E mais uma vez “falámos” entre
nós, um diálogo só por nós entendido. Tinha passado algum tempo sobre a última
conversa, e tantas coisas tinham acontecido entretanto…. O Mundo, tal como o
conhecíamos tinha mudado, a uma velocidade estonteante, e os paradigmas da
vida, começaram a mudar também. Vieram atentados, crises económicas e sociais,
insegurança, instabilidade, dificuldades várias, sonhos desfeitos, interesses
obscuros a estender tentáculos que abraçam a Terra, e um renascer forçado mas
necessário para uma grande parte da população mundial.
Fariam agora sentido as nossas
primeiras conversas? Tu, recorte, estás impotente para me responder. Mas eu,
que contigo falo, e contigo partilho um tempo, creio que sim. Fazem sentido.
Afinal, era o tempo da construção, do chamado “futuro”, do encontro, do querer,
do amar. A cada vez que te leio, mais tenho a convicção de que tudo está aí. E
por isso te guardo, onde só eu sei que existes, num egoísmo puro, mas que me
apazigua a ânsia e me devolve a força. Estranho? Chamem-lhe o que quiserem.
Para mim és importante. És testemunho de vida, vontades e confidências, que de
tão veladas, ninguém iria entender. Sim, um papel amarelecido, com letras
impressas, guardado entre as páginas de um caderno…
Sabes, quando naqueles serões à
lareira “falávamos” através de quadras soltas, em como a vida era estranha?...E
nem adivinhávamos sequer o que viria a acontecer…. E quando “esboçávamos” a
perfeição dos sentimentos e dos seres humanos?... Apenas esboço, de facto… hoje não passa tudo de um esboço. Perguntas-me
se isto é desilusão? Talvez não seja. Sabes, afinal nunca coloquei tudo nos
meus sonhos. Havia sempre uma parte fria e racional, que me fazia aterrar à
força. Por isso, não existindo muita ilusão, não pode haver grande
desilusão. Desencanto, talvez seja esse
o termo certo. Sabes, tal como tu te encantas no conteúdo que te preenche o
espaço, também eu tive e tenho os meus “encantamentos”. Lugares, objectos,
textos, músicas, pinturas… e … as pessoas. O que pertence ao espaço físico, é.
O que pertence ao espaço emocional, psicológico e moral, está. Por isso as
pessoas não são, estão. E assim todos os esboços que fizemos, não passam de
linhas impressas.
Interrompi a “conversa” e pensei
para mim: sim, as pessoas fascinam-me. É ambíguo, mas são as pessoas que nos
completam e nos dão alegria e felicidade, tanto quanto nos podem destruír e
deixar miseravelmente infelizes. O Mundo é o reflexo das pessoas que o povoam -
brancas, negras ou amarelas; ricas,
remediadas ou pobres; sinceras, dissimuladas ou falsas; crentes, ateias ou
agnósticas; de esquerda, centro ou direita; altos quadros, médios ou sem formação
- a falar uma diversidade de línguas, mas cujo denominador comum deveria ser um
único – o amor, nas suas múltiplas formas. E assim, me vieram à memória tantos
e tantos rostos, tantas e tantas histórias de vida, feitas, desfeitas,
refeitas… Realmente, tudo se baseia nas relações pessoais e em torno delas se
desenvolve, não obstante a permeabilidade aos interesses, à mentira, ao
facilitismo, e a traços de carácter menos eticamente correctos, mas que não são
mais do que desejos recalcados, frustrações acumuladas, afectos por preencher,
amores esvaziados, e uma certa dose de desfasamento da realidade, quantas vezes
alavancada por uma ambição doente e fria. Curioso, como conhecemos tantas
pessoas, em tudo diferentes, e em tudo iguais … Será a nossa “passagem” por
aqui um acervo bipolar?...
… O tempo passou, e num ângulo
de trezentos e sessenta graus, vi, revi, escutei, senti, todas aquelas
histórias de que são feitas as pessoas.
Voltei ao meu recorte: A
perfeição, não existe. Um esboço pode apagar-se, alterar-se, corrigir-se,
sempre. Por isso se chama esboço. É passível de ajustamentos. Tal como o estar
das pessoas o é. Tal como a vida o é. Existe a necessidade permanente de
“afinar” uma espécie de máquina, comandada pelo cérebro e pelo coração. Essa
máquina não é mais do que um conjunto de sentimentos que nos diz o que fazer. Sabes, aquelas linhas tão nossas que guardas no teu
corpo? São essas mesmas linhas, que hoje me fazem sentido e que escrevem tudo o
que quero daqui.