quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Maré


Eram oito da manhã e o meu desejo era que a noite caísse e os ponteiros indicassem que já eram horas de me deitar. Mais uma noite mal dormida, angustiante, num reboliço de lençóis e almofadas, onde a cabeça latejava.
Tinha já perdido a conta dos dias e das noites deste estar. Uma amargura o amanhecer, em dias que se sucediam, como os degraus que conduziam ao meu apartamento, encarrapitado num loft sem elevador. Não via esperança, nem tão pouco o sol nascente que entrava pela enorme janela do terraço, tinha o condão de me animar. Muito pelo contrário. Ante o vazio dos dias, suspirava pela noite, pelo breu e pelo momento em que julgava que tudo tinha parado do outro lado do meu mundo. Não conseguia motivar-me para saír de casa, e como qualquer pessoa comum, procurar a vida. Tinham sido três anos duros, de mudanças sistemáticas, de frustrações, de revolta e injustiça. Lido mal com a injustiça e com a falsidade. Talvez exagere na minha entrega e o meu grau de ingenuidade seja elevado. O certo é que acredito nas pessoas, na sua “aparente” disponibilidade e bondade, e acabo sempre por me desiludir.
Arranjei um copo com leite gelado e sentei-me no terraço. Em frente, o rio corria tranquilo, numa imagem  de espelho, azulado, saudável e intimista. Privilégio meu poder desfrutar a vista, sem que nada se interpusesse. Ao longe ouviam-se vozes. O dia tinha há muito começado a dar sinais de vida. Fui bebericando o leite, sem qualquer vontade e consegui enganar dois biscoitos que jaziam na caixa que a Marta me tinha trazido há quinze dias. A cabeça continuava pesada, de tal forma que os olhos me doiam por dentro. Recostei-me na espreguiçadeira e semi cerrei-os, numa tentativa de alívio. Um apito despertou-me daquele meio torpor. Era um navio a entrar na barra. Parecia querer cumprimentar a cidade. Detive-me a olhá-lo e a imaginar quem seriam os passageiros e ao que viriam. Turistas, curiosos, meros viajantes, solitários ou famílias, tudo era possível… Nunca tinha feito um cruzeiro, nem sequer era coisa que me fascinasse - já que era muita gente num mesmo espaço durante demasiado tempo, num convívio obrigatório -  mas dei comigo a pensar que nesta minha privação de um mundo exterior por opção própria, me começavam a faltar os rostos. Gosto de olhar para os rostos, estudá-los, percebê-los para além do visível. Talvez pelas decepções que fui apanhando, comecei a ter uma atitude mais radiológica em relação aos outros.
Dez horas… e ainda faltam tantas para anoitecer … Preciso saír de casa, pensei. Tenho que me libertar desta prisão de mim mesmo, a que me reduzi nos últimos tempos.
Tomei um duche, agarrei numa pequena mochila e desci os seis lances de escadas que separavam o meu refúgio do mundo real. Há seis meses que tinha ali “aterrado” e há quatro que não ia à rua. Fazia as compras on line e trabalhava à distância. Duas vezes por mês a minha prima Marta visitava-me e levava-me uns mimos. Era a única pessoa a quem dava acesso ao meu espaço físico e interior. Gostava de falar com ela. Ouvia-me, nas minhas palavras e nos meus silêncios, e respeitava-os. Tinha uma vida demasiado preenchida e muitas vezes me falou sobre a necessidade de abrandar, e no equilíbrio, na tentativa de me fazer pensar que a solução está sempre no bom senso, nos pratos da balança, que não devem pender em demasia para nenhum dos lados. 
Senti-me uma espécie de zombie. Fiquei atordoado com o barulho dos carros. Caminhei um pouco e depois de comprar o jornal, sentei-me numa esplanada para tomar um café e uma água. Como gostei do cheiro do papel de jornal… parecia ter vindo de outra época… passei os olhos pelas “gordas, guardei-o na mochila e voltei a caminhar, não sem antes me ter rendido novamente ao comprimido que me atenuava as dores de cabeça persistentes. Efeito psicológico ou placebo, era já um vício, apesar de saber que a toma contínua era prejudicial.
Dei comigo a entrar para o barco que fazia a ligação entre as duas margens. Talvez tivesse sido o apito matinal do navio a conduzir-me. Sentei-me no convés superior, a descoberto do sol. Soube-me bem o sol no rosto e na pele,  e a brisa que me afagava, com meiguice. Durante os vinte minutos de travessia fui-me detendo nos rostos, nos traços das minhas companhias de “viagem”. Curioso como num planeta tão povoado, todas as fisionomias e feições são diferentes. Jovens, menos jovens, gente de trabalho, apaixonados, solitários, escritores, pintores,  todos cabiam naquele barco, que mais não era do que uma amostra de mundo. Rostos cansados, sofridos, outros radiantes e alguns pensativos ou observadores. Tentei adivinhar ao que iam e na minha cabeça criei histórias para cada um daqueles que me despertou a atenção.
Já na outra margem telefonei a Marta. Talvez estivesse em casa e aceitasse almoçar.
No regresso senti-me cansado. A cabeça continuava a doer-me, mas o meu olhar e o meu ânimo eram diferentes. A Marta ficou contente por me ver e depois do almoço enquanto os miúdos se entretinham a atirar pedras para o leito do rio e a contar os barcos ancorados na marina, conversámos longamente sobre as minhas angústias existenciais e sobre a necessidade de saír da reclusão, encarar a vida e as pessoas e ter a coragem de abraçar o mundo tal como ele é, mas não perdendo nunca de vista os meus princípios e os meus propósitos. Dei-lhe razão. Fechar-me em mim trouxe-me não só solidão, como um alhear do que me rodeia, já que propositadamente cortei a ligação da tv e os gigas da net que tenho disponíveis, chegam apenas para trabalhar. O telefone há muito que está em modo avião e quase me serve apenas de relógio. De facto, existem momentos em que necessitamos ficar a sós connosco próprios, para percebermos qual o nosso lugar e o nosso papel no caminho da vida.
Anoiteceu. Não me entreguei à cama na ânsia de fechar os olhos, dormir e fazer que não existia. No terraço percebi que tinha um lugar único sobre a vida que se sentia lá fora. Sobre o rio que trazia consigo a boa energia das marés. A lua quase explodia de luz. Fiquei a olhá-la como nunca a tinha olhado. Quis que fosse cúmplice dos meus pensamentos e decisões. Já não me doía a cabeça e nem me lembrei dos comprimidos.
São oito da manhã… acordei leve e bem disposto. Está sol.  O navio apitou de novo. Vai de saída. Se descer as escadas rápido ainda consigo vê-lo saír da barra…
Nuno

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Saber Escutar o Tempo


Estavam nervosos, embora tentassem disfarçar e manter uma postura descontraída. Sabiam que o fim de semana não seria fácil, como fácil não é qualquer despedida de quem se quer bem.
- Já acabaste os telefonemas todos?
“Quase todos. Só me falta ligar à minha tia Maria, à Anabela, ao meu primo Manel, à Bibi e à irmã e…”
- Olha, e se deixasses os telefonemas para depois?... Afinal, estes são os nossos dois últimos dias antes de partires e desde que saímos de ainda não largaste o telefone cinco minutos… Não pensei passar o fim de semana com um telefone, mas sim contigo… - Francisco mostrava-se desgostoso e descontente. Apesar de compreender a partida de Luísa, tinha imensa dificuldade em aceitar a distância que os ia separar por tempo indeterminado. Era uma pessoa frágil e com algumas inseguranças, que tentava encobrir através do seu lado mais extrovertido.
“Francisco, tens que perceber. Quando terminar todas as chamadas, fico liberta para nós. É como se não existisse telefone. Não fiques aborrecido, vá lá…”  - Luísa era despachada, prática, não empatava e tinha uma sinceridade tamanho do mundo nos olhos.  Era uma pessoa de objectivos traçados, que tentava cumprir a todo o custo. Não admitia falhas consigo própria, e por isso era também muito exigente com as outras pessoas, sobretudo com as que lhe eram próximas.
- Não é uma questão de ficar ou não aborrecido. É sim questão de querer aproveitar todos os minutos que nos restam, para estar contigo, sem interferências. Luísa, sabes o quanto me custa a tua partida. Não quero falar disso agora, nem quero que te sintas mal por isso, mas sonhei este fim de semana sem telefones, desculpa.
“ Ok…. Vou ser breve e dentro de minutos sou toda tua, meu amor. Olha, queres ir marcando mesa no restaurante onde costumamos ir quando cá vimos? Assim não corremos o risco de ter que ficar na fila como na última vez. E se quiseres, podes encomendar o peixe também.”
Iria sentir falta da determinação e afirmação de Luísa. Muito lhe devia do patamar de estabilidade a que tinha chegado. Sempre tivera namoradas, umas giras, outras nem tanto, mas nenhuma conseguiu chegar tão dentro como Luísa. A sua voz tranquila e limpa,  penetrava-lhe os sentidos, deixando-o perfeitamente desarmado e acalmando-lhe a inquietude inata.  Passavam horas a conversar, e quanto mais tempo passavam juntos, mais dificuldade Francisco tinha em se separar. Não sendo psicóloga, foi Luísa que o estudou e o ajudou a caminhar numa fase de alguma turbulência emocional, em que duvidada de si, da vida e da sociedade. Revelou-lhe fraquezas, questões mal resolvidas, caminhos inseguros e ela, sempre paciente e terna, foi ouvindo, questionando, ajudando e trouxe à tona um novo Francisco, que agora, nervoso, sofria com a sua partida.
Tinha aceite uma bolsa fora do país, ganha por mérito num trabalho de pesquisa em que se envolveu profunda e apaixonadamente. Iria para Inglaterra dentro de dois dias, por tempo indeterminado. Também lhe era difícil partir sem Francisco, mas se na vida existem tempos para tudo, este era o tempo do grande desafio e enriquecimento pessoal. Afinal, o seu eu dizia-lhe para ir, pois só poderia estar bem com os outros, se estivesse bem consigo própria. E a bolsa ia fazer-lhe bem, seguramente. Sentia-se estagnada num trabalho e numa cidade que nada tinham que correspondesse aos desafios que ela própria se colocava. Apenas a prendia a relação com Francisco, que, chegada a este patamar, se era verdadeira, tinha forçosamente que sobreviver à distância. Afinal ir a Inglaterra faz-se com a mesma naturalidade com que se viaja do Algarve ao Minho e até demora menos tempo …
“ Ready. Terminei os telefonemas.” – Abraçou Francisco, que a acolheu apaixonado. Olhou-a nos olhos, beijou-a e com um afago doce e carinhoso apertou-a contra si, como se quisesse absorvê-la e impedir que descolasse dele.
- A mesa está marcada e o peixe encomendado, mas confesso que não saía daqui agora…
“Pois… eu também não… mas … é melhor irmos. Aliás, acho que estou a ficar com fome. Sim, apetece-me o peixe e um vinho branco gelado. Vamos!”
Teriam todo o fim de semana para se amar, para se olhar, para se acariciar. Ao serão observariam a lua e sob a sua luz perder-se-iam nas palavras, nos gestos, na respiração ofegante da paixão. Era deles a certeza da cumplicidade e da força da relação que viviam. Se Luísa era afirmativa e determinada, Francisco, aprendeu com ela que não existe conselheiro e professor melhor do que o tempo. É ele que determina o rumo e saber escutá-lo, no silêncio, é precioso.
Luísa e Francisco