- Ó Mãe, mas eu quero ficar mais um bocadinho a falar com a senhora … Ela é minha amiga e eu gosto das histórias que ela me conta …vá lá … só mais cinco minutos … - Era sempre assim, Manelinho implorava à mãe que o deixasse ficar mais um pouco a falar com a sua amiga especial. Sentia uma afinidade e um carinho tão grandes por aquele rosto marcado pelos anos, mas sereno, como se de família sua se tratasse. Mal sabia ele …
Ana, assim se chamava, era dona
de uma sabedoria ímpar, experiente, consistente, simples. Teria cerca de
sessenta anos quando a sua vida mudou o rumo, fruto de vicissitudes da vida,
que julgou incontornáveis, procurando um caminho de paz interior, longe dos
dias em montanha russa que sempre vivera, dos rostos do costume, das conversas
banais e rotineiras, das inúmeras e graves discussões familiares, de uma
pressão desmedida.
Sempre fora o timoneiro de uma
barcaça várias vezes remendada, mas que nunca deixara naufragar, pela sua
persistência, força e convicção. A vida moldou-a desde cedo, pois nunca se
encaixara muito nos cânones vigentes, e embora pessoa de princípios e valores,
de que não abdicava, fora sempre considerada uma espécie de “outsider” no seio
da família tradicional e conservadora. Quis-se independente no final da
adolescência, conciliando estudos e trabalho, procurando sempre o caminho a
seguir em cada etapa, de acordo com a sua forma de estar e pensar. Nunca se
negou a tarefas, sacrifícios, invenções, reinvenções, desde que fosse sua
convicção que seria por aí o trilho. Fez família, amparou, ajudou, e por
maiores que fossem as dificuldades, enfrentava-as com hercúlea força, para o
bem de todos os seus.
Os anos passaram a correr, a
maratona começava a pesar, os desafios do quotidiano, que sempre foram a sua
mola, já não eram agarrados com o mesmo entusiasmo, o cansaço instalava-se.
Não fosse a sua habilidade para
dar a volta interiormente, e teria caído numa depressão profunda ou desistido
daquilo a que chamavam vida.
Tudo se agigantava em seu redor.
As pessoas tinham mudado os comportamentos para pior, mostrando o que de mais
ruim havia nelas. A intolerância crescia-lhes dentro. A manipulação e
dissimulação aumentavam. A escala de valores, onde ainda existiam, contava-se pelos dedos. Eram assim os seus
dias. Enfrentando uns e outros, com aquela sua mania de querer ajudar, mas
sofrendo desilusões sucessivas a cada virar de esquina, a cada degrau de
existência.
Um dia, decidiu-se: “vou fazer-me
de louca”. Aos loucos não se exige nada. Não se conta com eles, porque
simplesmente são loucos. Não têm que dar resposta, ou dão uma ao calha. Não têm
que privar só porque é socialmente correcto. São livres de rir, de saltar, de
esbracejar, de falar sozinhos, de cantar, pois afinal … são loucos.
Assim determinada, fazendo-se
passar por louca, procurou um local que a acolhesse e onde pudesse ter a “sua”
paz. Fez a mala e partiu, pedindo que não a procurassem, prometendo que mais
tarde faria chegar a informação sobre o seu paradeiro. Obviamente que tinha que
se preparar. O certo é que passaram três anos sem que desse sinal de vida.
Egoísmo seu? Talvez, mas o desgaste a que tinha chegado, não lhe dava sequer
alento para reencontros familiares ou de amigos. Até que um dia …
Na terra que tinha escolhido para
viver, uma vila simpática, próximo do mar e onde era absolutamente
desconhecida, começaram a chegar turistas à procura de tranquilidade e uns dias
de lazer com qualidade. Tinha por hábito sentar-se na esplanada de um parque a
ler, escrever ou simplesmente observar. Havia dias em que levava o cavalete,
uma tela e tintas, e lá fazia uns rabiscos. Foi num desses dias que uma criança
aí dos seus dois anos, rebiteza e de sorriso franco, como só as crianças
conseguem ser, parou ao pé dela a olhar para a tela.
“Olá!”
“Olá! Como te chamas?”
“Manelinho” disse a criança meio
atabalhoadamente. “O que estás a pintar? Eu também gosto de pintar. Deixas-me?”
Ante a aflição da mãe, Ana na sua
voz pausada tranquilizou-a dizendo que não tinha mal nenhum a intromissão da
criança e que se ela permitisse o deixava pintar um pouco. Enquanto Manelinho
se entretinha, a conversa foi fluindo entre as duas. Percebeu-lhe um sotaque
que não lhe era estranho e ficou perturbada. Alguém da sua zona. Não queria que
a descobrissem… Virou-se para o Manelinho e começaram a pintar em conjunto. A
criança estava encantada. Tagarela, foi-lhe percebendo o carácter e ficou
rendida àquela minúscula pessoa. Passada uma hora despediam-se daquele
encontro, que viria a repetir-se outras vezes.
Um dia, Ana levou um livro de
contos e entretiveram-se com histórias. A mãe do menino, aproveitava para ela
também pausar um pouco e preguiçar ao sol. “Sabes, tu podias ser a minha avó”,
exclamou o Manelinho cheio de entusiasmo. “Eu? Porquê? Achas que sou parecida
com a tua avó?” – “Não. Eu não tenho avó. Está louca, diz o pai. O que é louca,
contas-me?”
Ana gelou. Atrofiou. Estonteou e
pensou desmaiar. “O que é? Estás bem amiga?” – “Sim… já passa …”. Engoliu em
seco, secou-se-lhe a garganta, o olhar turvou e uma lágrima escorreu.
Olhou para Manelinho, chamou a
mãe e deu meia volta, pedindo desculpa por uma indisposição súbita. A cabeça
fervia. O pensamento corria. A dúvida crescia.
Durante uma semana não foi ao
parque, mas o desejo de ver aquela criança corroía-a. Certamente já teriam
acabado as férias e teriam regressado à terra, que bem podia ser a sua…
Enganou-se. Mal se aproximou do
seu canto, já uma voz corria ao seu encontro de braços abertos. “Afinal vieste!
Estás melhor? Que te aconteceu? Queria ver-te! Quero pintar ou ouvir
histórias.” Não havia tela nem livro. O seu coração palpitava. Transpirava. Fez
um esforço, respirou fundo e lá prosseguiu. “Olá meu querido! Olha, coisas de
gente velha … tive uma má disposição, mas já passou. Hoje não trouxe nada, pois
pensei que já tinhas acabado as férias com a mamã”. Sofia, a mãe, disse que tinha decidido ficar
mais uns dias. Que precisava estar longe e que à distância lhe era possível
trabalhar e acompanhar o Manelinho. Como a compreendi … Mas não fiz perguntas.
Nem queria respostas … apenas aquele momento.
Mas Sofia insistiu em falar de si, da vida… Ana mal conseguiu manter a
compostura e não se denunciar. Sofia, era sua nora, e Manelinho seu neto …
aquele anjo palrador, curioso, cheio de entusiasmo, era sangue do seu sangue …
como calar? Como lidar com a situação? Não podia falar, ou talvez sim… afinal
estava louca, e os loucos são isso mesmo …loucos ...