quinta-feira, 25 de junho de 2020

Anoiteceu


A autoestrada já me era tão familiar, que lhe conhecia cada curva, cada sinal, cada saída.
De facto durante os últimos seis meses era um percurso que fazia com uma frequência que ia muito além do que eu consideraria razoável. Se há um ano atrás alguém antevisse a quantidade de vezes seguidas que iria a Lisboa e mo dissesse, eu diria que era loucura.
O carro funcionava quase em piloto automático, ou dito de outra forma, o piloto automático seria eu, que qual autómato me fazia ao caminho já sem questionar ou pensar. Apenas tinha que ir.
Naquela tarde algo me dizia que tinha que regressar rápido. Não suportava já as avenidas, o trânsito,  os hospitais, as salas de espera cheias, o som do quadro electrónico a chamar o doente seguinte ou o familiar. Tinha horror às batas brancas, fardas verdes ou azuis. Queria fugir. Fugir para longe daquele pesadelo que me tinha transformado numa espécie de robot.
Dizia eu que naquela tarde tinha um pressentimento estranho e uma força maior me fazia regressar sem sequer comer alguma coisa que me aconchegasse o estômago e me servisse de almoço, ainda que tardio. A pressa de passar a ponte era demasiada. A ânsia de chegar, ainda que a um outro hospital, inflamava-me o peito.
As notícias que tinha eram vagas e o tom de voz da enfermeira deixou-me dúvidas. O carro rolava sem tino. Durante a hora e meia de viagem vieram-me à memória tantas coisas. Sentimentos que não conseguia explicar. Uma viagem interior feita à mesma velocidade com que o carro deslizava pela autoestrada, para concluír que a vida é extremamente injusta e que para que um dia partamos para um outro lugar, não seria necessário um sofrimento atroz que nos reduz a um estado miserabilista e desumano. Era esse o retrato em que aquele que sempre foi a minha âncora e a minha referência se encontrava há já algumas semanas. Vergado pelas dores que nem a morfina adormecia,  tinha já perdido todo o brilho do olhar. Nos poucos momentos de lucidez, deixava transparecer a revolta pelo amputar de uma vida que ainda tinha muito para lhe dar, para me dar, para nos dar.  A cada dia que percorria o corredor até ao quarto, a incerteza do que ia encontrar apertava-me o peito. Sabia que melhoras não iam existir, até porque as metástases daquele horrível tumor ocupavam já quase todos os órgãos vitais. Restava-me acreditar que no estado de inconsciência o sofrimento era menor e que alguma forma de minorar a dor lhe era benéfica.
Ao sair do carro respirei fundo, abrandei o ritmo como que a tentar arranjar força interior para subir. Fui pelas escadas. Percorri os lances dos seis pisos com um passo cada vez mais lento, não porque estivesse cansada ou tivesse dificuldade em subir, mas porque algo me dizia que tinha que manter a calma quando chegasse ao quarto. Lentamente avancei pelo corredor, despido de gente, a não ser os dois enfermeiros que estavam na mudança de turno.
“Ainda bem que a menina chegou. O seu pai tem estado à sua espera.” - Estas palavras proferidas pelo doente da cama ao lado,  ficaram-me gravadas. Ainda hoje,  dezasseis anos passados, as recordo.
Foram poucos os minutos que nos restaram, mas não sei explicar como nem porquê, senti que a minha presença o confortou, tal como me confortou perceber que ele não queria partir sem sentir que eu estava ali. Talvez quisesse dizer-me para ter força, para encarar os problemas um de cada vez, e resolvê-los com sabedoria e lucidez, como era seu hábito,  nas conversas que tínhamos Ou talvez quisesse apenas sentir que eu estava a seu lado e que naqueles minutos que nos restavam,  nos devíamos deter no que realmente importa: o amor, o carinho, o cuidar. 
Anoiteceu, e com a noite apagou-se uma parte de mim. Um luto que carrego no peito e na alma e que apenas alivio quando me lembro das palavras trocadas, dos ensinamentos que ainda hoje professo, da meiguice austera que me ensinou os caminhos e dos seus valores que fizeram de mim quem sou enquanto pessoa, do abraço, do beijo na testa, do humor fino nem sempre compreendido e da música, sua grande paixão.  Não chorei. Ele não quereria que chorasse. Detive-me a olhá-lo, sereno na partida e pensei mais uma vez na injustiça da vida, ou de como ela nos põe à prova sistematicamente. Na sua expressão acreditei que iria para onde o sofrimento já não tivesse lugar e que estaria a olhar para nós.  Afinal ninguém sabe o que se passa do outro lado … se é azul ou cinzento,  se está calor ou frio, se há sol ou luar, se há barulho ou silêncio …
Quando a enfermeira chegou e correu a cortina, percebi que a morte física é um patamar que apenas nos priva do toque. Tudo o resto está lá, fica e vive connosco.
Helena

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Uma Questão de Tempo


Acordei com o galo a cantar. Entreabri os olhos a custo e olhei ao relógio. Cinco horas e quarenta… Virei-me na  direcção da janela que tinha deixado entreaberta e o amanhecer anunciava-se. Que chatice, pensei para mim. Acordar tão cedo não faz sentido nenhum. Estava exausta, extenuada física e psicologicamente. Precisava descansar, desligar do mundo. Por isso os meus primos me trouxeram para longe. “Precisas mudar de ares, de paredes, de caras e de rotinas, portanto vais connosco passar uns dias na quinta e verás como ficas melhor e mais leve “ - a ideia não me desagradou. Afinal gostava imenso da quinta e daqui só tinha boas recordações.  As nossas férias de crianças numa correria que esgotava a D.Manuela, a empregada que se ocupava dos “meninos”. Com ela aprendemos alguns segredos de jardinagem, de agricultura, de doçaria, ouvíamos histórias fantásticas, organizávamos acampamentos dentro do perímetro da quinta, fazíamos gincanas, teatros, concursos de poesia, festivais  da canção,  enfim… memórias de um tempo feliz onde a imaginação e a criatividade falavam mais alto. Não tínhamos muitos brinquedos, nem eram eles que  nos prendiam. Sentíamo-nos livres  e por isso o desafio diário consistia em imaginar um programa que agradasse a todos. Os nossos avós, que por altura das férias mudavam armas e bagagens para a quinta, entretinham-se nos seus afazeres, com os seus convidados, que eram sempre muitos, e nós, acarinhados e com a cumplicidade da D.Manuela organizávamos os nosso “reino” de fantasia.
Fomos sempre mantendo a tradição das férias em família até os calendários começarem a complicar-se por causa da escola, altura em que os três meses de férias começaram a encolher, passando a  resumir-se a Agosto. Depois começaram os namoricos e outras opções como destino. A D.Manuela ia avançando na idade, as nossas brincadeiras estavam já noutro patamar, e os avós estavam velhotes, não sendo aconselhável tanta agitação em volta.
Nós, primos e irmãos fomo-nos afastando lentamente da quinta. Uns porque após a faculdade organizaram as suas vidas fora do país, outros porque preferem passar os quinze dias de férias seguidos noutras paragens, outros, porque têm vidas muito ocupadas e dificilmente conseguem abrandar e retornar ao sossego. Excepção para a Aninhas, a Lu e o Zé Pedro. Apesar de terem já as suas famílias formadas, mantiveram a tradição de passar uma temporada na quinta todos os anos. É o rejuvenescer e reviver da tradição familiar, que muito me agrada.
Eu, pessoalmente, não vinha à quinta há cinco anos. Uma espécie de choque, quando passei o portão e parei em frente à escadaria da casa. Era ali que os avós nos esperavam, sempre. Um sorriso aberto e um abraço onde cabia o mundo. Ontem, apenas os actuais caseiros nos receberam. Não os conhecia. Sabia que o Sr. Manuel e a D. Florbela já estão reformados, embora a viver no anexo que sempre habitaram, e já remodelado. A D.Manuela, a nossa adorada D.Manuela, está num lar, acometida que foi por uma doença do foro neurológico.  Tão triste que fiquei quando soube… Irei visitá-la, e ainda que não me reconheça, irei dar-lhe um grande abraço.
Já em casa, um aperto no peito e uma lágrima teimosa acompanharam-me até ao quarto. O quarto das hortênsias, assim chamado por ter um terraço com dois canteiros onde tufos de hortênsias lilases, rosas e brancas lhe conferem um charme discreto e simples,  com tonalidades agradáveis. A decoração do quarto tinha sido renovada, mas curiosamente manteve o espírito de sempre. Os móveis foram reciclados e pintados e os adereços encaixam na perfeição.  É o quarto que eu ocupava com a Aninhas e a Lu, o nosso templo dos sonhos onde as três camas que resistiram aos saltos e aos anos, ocupam o mesmo espaço. Até o enorme sofá foi estofado, permanecendo no mesmo lugar.
Depois do jantar, melacólica que estava fui dar uma volta a pé pelos caminhos da quinta, respirar aquele silêncio, o ar puro, a liberdade. Lembrei-me das corridas de bicicleta e dos jogos de escondidas. Lembrei-me do avô a proteger as meninas das “garras” dos rapazes que tentavam encontrar-nos e que do alto das suas vozes de cana rachada gritavam “rebenta!” a quem conseguiam encontrar. Os freixos continuavam imponentes a ladear o caminho que conduzia à piscina e à adega. Sentei-me numa espreguiçadeira e tentei adivinhar as estrelas como era nosso hábito. Sabia-me bem o fresco da noite na cara e nos ombros. Por ali fui ficando, avivando memórias, doces memórias de um tempo em que fui feliz.
- Sabia que estarias aqui. Não sentes frio? Trouxe-te uma écharpe para os ombros. - Era a Aninhas, a minha prima sempre atenta, sempre querida, sempre presente.
- Olha, acreditas que me está a saber bem o fresco? Sinto-me respirar de outra forma, mais leve… Obrigada querida. Estive a olhar para as estrelas como fazíamos em pequenas. Sinto-me tão estranha… uma parte de mim está nostálgica, outra parte de mim tenta estar em paz, e outra ainda sente um aperto tão grande no peito e um nó na garganta…
- É por isso que insisti para que viesses. Vais ver que a boa energia de todas as recordações que tens da quinta, te vai ajudar. Nós estamos aqui contigo e tudo faremos para que te sintas bem. Sabes que podes contar connosco. Tens que fazer reset e seguir noutra direcção. Estes dias na quinta vão servir para desligares um pouco do mundo e poderes pensar e reequacionar aquilo que necessitas mudar. Não é fácil, eu sei, mas vais ver que o contacto com a natureza te vai fazer bem e te vai ajudar a organizar as ideias. Não te sintas obrigada a nada. Apenas quero que faças aquilo que te traga bem estar.
- Aninhas, és e sempre foste o meu anjo da guarda! A minha prima querida, amiga, ponderada. Concordo contigo. Acho que me vai fazer bem. Estúpida que fui, ter-me afastado durante estes cinco anos… afinal foi aqui que sempre tomei as grandes decisões da minha vida, segredos que só contigo partilhei, bons e menos bons …
- Só podia! Aqui estão as duas ladies em amena cavaqueira e nós com o gin preparado à vossa espera! - Zé Pedro e a mulher, Isabel, apareciam no outro lado.  - Vamos lá meninas, estamos todos ansiosos pela vossa companhia! Juro que tenho guardadas umas boas histórias para a nossa recém-chegada soltar o sorriso.
O serão passou-se entre recordações, conversas mais sérias sobre a vida, sobre o país, sobre a importância que esta propriedade teve e tem na nossa existência. Sem dúvida, as nossas referências estão aqui ligadas.
Quando fui para o quarto, sentia-me mais confortada, mas com um enorme vazio com o qual não estou a conseguir lidar bem. Foram cinco anos de uma relação apaixonada, intensa, mas turbulenta. Conheci o João numa viagem que fiz a Nova Iorque. Eu ia de férias com duas amigas, ele ia aceitar uma proposta de trabalho. Ficámos em lugares lado a lado no avião e percebendo a nossa excitação pela primeira viagem aos “Estates”, meteu conversa connosco e lá foi dando algumas indicações sobre o metro, sobre como rentabilizarmos o tempo por forma a podermos tirar o máximo partido da viagem, sobre a localização de restaurantes de portugueses onde se comia bem e não muito caro, enfim, foi o nosso cicerone. Tal foi a conversa e o entusiasmo que nem nos apercebemos das longas horas de viagem. Chegados ao aeroporto, trocámos contactos para alguma eventualidade, e João mostrou-se disponível para nos acompanhar algumas vezes e nos dar a conhecer aquela cidade tão fantástica e que ele dominava tão bem, fruto das seis temporadas que já lá tinha estado em férias. Mal sabia eu que naquele avião se tinha começado a escrever um capítulo da minha vida… De facto, quase todos os dias nos encontrámos com o João, que incansável nos guiou por inúmeros lugares de Nova Iorque. Era um sujeito interessante. Culto, com discurso fácil, coerente e que mostrava grande segurança. De estatura alta e entroncado, sorria facilmente de forma que os grandes olhos castanhos pareciam também sorrir. Fácil alguém apaixonar-se… E esse alguém, fui eu …
Infeliz, regressei a Portugal no final de uma viagem fabulosa, com o pensamento completamente toldado pela paixão. João, fez-me acreditar que também se sentia infeliz pela minha partida. Nas semanas seguintes vivi presa no computador e no telemóvel, quase a alucinar. Um dia enchi-me de coragem e disse aos meus pais que queria ir trabalhar para os Estados Unidos, mais propriamente para Nova Iorque. Foi uma bomba na família! Como, para onde, porquê? Eu, filha única, a ir para o outro lado do mundo… não podia ser… Pela primeira vez na vida enfrentei a família e com uma posição firme, disse não ter volta a dar. O João já me tinha arranjado trabalho na mesma empresa dele, embora num outro departamento e num outro lado da cidade. Durante o três meses que durou o vai, não vai, fui-me organizando por forma a ter tudo tratado quando fosse a hora de partir.
Não fui atrás do sonho Nova Iorquino, mas sim do sonho “Joanino” …
Entusiasmou-me começar uma nova vida longe de tudo e de todos, num país que me desafiava e que me dava (achava eu) a oportunidade de me realizar como profissional e como pessoa, e sobretudo, viver a minha paixão.
Não nego que os dois primeiros anos foram intensos e felizes.
O tempo foi passando, e ao passar, começou a trazer problemas.  Como em todas as relações, foram acontecendo episódios mais ou menos tóxicos que foram interferindo com a nossa vida e com a nossa paixão. O João, super perfeccionista em tudo,  transformou-se e não era mais o “meu” João.  A vida em Nova Iorque também se modificou bastante após os incidentes relacionados com o 11 de Setembro. O sonho começou a desvanecer-se, e antes que a nossa relação se degradasse mais ainda, decidimos afastar-nos, para nosso bem, para que pudesse restar ainda um pouco da amizade que nos unia e da admiração que apesar de tudo tínhamos um pelo outro.
Senti-me a mais infeliz das pessoas. Tinha um bom trabalho, mas estava profundamente desmotivada. Os amigos que tinha feito entretanto, deixaram de me fazer sentido, pois eram os nossos amigos comuns, e estava sempre a reviver histórias de uma vida recente. Comecei a detestar o barulho das ruas, o movimento de pessoas, de tal forma que meti baixa e fiquei em casa. Um dia, como um clique, decidi regressar. A experiência profissional que tinha adquirido, seria um bom cartão de visita para qualquer empresa em Portugal e não teria dificuldade em arranjar trabalho. Se fosse preciso, começaria do zero. O trabalho nunca me meteu medo. Avisei o João da minha decisão e em duas semanas parti.
Terá sido a opção correcta? Não sei. O tempo o dirá. Afinal, o tempo é aquilo que nos traz as certezas na altura certa, que nos devolve a esperança, que nos norteia, com calma.
Não existe um dia nem uma noite em que eu não sinta a falta do João. Deitar-me e acordar sozinha sem o calor do seu corpo,  tem sido extremamente penoso, e por isso tenho passado a maior parte das noites acordada, num estado pré-febril, onde permanentemente o vejo, assim que fecho os olhos. Não consigo esquecê-lo e penso que esta fixação está a tomar conta de mim. Sei que entre nós existe um oceano imenso, mas no silêncio parece-me ouvi-lo chegar com a sua voz grave e como sempre dizer: olá princesa, como correu o teu dia? E a este som, correr na sua direcção, abraçá-lo e implorar para que  voltemos a juntar-nos.

Sorte a minha ter a Aninhas, a quem contei todas as minhas venturas e desventuras. A única pessoa a quem revelo as minhas fraquezas, as minhas frustrações, as minhas inseguranças. Acompanhou-me numa consulta médica e decidiu que eu viria com ela para a quinta.

O galo continuou a cantar. É o tempo dele, pensei. Nada posso fazer. Se tem que cantar, que cante!
Acordada, decidi que iria levantar-me, arranjar-me e dar uma volta a cavalo pela vinha. Se tenho que esperar que o tempo me dê respostas, então vou desafiá-lo, da melhor forma possível, a fazer o que gosto e que me faz sentir bem. Não quero viver infeliz.
Afinal, preencher o vazio é também uma questão de tempo….
Luísa

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Memória Por Companhia


Percorri a muralha do castelo, imponente e altaneiro. É estranho como lá no alto da pequena montanha,  outrora fortificada para protecção do território das sucessivas invasões, a sensação de paz e liberdade se entranha na alma. Certamente que a geografia tem aqui uma forte componente. A imensa paisagem em torno da muralha, erguida a uns oitocentos e cinquenta metros de altitude, dá-nos uma amplitude magistral  sobre um horizonte sem fim, onde ao longe se vislumbram cadeias de montanhas que recortam um cenário perfeito. O silêncio impõe-se ao redor, deixando que a imaginação extravase o horizonte e se inebrie de histórias possíveis ou impossíveis, mas que colocadas ali fazem todo o sentido. Na várzea avistam-se hortas, pequenas quintas, lugarejos povoados por aqueles que resistentes, nunca quiseram partir à procura de melhores condições de vida, nas cidades ou no estrangeiro. Do outro lado, um campo de golfe a anunciar que afinal o tempo não parou por estas bandas, e até há quem goste de desfrutar da qualidade, do sossego e da hospitalidade das gentes puras e genuínas. Mais além adivinham-se vestígios de uma antiga povoação romana, ou não fosse esta zona uma importante via de circulação e de fixação de pessoas nos tempos de Júlio César. Era aqui que passava a estrada romana que ligava Cáceres a Santarém.
Espanha de facto é logo ali. Aqui no alto consegue-se seguir a estrada que conduz a nuestros hermanos, em não mais do que dez minutos de carro. Outrora rota de contrabandistas, o caminho entre La Fontañera, Galegos e Marvão está repleto de histórias de vida daqueles cuja fonte de sustento era o transporte ilegal de bens, sobretudo o café, e assim, a coberto da noite e de muitos perigos,  garantiam não só a sobrevivência das suas famílias, como também da parca economia de toda uma comunidade. Já no topo norte da muralha,  uma outra realidade. A majestosa Serra da Estrela, impõe-se ao fundo, depois de ser possível distinguir terrenos pedregosos e inóspitos, onde em tempos os Lusitanos se esconderam e defenderam a terra Lusa.
Tanta história… tanto património … um encher o peito e respirar por todos os poros …
No meu imaginário e recorrendo-me de todos os conhecimentos que fui adquirindo, das pesquisas e das muitas conversas, consigo pintar estórias que depois quero escrever.  Como precisava fazer este corte com o chamado mundo real, e remeter-me a este espaço de paz e de silêncio, apenas interrompido por um ou outro visitante mais barulhento…
Tenho na minha frente o pôr do sol mais deslumbrante dos últimos anos. Por entre as ameias da muralha, o sol cai lentamente num imenso céu azul laranja, pintando o horizonte de tons verde dourado e cinza alaranjado. Não me canso de fotografar as várias etapas deste fim de dia, sentado que estou no local mais privilegiado para tal. Uma tónica gelada e alguns salgados fazem-me companhia neste terraço de alma, já que outra companhia não tenho, a não ser a memória de quem partiu, mas persiste em ficar, deixando-me o sentimento de que nunca a perdi.
De facto, todas as histórias de amor têm personalidade própria. Têm um início, pelo fascínio, pela admiração, pela descoberta do outro, e a não ser as histórias de amores enraizados e à prova de tudo, todas, um dia terão um fim. Neste cadeirão virado ao pôr do sol, recordo a sua presença, os seus olhos claros, a sua voz pausada, mas também as suas incertezas, a insegurança e o sonho de encontrar a sua outra metade, em alguém que roçasse a sua noção de valentia e segurança. Continuo a sentir-me fascinado por aquele sorriso franco, pela compostura das suas frases, pela sua doce fragilidade quase a implorar que lhe desse a mão e lhe mostrasse o caminho da vida. Uma mulher-menina, que aprendi a amar, a aceitar e cuja separação me provocou uma dor profunda. Conforta-me o facto de sentir que contribuí para o seu crescimento interior, para a sua afirmação enquanto pessoa, e que hoje a mulher-menina que guardo no peito e na memória,  é toda ela mulher. Desgraçado me senti quando percebi que a nossa história tinha acabado. Uma página de vida arrancada ao caderno onde escrevo o rascunho dos meus dias.
Neste refúgio de silêncio, de paz e de natureza, longe do mundo “normal”, procuro aceitar uma separação que não impus, apaziguar esta dor que me corrói e encontrar um novo sentido para a vida.  
E do alto da muralha, entre as ameias onde o sol já teima em esconder-se, percebo que tudo na vida tem um propósito. Escolhi um penhasco com um castelo encarrapitado, não para afogar as minhas mágoas, mas sim para que toda a simbologia e espiritualidade do local, me ajudem a conviver com a realidade, com a força das pedras e dos homens que há muitos séculos atrás, ergueram esta fortificação. O vasto horizonte que vejo mais não é do que o futuro ali, a meus pés, e que apesar dos pedregulhos espalhados pelo caminho, existirá sempre um amanhecer e um por do sol para viver e apreciar. Ainda que a tua memória me acompanhe…
Luís

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Guardião da Vida


… Cansa-me já a mão, mas és tu a minha única forma de desabafar. Estranho sentimento este que tenho em relação ao mundo lá fora. Aborrecem-me as pessoas. Aborrece-me a corrida para nenhum lado, a agitação sem sentido, o ruído de fundo que me perfura o cérebro e me incomoda. Por força das circunstâncias tenho que sair todos os dias para ir às aulas e para trabalhar. Não fosse este meu nicho de clausura tão próximo de tudo e muito provavelmente teria desistido de lutar pelo meu sonho, ou pelo menos talvez o tivesse adiado.

Dizem que quando somos novos nos habituamos e tudo e que as adaptações são rápidas. Nem tanto… Claro que partir com a intenção de conseguir “bagagem” para a realização de um sonho de vida é motivação mais do que suficiente para nos dispormos e nos expormos ao que vier. A descoberta de novos  horizontes, de novas culturas e de novas pessoas dá-nos sempre um frenesim que faz aumentar os nossos níveis de adrenalina. Gosto da fase. Da descoberta, da revelação, da imaginação. Quando tudo é novo e de tão distante que parecia, percebemos que afinal o virar da esquina até fica logo ali, e por mais longínquo que seja o teu paradeiro, o mundo continua a girar, apesar de a paisagem ser outra, de as casas terem outras configurações, de os monumentos escreverem outras histórias, ou de as pessoas falarem línguas diferentes. Quando aqui cheguei com duas mochilas às costas e um saco de mão, foi para mim o descobrir de um novo mundo e de uma nova realidade que apenas conhecia da televisão, dos jornais e das revistas que ia comprando sempre que me sobravam uns tostões. Não vinha com quarto marcado, nem tão pouco conhecia o sistema de transportes. As primeiras noites passei-as naquilo a que chamamos pensão, numas águas furtadas de um edifício algo decadente, mas num bairro que me pareceu simpático e com gente gira.  O quarto era exíguo, com uma cama de solteiro e uma cadeira, sendo a casa de banho partilhada entre todos os seis quartos do piso. Vantagem: o preço incluía um bom pequeno-almoço inglês que já ajudava a suportar metade do dia.  Na manhã imediata à chegada dirigi-me à Escola para fazer a inscrição, saber horários e  perante eles, aferir da possibilidade de arranjar trabalho por perto, por forma a conseguir ter uma vida minimamente equilibrada, não sobrecarregando o orçamento mensal dos meus pais, que embora me tivessem apoiado na decisão, me fizeram ver que estar fora de casa e do país, seria um peso acrescido na sua folha de encargos, e que como tal, todos os gastos teriam que ser milimetricamente  estudados. Descansei-os ao afirmar que não era minha intenção partir em busca de um sonho e assumir que suportassem a totalidade dos custos inerentes. Que iria arranjar trabalho, fosse onde fosse. As aulas começavam dentro de dez dias. A senhora que me acolheu na Escola foi de uma simpatia extrema e fez-me uma visita guiada que me deslumbrou, apresentando-me a professores que por lá circulavam, a funcionários, e referindo-se a mim como o promissor Português. Perguntei-lhe o porquê, ao que disse ter sido ela a analisar a minha candidatura e desde logo lhe ter chamado a atenção. Não posso dizer que não me envaideci um pouco… mas rapidamente desci à terra. Seria o meu primeiro ano numa Escola totalmente diferente, com metodologia, professores, matérias, colegas, e tudo o mais, diferente do que estava acostumado. Poderia correr bem, poderia correr menos bem…
Nessa mesma tarde comecei a procurar trabalho nas redondezas. Nada fácil… se o trabalho me aliciava, os horários não eram compatíveis; se conseguia encaixar as aulas, eram trabalhos que não tinham rigorosamente nada a ver comigo… Em simultâneo tentava encontrar um quarto mais próximo, para não perder muito tempo nos transportes. Nesses primeiros dias posso afirmar que fiquei a dominar toda aquela zona, tal a quantidade de vezes que percorri as avenidas e ruas secundárias a pé, a bater às portas ou a entrar por lojas, restaurantes e escritórios. Consegui um quarto razoável, aí com uns vinte metros quadrados mas com casa de banho privativa, num quarto andar sem elevador. Tinha ainda a possibilidade de cozinhar. Tinha boa luminosidade, a mobília era bastante aceitável,  e embora o preço fosse um pouco mais alto do que tinha orçamentado, o facto de poder deslocar-me a pé para a Escola, fazia toda a diferença. Além disso, estava a gostar imenso daquele bairro e poder ter ali o meu dia a dia agradava-me.
As aulas começaram sem que eu tivesse arranjado trabalho. Uma preocupação que não me largava. Certo dia estando eu a folhear a página de empregos de um jornal, fui interpelado pela senhora que me acolheu na Escola. Ao dizer-lhe que procurava trabalho para poder fazer face à minha permanência em Londres, mostrou um sorriso largo, disse-me para a acompanhar e chegados ao seu gabinete fez um telefonema. Percebi que existia uma vaga no centro de documentação de uma qualquer entidade. Deu-me um nome e uma morada e disse-me a que horas deveria lá estar.
No regresso, de tão feliz que estava e não sabendo como agradecer à minha “fada-madrinha”, comprei um enorme ramo de flores, e entrei Escola adentro como se pisasse algodão. Não era apenas o facto de me ter arranjado trabalho, era o facto de ser um trabalho “à minha medida”. Poderia assim complementar a minha formação pessoal com outros conhecimentos, pesquisas, e trabalhos a que tivesse acesso. Afinal somos um todo que se completa e complementa nas várias vertentes do saber e do conhecimento.
Um ano, dois anos, três anos… a distância do país, da família e dos amigos cada vez me custava mais… Se o entusiasmo inicial num país diferente foi para mim motivador e fonte de energia para conciliar tudo, o certo é que o cansaço e algum desalento se foram instalando. Como foi possível que em três anos o mundo tivesse mudado tanto? Guerras, injustiças, egoísmo, interesses, tudo a desaguar para um mar de dificuldades. Resiliência? Persistência? Nem sei o que dizer. Se calhar chamo-lhe sobrevivência… Nunca pensei que fosse tão difícil sobreviver para tentar concretizar um sonho, ainda por cima com um início algo facilitado… Estava farto de noticiários, sempre iguais ou piores, estava farto da correria das horas, quase sem tempo para mim, estava farto do barulho do trânsito, do ruído dos cafés e dos restaurantes, e talvez, farto de mim.
Falta de companhia, diziam uns, “tens que arranjar uma namorada”, diziam outros. O certo é que todos os relacionamentos que fui tendo não passaram de aventuras passageiras, excepto uma, que sendo de pouca duração, foi aquela que me “agarrou”.
Cruzámo-nos no corredor da Escola. Ela nervosa e lacrimejante. Nunca tinha reparado naquela miúda. Perguntei se precisava de ajuda e ofereci os meus préstimos. Uns olhos verde cinza agradeceram-me, mas não. Era apenas um momento mau. Convidei-a a tomar uma água. Acedeu. Após alguns minutos de silêncio, respirou fundo e agradeceu. Reparei que falava com sotaque, talvez francês. Não me enganei. Marie, assim se chamava era de Avignon, cidade da Provence. Para quebrar o gelo comecei a cantar “Sur Le Pont d’Avignon” e ela esboçou um sorriso. Era linda, algo mística. O nervoso e o choro deveram-se ao facto de ter sido assaltada a cerca de cem metros da Escola e ter ficado sem documentos de identificação. De novo ofereci-me para ajudar. Ao fim de três anos já sabia todas as voltas a dar. Agradeceu-me.  Depois da conversa banal sobre a cidade à beira do Rhône, os monumentos, a beleza dos campos e das povoações da Provence,  fiquei a saber que Marie tinha ganho uma bolsa de investigação que lhe permitia desenvolver um trabalho em várias Escolas de vários países, estando agora em Londres. A conversa fluíu. Era uma miúda extremamente inteligente, com rumo, que sabia o que queria.
Escusado será dizer que nos fomos aproximando cada vez mais e sempre que os nossos horários o permitiam arranjávamos programa, fosse para descobrir recantos daquela cidade intensa, fosse para simplesmente apanhar sol na relva de Hyde Park, para assistir a espectáculos, ou apenas para estarmos juntos. Sentia-me bem na sua companhia. A sua forma de estar era firme e devolvia-me alguma confiança entretanto perdida.  Marie começou a ser o meu chão, o meu tecto, a minha âncora. Apesar de saber que a sua permanência em Londres não seria igual à minha, e dentro de meses partiria para um outro país e para uma outra Escola, evitava a todo o custo fazer futurologia e pensar na angústia desse inevitável momento.
Percebi que para ela era também uma espécie de porto de abrigo, embora não se detivesse muito em perguntas sobre mim ou sobre a minha vida. Afinal ela sabia que estava de passagem. Gostava que lhe falasse de músicas, de poesia, de cultura em geral e que cantasse para ela. Disse-me um dia que a minha versão de “Sur Le Pont d’Avignon” no dia que nos conhecemos, foi para ela sublime e um flash. Banal, pensei… Da minha boca ouviu jazz, blues, pop, e teimei em dar-lhe a conhecer a boa música portuguesa do momento. Ao som de Rui Veloso vimos se ainda havia estrelas no céu, ou ao som dos GNR rebolámos como nas dunas, para logo o Pedro Abrunhosa nos lembrar de viver o momento e o Jorge Palma em coro comigo pedir para ela se encostar a mim.
Sempre que Marie não tinha trabalhos muito específicos para fazer e que requeriam muita concentração, ocupava comigo os vinte metros quadrados do quarto andar, e juntinhos partilhávamos a cama, as noites feitas dia e os dias feitos noite, onde nos amávamos sem destino, sem hora, mas com um querer e um prazer celestiais.

… Não sei se voltarei a rever Marie. Corrói-me a vontade que tenho dela. A minha vida continua a perder sentido.
Hoje, morto de saudades, afogo as minhas angústias existenciais em ti,  caderno, fiel depositário dos meus pensamentos, das minhas paixões, das minhas desilusões, das minhas raivas e das minhas tristezas.  Tu és o guardião daquilo que a vida nos oferece: num dia em cima, noutro dia em baixo.
Rui e Marie