Acordei com o galo a cantar.
Entreabri os olhos a custo e olhei ao relógio. Cinco horas e quarenta… Virei-me
na direcção da janela que tinha deixado
entreaberta e o amanhecer anunciava-se. Que chatice, pensei para mim. Acordar tão
cedo não faz sentido nenhum. Estava exausta, extenuada física e
psicologicamente. Precisava descansar, desligar do mundo. Por isso os meus
primos me trouxeram para longe. “Precisas mudar de ares, de paredes, de caras e
de rotinas, portanto vais connosco passar uns dias na quinta e verás como ficas
melhor e mais leve “ - a ideia não me desagradou. Afinal gostava imenso da
quinta e daqui só tinha boas recordações.
As nossas férias de crianças numa correria que esgotava a D.Manuela, a
empregada que se ocupava dos “meninos”. Com ela aprendemos alguns segredos de
jardinagem, de agricultura, de doçaria, ouvíamos histórias fantásticas,
organizávamos acampamentos dentro do perímetro da quinta, fazíamos gincanas,
teatros, concursos de poesia, festivais da canção,
enfim… memórias de um tempo feliz onde a imaginação e a criatividade
falavam mais alto. Não tínhamos muitos brinquedos, nem eram eles que nos prendiam. Sentíamo-nos livres e por isso o desafio diário consistia em
imaginar um programa que agradasse a todos. Os nossos avós, que por altura das
férias mudavam armas e bagagens para a quinta, entretinham-se nos seus
afazeres, com os seus convidados, que eram sempre muitos, e nós, acarinhados e
com a cumplicidade da D.Manuela organizávamos os nosso “reino” de fantasia.
Fomos sempre mantendo a tradição
das férias em família até os calendários começarem a complicar-se por causa da
escola, altura em que os três meses de férias começaram a encolher, passando
a resumir-se a Agosto. Depois começaram
os namoricos e outras opções como destino. A D.Manuela ia avançando na idade,
as nossas brincadeiras estavam já noutro patamar, e os avós estavam velhotes,
não sendo aconselhável tanta agitação em volta.
Nós, primos e irmãos fomo-nos
afastando lentamente da quinta. Uns porque após a faculdade organizaram as suas
vidas fora do país, outros porque preferem passar os quinze dias de férias
seguidos noutras paragens, outros, porque têm vidas muito ocupadas e
dificilmente conseguem abrandar e retornar ao sossego. Excepção para a Aninhas,
a Lu e o Zé Pedro. Apesar de terem já as suas famílias formadas, mantiveram a
tradição de passar uma temporada na quinta todos os anos. É o rejuvenescer e
reviver da tradição familiar, que muito me agrada.
Eu, pessoalmente, não vinha à
quinta há cinco anos. Uma espécie de choque, quando passei o portão e parei em
frente à escadaria da casa. Era ali que os avós nos esperavam, sempre. Um
sorriso aberto e um abraço onde cabia o mundo. Ontem, apenas os actuais
caseiros nos receberam. Não os conhecia. Sabia que o Sr. Manuel e a D. Florbela
já estão reformados, embora a viver no anexo que sempre habitaram, e já
remodelado. A D.Manuela, a nossa adorada D.Manuela, está num lar, acometida que
foi por uma doença do foro neurológico.
Tão triste que fiquei quando soube… Irei visitá-la, e ainda que não me
reconheça, irei dar-lhe um grande abraço.
Já em casa, um aperto no peito e
uma lágrima teimosa acompanharam-me até ao quarto. O quarto das hortênsias,
assim chamado por ter um terraço com dois canteiros onde tufos de hortênsias
lilases, rosas e brancas lhe conferem um charme discreto e simples, com tonalidades agradáveis. A decoração do
quarto tinha sido renovada, mas curiosamente manteve o espírito de sempre. Os
móveis foram reciclados e pintados e os adereços encaixam na perfeição. É o quarto que eu ocupava com a Aninhas e a
Lu, o nosso templo dos sonhos onde as três camas que resistiram aos saltos e
aos anos, ocupam o mesmo espaço. Até o enorme sofá foi estofado, permanecendo
no mesmo lugar.
Depois do jantar, melacólica que
estava fui dar uma volta a pé pelos caminhos da quinta, respirar aquele
silêncio, o ar puro, a liberdade. Lembrei-me das corridas de bicicleta e dos
jogos de escondidas. Lembrei-me do avô a proteger as meninas das “garras” dos
rapazes que tentavam encontrar-nos e que do alto das suas vozes de cana rachada
gritavam “rebenta!” a quem conseguiam encontrar. Os freixos continuavam
imponentes a ladear o caminho que conduzia à piscina e à adega. Sentei-me numa
espreguiçadeira e tentei adivinhar as estrelas como era nosso hábito. Sabia-me
bem o fresco da noite na cara e nos ombros. Por ali fui ficando, avivando
memórias, doces memórias de um tempo em que fui feliz.
- Sabia que estarias aqui. Não
sentes frio? Trouxe-te uma écharpe para os ombros. - Era a Aninhas, a minha
prima sempre atenta, sempre querida, sempre presente.
- Olha, acreditas que me está a
saber bem o fresco? Sinto-me respirar de outra forma, mais leve… Obrigada
querida. Estive a olhar para as estrelas como fazíamos em pequenas. Sinto-me
tão estranha… uma parte de mim está nostálgica, outra parte de mim tenta estar
em paz, e outra ainda sente um aperto tão grande no peito e um nó na garganta…
- É por isso que insisti para que
viesses. Vais ver que a boa energia de todas as recordações que tens da quinta,
te vai ajudar. Nós estamos aqui contigo e tudo faremos para que te sintas bem.
Sabes que podes contar connosco. Tens que fazer reset e seguir noutra direcção.
Estes dias na quinta vão servir para desligares um pouco do mundo e poderes
pensar e reequacionar aquilo que necessitas mudar. Não é fácil, eu sei, mas
vais ver que o contacto com a natureza te vai fazer bem e te vai ajudar a
organizar as ideias. Não te sintas obrigada a nada. Apenas quero que faças
aquilo que te traga bem estar.
- Aninhas, és e sempre foste o
meu anjo da guarda! A minha prima querida, amiga, ponderada. Concordo contigo.
Acho que me vai fazer bem. Estúpida que fui, ter-me afastado durante estes
cinco anos… afinal foi aqui que sempre tomei as grandes decisões da minha vida,
segredos que só contigo partilhei, bons e menos bons …
- Só podia! Aqui estão as duas
ladies em amena cavaqueira e nós com o gin preparado à vossa espera! - Zé Pedro
e a mulher, Isabel, apareciam no outro lado.
- Vamos lá meninas, estamos todos ansiosos pela vossa companhia! Juro
que tenho guardadas umas boas histórias para a nossa recém-chegada soltar o
sorriso.
O serão passou-se entre
recordações, conversas mais sérias sobre a vida, sobre o país, sobre a
importância que esta propriedade teve e tem na nossa existência. Sem dúvida, as
nossas referências estão aqui ligadas.
Quando fui para o quarto,
sentia-me mais confortada, mas com um enorme vazio com o qual não estou a
conseguir lidar bem. Foram cinco anos de uma relação apaixonada, intensa, mas
turbulenta. Conheci o João numa viagem que fiz a Nova Iorque. Eu ia de férias
com duas amigas, ele ia aceitar uma proposta de trabalho. Ficámos em lugares
lado a lado no avião e percebendo a nossa excitação pela primeira viagem aos “Estates”,
meteu conversa connosco e lá foi dando algumas indicações sobre o metro, sobre
como rentabilizarmos o tempo por forma a podermos tirar o máximo partido da
viagem, sobre a localização de restaurantes de portugueses onde se comia bem e
não muito caro, enfim, foi o nosso cicerone. Tal foi a conversa e o entusiasmo
que nem nos apercebemos das longas horas de viagem. Chegados ao aeroporto,
trocámos contactos para alguma eventualidade, e João mostrou-se disponível para
nos acompanhar algumas vezes e nos dar a conhecer aquela cidade tão fantástica
e que ele dominava tão bem, fruto das seis temporadas que já lá tinha estado em
férias. Mal sabia eu que naquele avião se tinha começado a escrever um capítulo
da minha vida… De facto, quase todos os dias nos encontrámos com o João, que
incansável nos guiou por inúmeros lugares de Nova Iorque. Era um sujeito
interessante. Culto, com discurso fácil, coerente e que mostrava grande
segurança. De estatura alta e entroncado, sorria facilmente de forma que os
grandes olhos castanhos pareciam também sorrir. Fácil alguém apaixonar-se… E
esse alguém, fui eu …
Infeliz, regressei a Portugal no
final de uma viagem fabulosa, com o pensamento completamente toldado pela
paixão. João, fez-me acreditar que também se sentia infeliz pela minha partida.
Nas semanas seguintes vivi presa no computador e no telemóvel, quase a
alucinar. Um dia enchi-me de coragem e disse aos meus pais que queria ir
trabalhar para os Estados Unidos, mais propriamente para Nova Iorque. Foi uma
bomba na família! Como, para onde, porquê? Eu, filha única, a ir para o outro
lado do mundo… não podia ser… Pela primeira vez na vida enfrentei a família e
com uma posição firme, disse não ter volta a dar. O João já me tinha arranjado
trabalho na mesma empresa dele, embora num outro departamento e num outro lado
da cidade. Durante o três meses que durou o vai, não vai, fui-me organizando
por forma a ter tudo tratado quando fosse a hora de partir.
Não fui atrás do sonho Nova
Iorquino, mas sim do sonho “Joanino” …
Entusiasmou-me começar uma nova
vida longe de tudo e de todos, num país que me desafiava e que me dava (achava
eu) a oportunidade de me realizar como profissional e como pessoa, e sobretudo,
viver a minha paixão.
Não nego que os dois primeiros
anos foram intensos e felizes.
O tempo foi passando, e ao
passar, começou a trazer problemas. Como
em todas as relações, foram acontecendo episódios mais ou menos tóxicos que
foram interferindo com a nossa vida e com a nossa paixão. O João, super
perfeccionista em tudo, transformou-se e
não era mais o “meu” João. A vida em
Nova Iorque também se modificou bastante após os incidentes relacionados com o
11 de Setembro. O sonho começou a desvanecer-se, e antes que a nossa relação se
degradasse mais ainda, decidimos afastar-nos, para nosso bem, para que pudesse
restar ainda um pouco da amizade que nos unia e da admiração que apesar de tudo
tínhamos um pelo outro.
Senti-me a mais infeliz das
pessoas. Tinha um bom trabalho, mas estava profundamente desmotivada. Os amigos
que tinha feito entretanto, deixaram de me fazer sentido, pois eram os nossos
amigos comuns, e estava sempre a reviver histórias de uma vida recente. Comecei
a detestar o barulho das ruas, o movimento de pessoas, de tal forma que meti
baixa e fiquei em casa. Um dia, como um clique, decidi regressar. A experiência
profissional que tinha adquirido, seria um bom cartão de visita para qualquer
empresa em Portugal e não teria dificuldade em arranjar trabalho. Se fosse
preciso, começaria do zero. O trabalho nunca me meteu medo. Avisei o João da
minha decisão e em duas semanas parti.
Terá sido a opção correcta? Não
sei. O tempo o dirá. Afinal, o tempo é aquilo que nos traz as certezas na
altura certa, que nos devolve a esperança, que nos norteia, com calma.
Não existe um dia nem uma noite em
que eu não sinta a falta do João. Deitar-me e acordar sozinha sem o calor do
seu corpo, tem sido extremamente penoso,
e por isso tenho passado a maior parte das noites acordada, num estado
pré-febril, onde permanentemente o vejo, assim que fecho os olhos. Não consigo
esquecê-lo e penso que esta fixação está a tomar conta de mim. Sei que entre
nós existe um oceano imenso, mas no silêncio parece-me ouvi-lo chegar com a sua
voz grave e como sempre dizer: olá princesa, como correu o teu dia? E a este
som, correr na sua direcção, abraçá-lo e implorar para que voltemos a juntar-nos.
Sorte a minha ter a Aninhas, a
quem contei todas as minhas venturas e desventuras. A única pessoa a quem
revelo as minhas fraquezas, as minhas frustrações, as minhas inseguranças.
Acompanhou-me numa consulta médica e decidiu que eu viria com ela para a
quinta.
O galo continuou a cantar. É o
tempo dele, pensei. Nada posso fazer. Se tem que cantar, que cante!
Acordada, decidi que iria
levantar-me, arranjar-me e dar uma volta a cavalo pela vinha. Se tenho que
esperar que o tempo me dê respostas, então vou desafiá-lo, da melhor forma
possível, a fazer o que gosto e que me faz sentir bem. Não quero viver infeliz.
Afinal, preencher o vazio é
também uma questão de tempo….
Luísa