quinta-feira, 6 de maio de 2021

A Sã Loucura de Não se Ser Louco


- Ó Mãe, mas eu quero ficar mais um bocadinho a falar com a senhora … Ela é minha amiga e eu gosto das histórias que ela me conta …vá lá … só mais cinco minutos …  - Era sempre assim, Manelinho implorava à mãe que o deixasse ficar mais um pouco a falar com a sua amiga especial. Sentia uma afinidade e um carinho  tão grandes por aquele rosto marcado pelos anos, mas sereno, como se de família sua se tratasse. Mal sabia ele …

Ana, assim se chamava, era dona de uma sabedoria ímpar, experiente, consistente, simples. Teria cerca de sessenta anos quando a sua vida mudou o rumo, fruto de vicissitudes da vida, que julgou incontornáveis, procurando um caminho de paz interior, longe dos dias em montanha russa que sempre vivera, dos rostos do costume, das conversas banais e rotineiras, das inúmeras e graves discussões familiares, de uma pressão desmedida.

Sempre fora o timoneiro de uma barcaça várias vezes remendada, mas que nunca deixara naufragar, pela sua persistência, força e convicção. A vida moldou-a desde cedo, pois nunca se encaixara muito nos cânones vigentes, e embora pessoa de princípios e valores, de que não abdicava, fora sempre considerada uma espécie de “outsider” no seio da família tradicional e conservadora. Quis-se independente no final da adolescência, conciliando estudos e trabalho, procurando sempre o caminho a seguir em cada etapa, de acordo com a sua forma de estar e pensar. Nunca se negou a tarefas, sacrifícios, invenções, reinvenções, desde que fosse sua convicção que seria por aí o trilho. Fez família, amparou, ajudou, e por maiores que fossem as dificuldades, enfrentava-as com hercúlea força, para o bem de todos os seus.

Os anos passaram a correr, a maratona começava a pesar, os desafios do quotidiano, que sempre foram a sua mola, já não eram agarrados com o mesmo entusiasmo, o cansaço instalava-se.

Não fosse a sua habilidade para dar a volta interiormente, e teria caído numa depressão profunda ou desistido daquilo a que chamavam vida.

Tudo se agigantava em seu redor. As pessoas tinham mudado os comportamentos para pior, mostrando o que de mais ruim havia nelas. A intolerância crescia-lhes dentro. A manipulação e dissimulação aumentavam. A escala de valores, onde ainda existiam,  contava-se pelos dedos. Eram assim os seus dias. Enfrentando uns e outros, com aquela sua mania de querer ajudar, mas sofrendo desilusões sucessivas a cada virar de esquina, a cada degrau de existência.

Um dia, decidiu-se: “vou fazer-me de louca”. Aos loucos não se exige nada. Não se conta com eles, porque simplesmente são loucos. Não têm que dar resposta, ou dão uma ao calha. Não têm que privar só porque é socialmente correcto. São livres de rir, de saltar, de esbracejar, de falar sozinhos, de cantar, pois afinal … são loucos.

Assim determinada, fazendo-se passar por louca, procurou um local que a acolhesse e onde pudesse ter a “sua” paz. Fez a mala e partiu, pedindo que não a procurassem, prometendo que mais tarde faria chegar a informação sobre o seu paradeiro. Obviamente que tinha que se preparar. O certo é que passaram três anos sem que desse sinal de vida. Egoísmo seu? Talvez, mas o desgaste a que tinha chegado, não lhe dava sequer alento para reencontros familiares ou de amigos.  Até que um dia …

Na terra que tinha escolhido para viver, uma vila simpática, próximo do mar e onde era absolutamente desconhecida, começaram a chegar turistas à procura de tranquilidade e uns dias de lazer com qualidade. Tinha por hábito sentar-se na esplanada de um parque a ler, escrever ou simplesmente observar. Havia dias em que levava o cavalete, uma tela e tintas, e lá fazia uns rabiscos. Foi num desses dias que uma criança aí dos seus dois anos, rebiteza e de sorriso franco, como só as crianças conseguem ser, parou ao pé dela a olhar para a tela.

“Olá!”

“Olá! Como te chamas?”

“Manelinho” disse a criança meio atabalhoadamente. “O que estás a pintar? Eu também gosto de pintar. Deixas-me?”

Ante a aflição da mãe, Ana na sua voz pausada tranquilizou-a dizendo que não tinha mal nenhum a intromissão da criança e que se ela permitisse o deixava pintar um pouco. Enquanto Manelinho se entretinha, a conversa foi fluindo entre as duas. Percebeu-lhe um sotaque que não lhe era estranho e ficou perturbada. Alguém da sua zona. Não queria que a descobrissem… Virou-se para o Manelinho e começaram a pintar em conjunto. A criança estava encantada. Tagarela, foi-lhe percebendo o carácter e ficou rendida àquela minúscula pessoa. Passada uma hora despediam-se daquele encontro, que viria a repetir-se outras vezes.

Um dia, Ana levou um livro de contos e entretiveram-se com histórias. A mãe do menino, aproveitava para ela também pausar um pouco e preguiçar ao sol. “Sabes, tu podias ser a minha avó”, exclamou o Manelinho cheio de entusiasmo. “Eu? Porquê? Achas que sou parecida com a tua avó?” – “Não. Eu não tenho avó. Está louca, diz o pai. O que é louca, contas-me?”

Ana gelou. Atrofiou. Estonteou e pensou desmaiar. “O que é? Estás bem amiga?” – “Sim… já passa …”. Engoliu em seco, secou-se-lhe a garganta, o olhar turvou e uma lágrima escorreu.

Olhou para Manelinho, chamou a mãe e deu meia volta, pedindo desculpa por uma indisposição súbita. A cabeça fervia. O pensamento corria. A dúvida crescia.

Durante uma semana não foi ao parque, mas o desejo de ver aquela criança corroía-a. Certamente já teriam acabado as férias e teriam regressado à terra, que bem podia ser a sua…

Enganou-se. Mal se aproximou do seu canto, já uma voz corria ao seu encontro de braços abertos. “Afinal vieste! Estás melhor? Que te aconteceu? Queria ver-te! Quero pintar ou ouvir histórias.” Não havia tela nem livro. O seu coração palpitava. Transpirava. Fez um esforço, respirou fundo e lá prosseguiu. “Olá meu querido! Olha, coisas de gente velha … tive uma má disposição, mas já passou. Hoje não trouxe nada, pois pensei que já tinhas acabado as férias com a mamã”.  Sofia, a mãe, disse que tinha decidido ficar mais uns dias. Que precisava estar longe e que à distância lhe era possível trabalhar e acompanhar o Manelinho. Como a compreendi … Mas não fiz perguntas. Nem queria respostas … apenas aquele momento.  Mas Sofia insistiu em falar de si, da vida… Ana mal conseguiu manter a compostura e não se denunciar. Sofia, era sua nora, e Manelinho seu neto … aquele anjo palrador, curioso, cheio de entusiasmo, era sangue do seu sangue … como calar? Como lidar com a situação? Não podia falar, ou talvez sim… afinal estava louca, e os loucos são isso mesmo …loucos ...


quinta-feira, 29 de abril de 2021

O Vazio de um Umbigo

 

Como me soube bem aquela tarde de Outono… Há imenso tempo que tinha programado a visita, mas as impossibilidades de agenda iam adiando uma conversa já de si atrasada. A nossa amizade é pura como só as amizades de infância o sabem ser. Crescemos a brincar na rua, a jogar ao berlinde, a andar de bicicleta, mais tarde descobrimos o gosto em comum pelas artes, pelas diversas culturas, pelas viagens sem destino marcado, até que as nossas vidas profissionais nos separaram geograficamente e embora perto no coração, a distância física era significativa.

Depois de muito combinarmos e descombinarmos, chegou enfim o dia em que pudemos tagarelar sem fim, rir, chorar, mas acima de tudo celebrar o facto de estarmos vivas e de saúde.

A Mané escolheu um local lindo para tomarmos um chá acompanhado de uns biscoitos caseiros, que faziam a delícia de qualquer mortal. Uma imensa janela abria-se sobre o jardim em degraus, deixando entrar o sol que nos aquecia a alma e a conversa. Achei-a abatida, pálida, com algumas rugas a querer espreitar naquele rosto de pele clara. Os olhos tinham o brilho de sempre e a mesma expressão sincera. A gargalhada não tão solta, continuava a ser contagiante. De facto os anos iam passando por nós e nós pela vida, e era inevitável que as marcas não fossem visíveis.

- Estou tão feliz, amiga! Que saudades imensas de estar contigo, de partilhar conversas, da nossa cumplicidade… Sabes que falarmos ao telefone ou por mensagem não é a mesma coisa. Gosto das tuas interpelações e de quando me abanas nos assuntos. Tem sido tão difícil superar esta fase da minha vida…

- Mané, sabes que comigo não há evasivas. Que a confiança que temos uma na outra não é de ontem e que sempre estive aqui para te ouvir. De facto, não é de todo a mesma coisa. Gosto de falar contigo e percebes que te leio os traços, as expressões, os silêncios e os altos mais nervosos. Sei-te de cor, como canta o Paulo Gonzo. Por isso estava tão preocupada contigo e com os sucessivos adiamentos do nosso encontro. Mas pronto, chegou o dia e estou muito contente, apesar de preocupada.

De facto a Mané, estava a passar um mau bocado. Era uma pessoa com um êxito profissional incrível, fruto de muito trabalho, mas tinha-se envolvido sentimentalmente com a pessoa errada. Alguém com uma dualidade doentia, que prosseguia vários caminhos em simultâneo, acabando por perder-se nos seus próprios labirintos e usando a arrogância e a prepotência como arma de defesa, para se escudar das mil inseguranças que tinha. Kevin era um escritor já com algum reconhecimento, bem falante e charmoso. Aparentemente resolvido, parecia emanar um super à vontade acerca da vida e de si mesmo.  Vivia com descontracção, embora com muitas regras que se auto impunha, e que a Mané por vezes não conseguia compreender, por mais que se esforçasse. Os anos foram correndo, ela na sua vida extremamente ocupada, ele uma pessoa  bastante requisitada socialmente. Tentavam conjugar agendas e momentos com cedências quase sempre da Mané, já que Kevin de tão obcecado consigo próprio era praticamente inflexível.

- Mas como conseguiste viver estes anos todos nessa espécie de farça, amiga? Medo de estares sozinha? Falta de amigos por perto? Mané, tudo o que me tens estado a contar é mau demais…

- Eu sei minha querida Luísa. A situação só a mim dizia respeito. Aliás, a mim e ao Kevin, mas no momento que percebi que não era aquele o Kevin que transparecia para o lado de fora, já me tinha deixado enredar na teia de manipulação que tão bem sabe tecer com todos os que lhe chegam perto e que de alguma forma lhe despertam algum tipo de interesse, não enquanto pessoas, mas enquanto veículos para atingir determinados objectivos. Burra que fui ao pensar que aquele pedaço de homem falava com sinceridade e que era aquela boa alma que parecia ser.

- O que interessa é que conseguiste colocar um ponto final na história, machucada, claro está, mas estás inteira, continuas a ser aquela mulheraça gira, culta e amiga, e aqui estamos para o que der e vier. Não queria estar na tua pele nem por um bocadinho (apesar de o Kevin ser assim arraçado de George Clooney, mas tu da Amal teres apenas parecenças no cabelo…). Pelo que me contas, ele tanto quis enfatizar a sua pessoa, que se perdeu dele próprio e perdeu também o pé daquilo que era a sua base de sustentação, ou seja, dos seus leitores e seguidores. Isso é muito mau… Eu fui percebendo pelas publicações que ele fazia que existiam imensas incongruências entre o que ele dizia e o que praticava. Era assim tipo, faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço, porque esse patamar só a mim está reservado. Percebi que o umbigo dele ficou enorme e confesso-te que houve uma altura em que o bloqueei nas redes,  porque imaginava o teu sofrimento e não conseguia sequer lê-lo. Uma caixinha de surpresas o menino escritor …

- Foi mau Luísa. Muito mau. Quando percebi que ele estava a caminhar por uma rampa perigosa, de tão escorregadia, tentei fazer-lhe ver que existe algo mais além do umbigo, e que o tombo era apenas uma questão de tempo. Correu tão mal, que jurei a mim própria não voltar ao assunto e guardar para mim o prenúncio de uma realidade que estava à vista. Daí para cá, é o que sabes. Solidão, cada vez mais perdido de si no seu casulo de arrogância, e não sei como a vida do Kevin seguirá. Mas olha, também já nem estou muito preocupada com isso. Guardo na memória bons momentos, tenho a plena consciência de que tudo fiz para o ajudar a reencontrar o trilho, e é isto … Se ele um dia tirar as palas dos olhos, e deixar o deslumbramento de lado, talvez já seja tarde demais. Aliás, eu penso que neste momento já é tarde…. Ele saberá, ou não …

- Miúda, és uma mulher de fibra! Torce mas não quebra! Tenho tanto orgulho em ti … Que bom ter-te de volta. Já pensaste nos programas que vamos ter que fazer durante esta tua estadia por cá? Sabes que podes sempre contar comigo!

- Sei querida Lu, só a ti posso contar estas coisas. Ninguém mais me compreenderia, e aliás, não falaria destes assuntos com mais ninguém. Tardou, mas cheguei! Será que podemos brindar com chá?

- Porque não? Brinde a nós, à amizade e à vida, que apesar de nos pregar partidas desagradáveis, merece ser vivida! Olha lá para fora amiga! Estás a ver os raios de sol a incidir na janela? É sinal de que há sempre uma nova luz, uma nova oportunidade e um novo dia! Alcança a tua paz interior e vais ver que é tudo menos cinzento na tua cabeça. O Kevin… que faça o trabalho de casa se quiser, e pode ser que ainda reencontre também alguma luz…