre em crescimento e renovação; a pedra, a solidez de uma vida, o apoio, o amparo daqueles que são indubitavelmente parte integrante dessa vida.
Interrogações? Afirmações? Dúvidas? Certezas? Decisões? Indecisões? Emoções?
Tudo, num turbilhão, vagueou pela sua mente, pelo mais profundo do seu ser, e o caminho fez-se mais rápido, mas tranquilo; mais intenso, mas descansado; mais emotivo, mas vivo.”…

domingo, 27 de julho de 2014

CONTRASTES



Por esse Alentejo perdido, o antigo convive com o actual, servindo um mesmo objectivo.
Contraste de cores e materiais num dos recantos que constiui um museu vivo de antiguidades agrícolas.

PESPECTIVO-ME

"Porque Vivo
Mas tiram-me a vida;
Porque Sou
Mas não o querem;...
Porque Sinto
Mas são insensíveis;
Porque me Dou
Mas me usurpam;
Porque me Dedico
Mas me atropelam;
Porque me Foco
Mas querem turvar-me;
Porque Sorrio
Mas querem que chore;
Porque sou Franca
Mas dissimulam;
Porque Quero
Mas lançam a dúvida;
Porque Acredito
Mas levam a crença;
Porque Confio
Mas quebram a confiança;
E porque.... o Porque....
Terá sempre um Mas atrás..." (HP)