quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Maré


Eram oito da manhã e o meu desejo era que a noite caísse e os ponteiros indicassem que já eram horas de me deitar. Mais uma noite mal dormida, angustiante, num reboliço de lençóis e almofadas, onde a cabeça latejava.
Tinha já perdido a conta dos dias e das noites deste estar. Uma amargura o amanhecer, em dias que se sucediam, como os degraus que conduziam ao meu apartamento, encarrapitado num loft sem elevador. Não via esperança, nem tão pouco o sol nascente que entrava pela enorme janela do terraço, tinha o condão de me animar. Muito pelo contrário. Ante o vazio dos dias, suspirava pela noite, pelo breu e pelo momento em que julgava que tudo tinha parado do outro lado do meu mundo. Não conseguia motivar-me para saír de casa, e como qualquer pessoa comum, procurar a vida. Tinham sido três anos duros, de mudanças sistemáticas, de frustrações, de revolta e injustiça. Lido mal com a injustiça e com a falsidade. Talvez exagere na minha entrega e o meu grau de ingenuidade seja elevado. O certo é que acredito nas pessoas, na sua “aparente” disponibilidade e bondade, e acabo sempre por me desiludir.
Arranjei um copo com leite gelado e sentei-me no terraço. Em frente, o rio corria tranquilo, numa imagem  de espelho, azulado, saudável e intimista. Privilégio meu poder desfrutar a vista, sem que nada se interpusesse. Ao longe ouviam-se vozes. O dia tinha há muito começado a dar sinais de vida. Fui bebericando o leite, sem qualquer vontade e consegui enganar dois biscoitos que jaziam na caixa que a Marta me tinha trazido há quinze dias. A cabeça continuava pesada, de tal forma que os olhos me doiam por dentro. Recostei-me na espreguiçadeira e semi cerrei-os, numa tentativa de alívio. Um apito despertou-me daquele meio torpor. Era um navio a entrar na barra. Parecia querer cumprimentar a cidade. Detive-me a olhá-lo e a imaginar quem seriam os passageiros e ao que viriam. Turistas, curiosos, meros viajantes, solitários ou famílias, tudo era possível… Nunca tinha feito um cruzeiro, nem sequer era coisa que me fascinasse - já que era muita gente num mesmo espaço durante demasiado tempo, num convívio obrigatório -  mas dei comigo a pensar que nesta minha privação de um mundo exterior por opção própria, me começavam a faltar os rostos. Gosto de olhar para os rostos, estudá-los, percebê-los para além do visível. Talvez pelas decepções que fui apanhando, comecei a ter uma atitude mais radiológica em relação aos outros.
Dez horas… e ainda faltam tantas para anoitecer … Preciso saír de casa, pensei. Tenho que me libertar desta prisão de mim mesmo, a que me reduzi nos últimos tempos.
Tomei um duche, agarrei numa pequena mochila e desci os seis lances de escadas que separavam o meu refúgio do mundo real. Há seis meses que tinha ali “aterrado” e há quatro que não ia à rua. Fazia as compras on line e trabalhava à distância. Duas vezes por mês a minha prima Marta visitava-me e levava-me uns mimos. Era a única pessoa a quem dava acesso ao meu espaço físico e interior. Gostava de falar com ela. Ouvia-me, nas minhas palavras e nos meus silêncios, e respeitava-os. Tinha uma vida demasiado preenchida e muitas vezes me falou sobre a necessidade de abrandar, e no equilíbrio, na tentativa de me fazer pensar que a solução está sempre no bom senso, nos pratos da balança, que não devem pender em demasia para nenhum dos lados. 
Senti-me uma espécie de zombie. Fiquei atordoado com o barulho dos carros. Caminhei um pouco e depois de comprar o jornal, sentei-me numa esplanada para tomar um café e uma água. Como gostei do cheiro do papel de jornal… parecia ter vindo de outra época… passei os olhos pelas “gordas, guardei-o na mochila e voltei a caminhar, não sem antes me ter rendido novamente ao comprimido que me atenuava as dores de cabeça persistentes. Efeito psicológico ou placebo, era já um vício, apesar de saber que a toma contínua era prejudicial.
Dei comigo a entrar para o barco que fazia a ligação entre as duas margens. Talvez tivesse sido o apito matinal do navio a conduzir-me. Sentei-me no convés superior, a descoberto do sol. Soube-me bem o sol no rosto e na pele,  e a brisa que me afagava, com meiguice. Durante os vinte minutos de travessia fui-me detendo nos rostos, nos traços das minhas companhias de “viagem”. Curioso como num planeta tão povoado, todas as fisionomias e feições são diferentes. Jovens, menos jovens, gente de trabalho, apaixonados, solitários, escritores, pintores,  todos cabiam naquele barco, que mais não era do que uma amostra de mundo. Rostos cansados, sofridos, outros radiantes e alguns pensativos ou observadores. Tentei adivinhar ao que iam e na minha cabeça criei histórias para cada um daqueles que me despertou a atenção.
Já na outra margem telefonei a Marta. Talvez estivesse em casa e aceitasse almoçar.
No regresso senti-me cansado. A cabeça continuava a doer-me, mas o meu olhar e o meu ânimo eram diferentes. A Marta ficou contente por me ver e depois do almoço enquanto os miúdos se entretinham a atirar pedras para o leito do rio e a contar os barcos ancorados na marina, conversámos longamente sobre as minhas angústias existenciais e sobre a necessidade de saír da reclusão, encarar a vida e as pessoas e ter a coragem de abraçar o mundo tal como ele é, mas não perdendo nunca de vista os meus princípios e os meus propósitos. Dei-lhe razão. Fechar-me em mim trouxe-me não só solidão, como um alhear do que me rodeia, já que propositadamente cortei a ligação da tv e os gigas da net que tenho disponíveis, chegam apenas para trabalhar. O telefone há muito que está em modo avião e quase me serve apenas de relógio. De facto, existem momentos em que necessitamos ficar a sós connosco próprios, para percebermos qual o nosso lugar e o nosso papel no caminho da vida.
Anoiteceu. Não me entreguei à cama na ânsia de fechar os olhos, dormir e fazer que não existia. No terraço percebi que tinha um lugar único sobre a vida que se sentia lá fora. Sobre o rio que trazia consigo a boa energia das marés. A lua quase explodia de luz. Fiquei a olhá-la como nunca a tinha olhado. Quis que fosse cúmplice dos meus pensamentos e decisões. Já não me doía a cabeça e nem me lembrei dos comprimidos.
São oito da manhã… acordei leve e bem disposto. Está sol.  O navio apitou de novo. Vai de saída. Se descer as escadas rápido ainda consigo vê-lo saír da barra…
Nuno

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Saber Escutar o Tempo


Estavam nervosos, embora tentassem disfarçar e manter uma postura descontraída. Sabiam que o fim de semana não seria fácil, como fácil não é qualquer despedida de quem se quer bem.
- Já acabaste os telefonemas todos?
“Quase todos. Só me falta ligar à minha tia Maria, à Anabela, ao meu primo Manel, à Bibi e à irmã e…”
- Olha, e se deixasses os telefonemas para depois?... Afinal, estes são os nossos dois últimos dias antes de partires e desde que saímos de ainda não largaste o telefone cinco minutos… Não pensei passar o fim de semana com um telefone, mas sim contigo… - Francisco mostrava-se desgostoso e descontente. Apesar de compreender a partida de Luísa, tinha imensa dificuldade em aceitar a distância que os ia separar por tempo indeterminado. Era uma pessoa frágil e com algumas inseguranças, que tentava encobrir através do seu lado mais extrovertido.
“Francisco, tens que perceber. Quando terminar todas as chamadas, fico liberta para nós. É como se não existisse telefone. Não fiques aborrecido, vá lá…”  - Luísa era despachada, prática, não empatava e tinha uma sinceridade tamanho do mundo nos olhos.  Era uma pessoa de objectivos traçados, que tentava cumprir a todo o custo. Não admitia falhas consigo própria, e por isso era também muito exigente com as outras pessoas, sobretudo com as que lhe eram próximas.
- Não é uma questão de ficar ou não aborrecido. É sim questão de querer aproveitar todos os minutos que nos restam, para estar contigo, sem interferências. Luísa, sabes o quanto me custa a tua partida. Não quero falar disso agora, nem quero que te sintas mal por isso, mas sonhei este fim de semana sem telefones, desculpa.
“ Ok…. Vou ser breve e dentro de minutos sou toda tua, meu amor. Olha, queres ir marcando mesa no restaurante onde costumamos ir quando cá vimos? Assim não corremos o risco de ter que ficar na fila como na última vez. E se quiseres, podes encomendar o peixe também.”
Iria sentir falta da determinação e afirmação de Luísa. Muito lhe devia do patamar de estabilidade a que tinha chegado. Sempre tivera namoradas, umas giras, outras nem tanto, mas nenhuma conseguiu chegar tão dentro como Luísa. A sua voz tranquila e limpa,  penetrava-lhe os sentidos, deixando-o perfeitamente desarmado e acalmando-lhe a inquietude inata.  Passavam horas a conversar, e quanto mais tempo passavam juntos, mais dificuldade Francisco tinha em se separar. Não sendo psicóloga, foi Luísa que o estudou e o ajudou a caminhar numa fase de alguma turbulência emocional, em que duvidada de si, da vida e da sociedade. Revelou-lhe fraquezas, questões mal resolvidas, caminhos inseguros e ela, sempre paciente e terna, foi ouvindo, questionando, ajudando e trouxe à tona um novo Francisco, que agora, nervoso, sofria com a sua partida.
Tinha aceite uma bolsa fora do país, ganha por mérito num trabalho de pesquisa em que se envolveu profunda e apaixonadamente. Iria para Inglaterra dentro de dois dias, por tempo indeterminado. Também lhe era difícil partir sem Francisco, mas se na vida existem tempos para tudo, este era o tempo do grande desafio e enriquecimento pessoal. Afinal, o seu eu dizia-lhe para ir, pois só poderia estar bem com os outros, se estivesse bem consigo própria. E a bolsa ia fazer-lhe bem, seguramente. Sentia-se estagnada num trabalho e numa cidade que nada tinham que correspondesse aos desafios que ela própria se colocava. Apenas a prendia a relação com Francisco, que, chegada a este patamar, se era verdadeira, tinha forçosamente que sobreviver à distância. Afinal ir a Inglaterra faz-se com a mesma naturalidade com que se viaja do Algarve ao Minho e até demora menos tempo …
“ Ready. Terminei os telefonemas.” – Abraçou Francisco, que a acolheu apaixonado. Olhou-a nos olhos, beijou-a e com um afago doce e carinhoso apertou-a contra si, como se quisesse absorvê-la e impedir que descolasse dele.
- A mesa está marcada e o peixe encomendado, mas confesso que não saía daqui agora…
“Pois… eu também não… mas … é melhor irmos. Aliás, acho que estou a ficar com fome. Sim, apetece-me o peixe e um vinho branco gelado. Vamos!”
Teriam todo o fim de semana para se amar, para se olhar, para se acariciar. Ao serão observariam a lua e sob a sua luz perder-se-iam nas palavras, nos gestos, na respiração ofegante da paixão. Era deles a certeza da cumplicidade e da força da relação que viviam. Se Luísa era afirmativa e determinada, Francisco, aprendeu com ela que não existe conselheiro e professor melhor do que o tempo. É ele que determina o rumo e saber escutá-lo, no silêncio, é precioso.
Luísa e Francisco

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Alma


- Tão sossegada a olhar o horizonte… em que pensas Kica querida?
“Em ti…”
- Em mim, como? Bem ou mal?
“Não posso pensar mal. Não tenho razões para isso. Aliás, como poderia pensar algo menos bom de alguém que me tem feito tão bem?...”
Manel, envolveu-lhe o pescoço e os ombros com os seus braços e  beijou-a na testa. Olhou o luar, de um brilho intenso, e manteve-se assim. Kica recostou-se num afago meigo e doce.
- Posso saber onde é que eu andava então no teu pensamento?
“ Podes claro. Sabes, têm sido tão bons estes dias nesta paz de vista maravilhosa, que já tenho saudades…”
- Acredita que para mim tem sido uma bênção esta semana contigo. Por aqui ficaria mais uns tempos. Fazes-me tão bem, minha querida, mesmo quando estamos em desacordo ou refilas…
“Ahahah, olha lá o meu mau feitio … deves ser a primeira pessoa que me diz que a minha refilice lhe faz bem! Só tu mesmo …
- Falo a sério. A forma simples como colocas os assuntos, como equacionas a vida, tem-me feito pensar, e por isso me sinto tão bem ao teu lado. Já falámos bastantes vezes sobre as nossas diferenças de vida e de estar, mas no fundo, penso que toda a nossa relação se resume àquilo que é a simplicidade e a autenticidade. Gosto do teu despretensiosismo e da tua frontalidade, ainda que saibas que eu possa pensar de outra forma. Não receias dizer o que te vai na alma, e aprecio isso. Não gosto de pessoas que dizem sempre que sim, apenas para fazer jeito, mas que ficam a remoer. Nem mesmo daquelas que de tão ocas que são,  não conseguem ter uma opinião formada e deixam-se ir embaladas conforme o vento sopra. Para mim és um desafio que nunca tinha vivido. És uma luz que se acende quando o breu se instala e me desperta para o caminho.
“ Bem, com tantos elogios, fico sem jeito… Mas olha, eu sou assim, como vês. Não me vergo para fazer jeitos, tão pouco me calo se acho que devo intervir. Prezo a sinceridade e a honestidade acima de tudo e gosto das coisas simples da vida, como já percebeste. Estar aqui contigo, longe da civilização, a percorrer caminhos que nem imaginava,  comer em tascas de pura genuinidade, conversarmos horas a fio sentados no chão ou num muro qualquer, tem sido tudo aquilo que eu gosto e que eu sou.  Lido mal com frivolidades e aparências. Fujo delas a sete pés. Gosto de passar sem que reparem em mim, por forma a poder manter-me sempre quem sou em qualquer lugar e em qualquer ocasião. Podes até pensar que serei um pouco bicho-do-mato, o que possivelmente terá a sua pontinha de verdade, mas o certo é que ou estou bem, ou não estou. Cheguei àquele patamar em que não faço nada que vá contra mim.”
- É isso Kica querida. É isso que me encanta e fascina em ti. Seres tu. Como deves calcular, muitas pessoas têm cruzado a minha vida, mas sempre com um objectivo. Cansei-me dessa vida, dessa gente. Prefiro este recato, nosso, cúmplice, verdadeiro e simples, do que todos os outros caminhos que tenho pisado. Sei bem que dentro de dias voltaremos aos nossos mundos reais e que esta paz acabou. Mas enquanto a temos, e teremos mais vezes, se a vida o permitir, desfrutemos sem angústias e sem sofrermos por antecipação.
“ Não estou a sofrer por antecipação, meu amor. Aliás, estou muito, muito bem, como podes ver. Estava apenas a pensar que me fazes falta. Quando os rios e as pontes nos afastarem, o vazio vai aparecer, embora atenuado por tão boas memórias que vão viver comigo. Serão elas a dar-me alento para prosseguir os meus dias alucinadamente preenchidos. Já sinto falta desta paisagem, deste ar, deste cantinho tão maravilhosamente nosso. “
- Anda, vamos dar uma volta ao luar. Vou lá dentro buscar agasalhos.
Um gentleman. Simpático, educado, culto, divertido, temperamental e por vezes impaciente. Eis o homem por quem Cristina (Kica para Manel) se tinha apaixonado. Um amor sem explicação uniu-os, sabendo ambos de antemão quão difícil seria terem uma vida “normal” de casal. Talvez tivesse sido esse o desafio para ambos. Sobreviver a um relacionamento distante, gastos que estavam de relacionamentos moribundos e que nada lhes acrescentavam. Tinham as vidas profissionais separadas por muitos quilómetros, intensas e imprevisíveis, o que lhes dificultava a previsibilidade de momentos a dois. Aproveitavam todas as alturas em que havia algum vazio nas suas actividades para viverem dias só deles, longe de tudo e de todos, e onde só os dois existiam.
A noite estava luminosa. Uma aragem ligeira fazia lembrar que o Outono se aproximava. Caminharam por entre os vinhedos, juntos, na alma, no coração, e na paixão. O silêncio da encosta quase deixava ouvir a conversa das estrelas. Entre eles criaram histórias de pessoas improváveis, tão improváveis quanto eles,  e que mais tarde seriam transcritas. Entre o beijo, o afago e a gargalhada, tiveram a certeza de si. Almas gémeas? Não … não existem. Existe sim o gosto, a essência, a cumplicidade e um caminho de alma a percorrer…
Kica e Manel

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Imortal


A notícia chegou como uma bomba. Confesso que nos primeiros minutos não consegui articular uma única palavra. Tinha um nó enorme na garganta, a cabeça a latejar e um aperto no peito. Transpirava mas estava gelada e trémula.
- Que se passa Maria? Estás branca… Fala! Aconteceu alguma coisa? Estás de telefone na mão, hirta, como se fosses uma estátua… O que foi?
Não conseguia falar. Corri para o jardim e atirei-me para a piscina, ainda de pijama. Precisava sentir a água fria despertar-me daquele pesadelo e refrescar-me a cabeça ardente.
- Maria! Não estás bem! Fala, rapariga! Ana, Clara! Zé, Francisco, Rui! Cheguem aqui por favor! Passa-se algo grave. Não estou a perceber nada…
Depois de umas quantas braçadas e de mergulhar vezes sem conta, com todos em volta da piscina, cada um a gralhar para seu lado, saí e embrulhei-me na toalha que a Ana me estendia. “Maria, estás gelada. Toma, enxuga-te e vai mudar de roupa. Tem calma. Já percebi que se passa alguma coisa grave. Respira fundo. Queres que vá contigo lá dentro?” Não. Não queria ir lá dentro, nem queria mudar de roupa. Respirei fundo e sentei-me.
- Amigos, aconteceu algo terrível. Não estou a conseguir lidar com a situação, mas tenho que vos contar. É transversal a todos. Estamos todos no mesmo barco. É mau, muito mau …
As lágrimas começaram a caír numa torrente sem fim. A raiva, a revolta, o sentimento de injustiça apoderaram-se de mim.
- Então Maria… tem calma … Clara, trás um copo de chá frio com açúcar por favor.
Fui bebendo o chá e balbuciando palavras que ninguém entendia.
- Carro? Mas qual carro? Os carros estão todos à porta, excepto o do Paulo que deve ter passado a noite em casa da Lúcia de novo.
Ante o meu grito, fez-se silêncio … carro? Paulo? … “Aconteceu alguma coisa ao Paulo? Maria! Fala por favor!”
Com esforço e perfeitamente dessincronizada, lá consegui dizer que tinha recebido um telefonema da GNR a perguntar se conhecia um Paulo da Costa. Que esse Paulo tinha tido um acidente do qual resultou a morte imediata dele e da pessoa que seguia com ele, uma Lúcia Abreu. Que pediam que fosse ao hospital para fazer o reconhecimento dos corpos e avisasse os familiares.
Do silêncio geral, passou-se ao borburinho. Cada um a falar para seu lado. Que não, não era possível, como tinha sido, onde tinha sido, porque tinha sido, que o Paulo e a Lúcia não mereciam, que devia ser engano, Paulos da Costa pode haver muitos certamente …
- Gente, párem, por favor! É o nosso Paulo e a nossa Lúcia … Eu explico, mas calem-se um minuto. É mau demais e muito difícil para todos nós.
Era de facto muito doloroso. O nosso grupo de amigos vinha de há mais de dez anos. Todos os anos arrendávamos uma moradia grande nas férias e passávamos duas ou três semanas juntos. Éramos cúmplices, amigos, irmãos, e os namorados e namoradas que se iam juntando ao grupo, adquiriam o mesmo estatuto.  Era como se de repente nos sentíssemos amputados de uma parte de nós.
O Paulo despistou-se e foi embater numa árvore. Excesso de velocidade ao que o guarda me disse. De facto, sempre lhe conheci essa veia de adrenalina máxima ao conduzir. Gostava de velocidade e os carros que tinha, sempre potentes, desafiavam-no no asfalto. Muitas vezes lhe tínhamos chamado a atenção. Já não era nenhum garoto inconsciente e o prazer de voar pela estrada, tinha que ser refreado. Além disso, a sede de vida e o gosto com que desfrutava cada momento, por vezes tiravam-lhe o raciocínio lógico das situações. Vivia cada dia e cada momento como se fosse o último. Era um prazer imenso tê-lo como companhia. Nele não existia negativismo, e se a vida era para ser vivida, então que se cumprisse com o máximo prazer em cada momento. Amigo do seu amigo. Bem disposto. Jovial. Educação extrema e cultura apurada. Os olhos verdes rasgados faziam furor no sector feminino, que gostava de atiçar. Namoradas conheci-lhe muitas. Aliás, era-lhe difícil fixar-se numa por muito tempo, pois a forma como vivia, não era compatível com relações profundas e duradouras. Até que apareceu a Lúcia. Miúda pacata, que sabia gerir-lhe as emoções e os impulsos e por quem se apaixonou como nunca antes. Lúcia tinha casa própria não muito distante da nossa, e o Paulo por lá pernoitava sempre que ela conseguia conciliar três ou quatro dias de folga. Por isso não estranhávamos a sua ausência em casa de noite. Era uma relação já com mais de ano e meio, e apesar de Lúcia ser uma mulher para quem o valor da independência e da liberdade tinha um peso fundamental, o certo é que conseguiu através da sua noção de liberdade, gerir a liberdade do Paulo e torná-lo menos impulsivo e menos ávido de vida e de aventura. Gostava de os ver. Uma relação que todos testemunhámos, que de início nos pareceu estranha, mas que estava a dar frutos. “Contigo vou até ao fim do mundo”, dissera-lhe Paulo num dos nossos últimos jantares. Ironia do destino ….
O desespero era geral. Cabisbaixos, dirigimo-nos ao hospital, para aquele momento terrível da confirmação.
Regressados a casa, depois das formalidades, a única vontade que tínhamos era a de acabar com as férias. Não fosse a intervenção do Rui, e as malas eram feitas naquele momento.
- Meus queridos amigos, estamos todos muito tristes e com uma enorme sensação de vazio. Pode parecer a maior estupidez, neste momento, mas tenho vindo a pensar qual seria o desejo do Paulo no dia de hoje. De facto nos milhões de conversas que tivemos, a morte nunca foi tema. Estava muito longe dele, tal a paixão que tinha pela vida. Por isso, e se me colocar no pensamento dele, acredito que não quereria que estivéssemos tristes e derrotados como estamos. O Paulo está vivo nas nossas memórias, com a sua alegria, o seu charme, a sua bondade e a sua ponta de loucura sã, de que tanto gostamos e que tanto nos puxou para cima sempre que estivemos em momentos menos bons. Penso que a maior homenagem que poderemos fazer-lhe é celebrarmos a vida. A dele e a da Lúcia. Não haverá choros, não haverá coroas de flores a debitar um cheiro sinistro de funeral. Vamos organizar rapidamente um vídeo com os melhores momentos do Paulo e da Lúcia, vamos projectá-lo na quinta dele e será lá e desta forma que nos despediremos deles antes de os devolvermos à natureza. Estou certo de que ambas as famílias vão aceitar esta ideia. Afinal, somos um todo.
Anoiteceu. Sentada na varanda da casa da quinta do Paulo, olho para o rio, lá em baixo. Corre sereno. Um raio de lua ilumina-o. Sombras parecem dançar. Na minha cabeça ouço o Paulo cantar na sua voz sincopada e depois dar uma das suas gargalhadas “ passei ao largo de uma bela carreira de cantor” – tantas vezes assim foi …
As sombras continuam a dançar sob a luz do luar – há pessoas imortais!...

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A Luz Do Silêncio


O tempo era para mim um conceito abstracto e vazio, tal a ansiedade que carregava comigo. Tinha sido um ano extremamente difícil em termos pessoais e profissionais, trabalhando dias e noites a fio, mal dormindo e tomando refeições de raspão.
Sentia-me como se carregasse nos ombros a muralha de um qualquer castelo, e a cabeça começava a dar sinais de esgotamento, que tentava enganar com cafés e ben u rons. Foi naquele fim de tarde, que soou o alerta. Não conseguia pensar. Não conseguia sequer ouvir o mínimo barulho, nem conseguia interagir. Uma estrondosa dor de cabeça instalou-se e tudo me ecoava no interior do crânio, deixando-me numa aflição nunca vista. Confesso que pela primeira vez na minha vida entrei em pânico. De tão atordoado que estava só me apetecia gritar, ante a sensação de impotência que sentia face ao burnout instalado,  declarado e assumido. Telefonei para o Zé João, meu amigo e o único médico com quem podia conversar à vontade. Ele percebeu na minha voz que algo não estava bem e não demorou quinze minutos a chegar. Resultado: uma semana em casa, sem telefone e sem computador, a tentar fazer turn-off. Extremamente doloroso. O ritmo a que me tinha habituado, não era compatível com a paragem forçada. Meio sonolento em consequência de um ansiolítico que o Zé João insistiu que tomasse, não conseguia equacionar os dias “vazios” de actividade. Fazia uma espécie de carreiro entre a cama e o sofá, divergindo apenas para ir à cozinha preparar alguma coisa para comer. Certo é que, ao final do quarto dia começava a conviver melhor com a privação e até já me apetecia descer ao jardim, ver o sol e apanhar ar.
O Zé João chegou para a sua visita de acompanhamento diária e conduzi-o para o exterior. Recostámo-nos nas espreguiçadeiras junto à piscina, e notei-lhe um ar de satisfação. “Mas que bem! Estou a gostar de te ver fora de portas! Saberás dizer-me por acaso, há quantos meses não vinhas aqui?” – É verdade. Não sabia ao certo. A pressão do trabalho, as corridas, o facto de vir a casa apenas para dormir rapidamente e regressar ao ritmo frenético, tinham-me afastado deste espaço, que percebo agora, é de tão boa energia e bonito.
- Nem sei. Olha, hoje a seguir ao almoço olhei pela janela e deu-me vontade de descer até aqui. Observei as hortênsias, tão bonitas e frescas, andei descalço na relva e soube-me tão bem… senti-me um estranho na minha casa. Se não fossem os cuidados do senhor António a tratar o jardim, certamente estaria uma selva, se dependesse de mim. Sabes, sentei-me naquele canto por baixo do jacarandá, senti o cheiro das plantas e consegui alcançar alguma paz, que me fez pensar. De facto, tens razão quando me dizes que existe algo mais além do trabalho, além das quinhentas reuniões, dos mails e dos dossiers. Confesso que não me apercebi da passagem dos meses e de repente, há um ano que os meus dias são consecutivamente cheios, desregrados e cansativos, de tal forma, que acho que não vinha ao jardim há mais de oito meses.
A retórica do meu amigo médico já a sabia de cor. Desta vez comecei a dar-lhe razão, finalmente. Estava a perceber a solidão e a frieza de uma vida demasiado cheia, que me privava de coisas simples e prazenteiras que fazem parte da nossa existência. Tão simples como o estar sentado debaixo do jacarandá e olhar a relva e as plantas. Tão simples, como fazer um sumo e tomá-lo sob um raio de sol luminoso e reconfortante. Tão simples ainda como estar recostado na espreguiçadeira a falar com o Zé João sobre coisas banais. Acabámos por improvisar uma salada de camarão e jantámos, por escolha sua, no jardim. Apesar da leveza da refeição, consegui tirar dela um gosto que há muito tempo não sentia. Partilhar um momento com tranquilidade, conversar e colocar em causa o próprio caminho, é um excelente ponto de partida para um virar de página, que eu não queria ver, mas que era necessário. No último ano não dei sequer hipótese ao meus amigos de se aproximarem. Vivia num mundo por mim criado, onde qualquer sinal de invasão era de imediato obstaculizado, refugiando-me sempre no escritório.
“ Sabes que estou a gostar da forma como estás a falar hoje? Parece que houve um clique em ti Tó Pê! Diz-me que é mesmo lá de dentro que estás a falar! Da forma como te encontrei no escritório, custa acreditar que em tão poucos dias de afastamento conseguiste já fazer uma boa parte do caminho. “
- Olha, hoje tem sido um dia importante para mim. É o dia de aniversário da minha mãe. Lembrei-me disso quando cheguei ao jardim e vi as hortênsias. As suas plantas preferidas que cuidava com tanto carinho. Confesso-te que chorei. Chorei muito e, sentado no chão, deitei contas à vida. A uma vida que não lhe faria sentido. A minha mãe tinha uma forma muito própria de estar e viver. Procurava energia e luz nos mínimos detalhes. Se uma adversidade tentava derrubá-la, ela erguia-se sempre, com um sorriso luminoso e tentava abraçar o mundo e a vida, naquele seu jeito místico mas sincero. Tive tantas saudades dela hoje… da palavra, do olhar, do toque,  até da reprimenda. Senti vontade de fazer a mala e partir para os lugares por onde passeávamos. Tempos onde fui tão feliz…Ainda hoje não consigo aceitar o seu desaparecimento tão repentino … Foi no meio de todo este turbilhão que dei comigo a reflectir e a meditar sobre o presente e sobre o futuro. Não quero andar medicado. Sei que neste momento não havia alternativa, mas o trilho que estou a pensar, passa pelo tratamento da alma com aquilo que me pode ajudar, e não com comprimidos para dormir, para acordar , para aliviar ou seja lá o que for.
“Bem… parece-me que temos homem! Tó Pê, a medicação que te dei, foi de choque, mas não será para continuar eternamente, nem é isso que eu pretendo. Fico contente por saber que equacionas outro caminho e outra terapia que, tenho que concordar, é bem melhor do que qualquer pastilha química. Vais é fazer-me o favor de descansar mais dois ou três dias aqui em casa, no mesmo registo. Depois falamos e faço-te um programa de medicação mais ligeiro, para poderes ir abandonando conforme te disser. Nada de aventuras precoces. E sabes uma coisa? Se achas que te faz bem, porque não programas o tal passeio de que falaste? Desde que me vás dando notícias tuas, obviamente…”
Era tudo o que queria ouvir da boca do Zé João. Agora,  gostava de estar na minha casa. Sentia-me um privilegiado. Tinha-me ficado de herança após a morte da mãe. Filho único, filho de pais divorciados, tinha sempre tido uma relação muito cúmplice com a mãe, média burguesia e professora num colégio propriedade da família.
- Até hoje não tinha tido este sentimento de pertença a esta casa, nem da casa me pertencer. Sempre a vi como o forte onde aportava quando me perdia em naufrágios diversos, e onde me aguardava uma guerreira sempre pronta a ajudar e  não deixar afundar. Percebi que essa força é tão forte, que o que tenho a fazer é tão somente dar-lhe sequência o melhor que conseguir. É a alma desta casa que me empurra. É o silêncio deste jardim que hoje tem falado comigo.
“Os silêncios são um excelente aliado no nosso caminho interior. Os silêncios podem dizer-nos tudo, se os soubermos escutar”.
O resto da semana foi marcado por várias conversas com o Zé João. Ia-lhe dando conta do meu estado e do meu pensamento, mas também da minha enorme vontade de saír dali por uns dias.  Acedeu. Qual menino da escola, fez-me prometer que iria cumprir o tratamento à risca, e que ao mínimo sinal de ansiedade lhe telefonaria. Que não andaria sozinho em locais isolados, nem conduziria muitas horas. Resumindo, em conjunto elaborámos o programa quer do tratamento, quer do passeio. Ele ficaria mais descansado e eu, que lhe tenho uma estima e amizade enormes, não poderia deixá-lo preocupado e inseguro.
Rumei ao Douro. O meu rio de eleição, onde aprendi a apreciar paisagens e silêncios na companhia da minha mãe. Fiz os circuitos que nos eram  familiares, cruzei os mesmos caminhos, retive cada canto, cada momento e comecei a tomar notas numa espécie de diário. A cada dia que passava sentia-me mais liberto e mais leve. Após alguns dias por entre vinhas a serpentear o rio nas suas encostas, num caminho lento e sem nunca o perder de vista, iniciei a descida até ao Porto, que me aguardava esplendoroso, como era costume a minha mãe adjectivá-lo. Era de noite e as luzes conferiam uma magia única àquela cidade que a minha mãe tanto amara e me ensinara a amar. Estava cansado, mas após um duche reconfortante e uma francesinha no Café Santiago, fui caminhar pela baixa até à ribeira. Sentei-me no chão, no cais. Os barcos estavam amarrados a descansar do dia de navegação. Os cafés e restaurantes começavam a fechar. Os turistas retiravam-se. Por ali fui ficando. Recordei-me da noite em que a minha mãe me falou sobre uma das lendas do Porto, ali mesmo naquele lugar. Os dois sentados no cais. Sentia-me bem, tão bem, que apesar da hora tardia tinha que partilhar com o Zé João aquele momento. Enviei-lhe uma foto do rio onde o reflexo das muitas luzes, o tornava de uma rara beleza,  e uma mensagem que dizia “ Este silêncio de luz é o início de um novo tempo. Obrigado por teres permitido e ajudado  no reencontro dos eus. Abraço!”
Tó Pê

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Sempre Que Um Mundo São Dois


Tinha acabado de chegar a casa quando o telefone tocou. Estranhou a hora tardia, mas atendeu com o coração a aumentar o ritmo e um leve tremor na voz.
- Olá! Desculpa ligar-te a esta hora, mas sabia que não estarias deitada ainda. Estás bem?
“Olá boa noite. Estou bem sim. E tu como estás? Na realidade acabei de chegar a casa.”
- Calculei isso. Dei algum tempo desde que saíste e pensei que a esta hora já estarias sozinha. Estive a ver-te toda a noite com o teu grupo de amigos. Estavam bastante divertidos. Confesso que hesitei antes de te ligar, mas a verdade é que pensei que poderíamos falar um pouco pessoalmente. Sei que é tarde, mas amanhã vou embora ao final da manhã e não queria adiar esta conversa por muito mais tempo…
Maria nem sabia que pensar ou dizer. Estava ao rubro com aquele telefonema que em simultâneo a deixava ansiosa e nervosa, mas determinada e com uma imensa vontade de se encontrar com Miguel. Aos poucos foi perdendo o tremor na voz – afinal não podia vacilar nem dar a entender o quão importante Miguel era na sua vida. Com suores, mas a mostrar segurança “ Miguel, de facto a noite já vai alta, mas falar contigo é sempre um prazer redobrado. Tens a certeza que queres falar agora e não de manhã cedo antes de partires?”
- Maria, minha querida, se me deres o gosto de podermos encontrar-nos agora, é tudo o que quero para final de um dia cheio de emoções. Apanho-te onde?
Uma penteadela no cabelo, um leve retoque da maquiagem, três borrifos de perfume, um copo de água gelada e estava pronta.  Respirou fundo e com passo firme desceu as escadas. O jipe de Miguel já estava estacionado frente à porta. Um sorriso enorme vinha lá de dentro. Maria devolveu o sorriso e entrou. Parecia-lhe mentira o que estava a viver. Tanto o desejou, tanto o receou. “Boa noite Miguel! Chegaste rápido. Presumo que não tiveste dificuldade em encontrar a rua. Aqui é tudo pertinho e fácil.”
- Boa noite … foi fácil sim. Sabes, há muitos anos que venho para estes teus domínios e já vou controlando a coisa… Não vale a pena perguntar como estás, pois é visível. (gargalhada). Quero agradecer-te por estares aqui, apesar da hora tardia. Podíamos ter combinado de tarde, mas o facto é que não sabia bem a que horas iria despachar-me de todos os compromissos e não queria estar a assumir horários que não pudesse cumprir. Portanto, as minhas desculpas pela madrugada e pela privação de mais algum tempo de sono…
Miguel tinha um timbre de voz forte e meigo e uma boa energia contagiante. Para Maria o facto de serem duas da manhã estava perfeitamente ultrapassado. Teria todo o dia de domingo para recuperar as horas de sono.
O carro rolava lentamente na estrada. Miguel parecia dominar o caminho. A conversa fluía, entre assuntos mais sérios, brincadeiras, banalidades ou existencialismo. Bebia-lhe as palavras. Aquele homem era um poço de sabedoria. Despretensioso, falava com um à vontade, que era impossível não ficar presa naquelas conversas. Um fascínio antigo, agora tornado realidade.
Reconheceu o caminho que estavam a tomar ao saír da estrada principal.
- Não tenhas receio, Maria. Não te vou fazer mal. Quando chegarmos ao sítio, vais perceber porque o escolhi para falar contigo.
De facto, não se sentia receosa fosse do que fosse. Apesar de ser a primeira vez que estavam a sós, no meio do nada e de madrugada, Miguel inspirava-lhe extrema confiança. Uma admiração longínqua no tempo e no espaço, que lhe tinha permitido estudar os  traços de personalidade e perceber quem era a pessoa que a levava estrada fora a deshoras, depois de um dia de trabalho intenso.
- Chegámos. O carro não pode ir mais além, mas o luar permite que nos vejamos e que olhemos a encosta e o rio a correr ali em baixo. Sabes, este é um lugar de que gosto particularmente. Foi há muitos anos que aqui vim pela primeira vez, meramente por acaso.  Estava numa fase menos boa, a necessitar de pausa e vim refugiar-me para estes lados. Um dia, comecei a caminhar com os cães e vim aqui parar. Fiquei fascinado com a beleza da paisagem, agreste, pura, autêntica. É um local que tem muito significado para mim, pois aqui consegui descer à terra, fazer o trabalho de casa e recentrar-me.
O cheiro das estevas perfumava deliciosamente aquele pedaço de terra, onde a lua cheia incidia sobre o rio que corria tranquilamente. O silêncio enchia a alma de qualquer mortal sensível. Lindo. “Fantástico Miguel. Como é possível que alguém de tão longe descubra estes paraísos tão escondidos, que a maior parte das pessoas de cá nem sabe onde ficam?.... Fabuloso mesmo.”
Miguel sentou-se no chão. Ficou em silêncio algum tempo. Maria esforçou-se para não fazer barulho e não interromper aquele momento. Olhava-o com os olhos a brilhar e o coração a palpitar. Não que fosse uma estampa, mas era um homem interessante, com charme, com atitude, com postura, com luz.
- Desculpa Maria. Sentar-me no chão,  sentir a terra e respirar esta ar,  foi mais forte do que eu. Senta-te aqui também. Posso ir buscar qualquer coisa ao jipe, para não sujares a roupa.
“Não te preocupes com a roupa. A máquina lava.”
Sentados no chão, cúmplices com a terra, tendo as estevas, o rio e a lua por testemunhas, deram início a um capítulo fascinante  das suas vidas. Se foi naquele local que Miguel encontrou alguma paz em tempos idos, foi também naquele local que começou uma das mais bonitas histórias de amor, cumplicidade e partilha.
- Sabes que neste preciso momento estamos reduzidos à nossa essência? Não há estatutos, divisões, ou profissões. Somos apenas nós, com os nossos defeitos, as nossas virtudes, as nossas impaciências, as nossas complacências, os nossos medos, os nossos anseios, mas também a nossa força e a nossa vontade.  Somos o que há de mais verdadeiro. Estamos num patamar de igualdade. É esse o poder da terra, do chão que nos serve de âncora e nos prende. A química e a energia conjugam-se naquilo que há de mais simples, que não é nada além da circunstância de comungarmos de um mesmo espaço, de um mesmo propósito e de um mesmo querer.
Ouvia-o  tecer reflexões sobre a simplicidade, sobre o ser possível uma relação com base naquilo que é puro e desinteressado, sobre o artificialismo reinante na sociedade e nos relacionamentos. Tão verdade e tão bonito, não fossem os seus mundos completamente diferentes. Maria tinha perfeita consciência da insignificância do mundo onde vivia e do qual gostava, face ao mundo onde Miguel se movimentava, tão cheio de gente das mais variadas áreas, tão cheio de agenda, tão cheio de solicitações várias. Era uma diferença abissal, que sempre fez Maria recuar. Não que não soubesse ter a atitude e o comportamento adequados, mas simplesmente porque aquele não era o seu mundo, simples, com à vontade, sem espartilhos e sobretudo sem exposição. Gostava de passar anónima.
- Espera só dois minutos. Vou buscar uma coisa ao carro.
Uma garrafa de vinho branco gelado, dois copos e uns salgados. “Não reparei que tinhas a geladeira ligada no carro. Que bom! Vem mesmo a calhar!” – Por entre risos e duas ou três músicas cantadas a dois, brindaram a um futuro desconhecido, mas que queriam deles, independentemente dos mundos, das profissões e dos condicionalismos existentes. Estavam cientes de que o caminho não seria fácil, mas sim o possível. Miguel iria manter a sua vida itinerante, super-preenchida e exposta. Maria, iria continuar a permanecer low profile, discreta e a tentar estabelecer o equilíbrio entre dois mundos distintos, sem que dessem por ela. Era uma dualidade desafiante para ambos.
A manhã começava a dar os primeiros sinais. A brisa morna de um Junho quente passava-lhes pelo rosto, afagando-lhes a expressão de felicidade. Que noite bonita…
Ao saír do carro, após um longo beijo de até logo, Maria guardou o sorriso e a boa energia de Miguel. Seriam eles a força nos momentos de saudade nos dois mundos divididos…
Maria e Miguel

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Simplicidade


Foi uma tarde fantástica aquela passada no quintal da avó. Saudades imensas daquelas conversas por baixo da glicínia que perfumava todo o espaço. Ali tinha sido imensamente feliz na infância e na adolescência. As férias e os fins de semana passados na casa da avó Maria eram capítulos inesquecíveis da minha vida. Aprendi tantas coisas sobre a vida, sobre os costumes, sobre a história da nossa família, umas vezes fechada a sete chaves, outras vezes com pontas soltas que eu teimava em alinhar… A avó era uma pessoa dócil, sábia, exigente e com um encanto especial. Com a morte precoce do avô, foi ela que ficou no controle dos negócios. Como admirava aquela figura de estatura baixa, olhos verdes a sobressair num rosto emoldurado pelo cabelo grisalho, e um sorriso sempre afável. Era multifacetada, a minha avó. Ora a comandar os negócios, ora dona de casa exemplar e dedicada, fazendo tudo com a maior das perfeições, com o maior gosto. Nunca lhe ouvi uma queixa. Gostava de ter a família reunida e frequentemente a mesa era posta para quinze ou dezasseis pessoas, entre adultos e crianças. Com ela aprendi as artes e os segredos da cozinha, as regras de etiqueta ao pôr a mesa, a forma de me sentar e comportar em público. Aprendi a costurar, a fazer crochet e tricot, enfim, todas aquelas coisas que uma menina na altura tinha forçosamente que saber fazer.
Não me aborrecia. A disciplina era rigorosa, com horários para as várias actividades, mas se sabia que durante a manhã tinha que fazer determinada tarefa, também sabia que de tarde a brincadeira chamava por mim no quintal. Normalmente lanchávamos na enorme mesa de pedra por baixo da glicínia e aí prolongávamos o tempo até serem horas de fazer o jantar. Todos os dias a avó tinha uma história diferente para nos contar, a mim e aos primos, que eram os meus companheiros de férias.
- Hoje vou falar-vos sobre a mudança dos tempos. Vocês sabem que nem sempre tudo foi  como conhecem. Nem a forma de viver, nem as condições, e muito menos a liberdade. Quando eu tinha a vossa idade, era tudo muito fechado, as pessoas falavam pouco umas com as outras e as senhoras não tinham certos direitos que entretanto conseguiram. Quando se falava em casamento, muitas vezes era um problema grande, porque os nossos pais não nos deixavam casar com quem queríamos, mas sim com quem eles escolhiam. Não foi o meu caso.   Casei com o vosso avô porque foi a pessoa por quem me apaixonei e os meus pais respeitaram a minha vontade, embora houvesse um certo distanciamento social. O facto de os casais serem felizes era uma questão que não se colocava, nem o marido de sonho era suposto ousar-se imaginar …  Era assim e pronto!
Que confusão me fez sempre esta história… e a avó continuava:
- Então, muitas senhoras, infelizes mas em silêncio, tentavam ultrapassar esse facto, reunindo-se em chás em casa umas das outras, para poderem falar entre si e encontrarem formas de atenuar o sofrimento. Só que aos olhos da sociedade estas reuniões apenas eram bem vistas se tivessem como motivo acções de caridade, que não têm nada a ver com as acções de solidariedade que vocês conhecem hoje e nas quais participam com os vossos pais. Antes era tudo muito restrito e basicamente todas estas acções eram desenvolvidas em conjunto com o padre e as beatas da igreja, já que não podia haver grupos isolados. Era uma afronta e uma vergonha. Existiam basicamente três classes sociais: a dos ricos, a dos menos ricos e a dos pobres. Os ricos eram os donos das terras, das grandes herdades, os médicos, os advogados. Os menos ricos eram os professores e mais algumas pessoas que viviam de negócios próprios, e os pobres, esses coitados, não tinham direito a nada, e trabalhavam de sol a sol nos campos ou nas casas dos ricos, elas como empregadas domésticas, amas, lavadeiras, cozinheiras, costureiras, e eles nos mais variados serviços. Desta forma, existia um grande fosso a separar uns e outros, e se uns era como se fossem os donos de tudo,  os outros coitados, miseráveis, passavam fome e viviam muitas vezes em situações degradantes. A escola não era para todos e portanto também só os mais endinheirados estudavam, enquanto as crianças pobres tinham que trabalhar e ajudar as famílias a sobreviver.
Confesso que estava boquiaberta. Não conseguia imaginar … olhava em volta e aquilo que era a disciplina que a avó nos impunha, se comparado com o que nos estava a contar, era perfeita liberdade.
- Entretanto o pensamento das pessoas foi-se alterando, foi-se ajustando a ideias que começaram a vir de fora, e o descontentamento que existia, e que era muito, deu origem a movimentos de revolta que fizeram com que o 25 de Abril acontecesse. Essa história já vos contei há uns dias, quando fomos apanhar cravos para colocar nas jarras, lembram-se? Até vos ensinei a cantar a Grândola Vila Morena …
A um aceno de cabeça de todos nós, continuou:
- Desde então têm acontecido muitas coisas e a vida transformou-se muito e com grande velocidade. Numas coisas para melhor. Noutras para pior. Começou a existir muita ganância, muitos interesses económicos, muita falta de respeito pelo planeta e todos acharam que podiam tudo. Mas a liberdade não é isso. A liberdade é ser-se responsável e respeitar os outros e o espaço individual de cada um. Só assim, sem atropelos, a sociedade pode funcionar como deve ser. Por outro lado, os interesses económicos para crescerem começaram a incentivar as pessoas a comprar de tudo e mais alguma coisa, tanto o que precisam como o que não precisam, e em vez de as pessoas serem vistas pelos seus valores pessoais, começaram a ser vistas e educadas através dos valores materiais trazidos pelo consumo excessivo. Assim, a sociedade que cresceu tão depressa, vai-se degradando, porque as pessoas apenas se focam no que podem e querem ter, e não naquilo que são dentro delas, percebem? Há acesso ao estudo para todos, mas o estudo é visto mais como uma meta para atingir fins, do que para pensar, aprender e perceber qual o melhor caminho. Existe a internet onde há acesso a tudo, mas se não existir a capacidade para fazer um filtro, pode ser um caminho muito mau, embora moderno e útil. Existe a televisão com variados canais e parece que de repente todas as pessoas querem ser “famosas”. Não há qualidade nos programas, nem são interessantes, porque contabilizam as audiências, que se traduzem em dinheiro, sejam quais forem os “famosos” que por lá aparecem.
Existe ainda um outro perigo que é o das drogas, de que já falámos também há tempos. Tudo o que de mau elas podem trazer. Muitas das pessoas que querem o sucesso rápido e que parecem ter uma energia inesgotável, consomem drogas para se manterem sempre activas e bem dispostas. O que acontece é que não sabem que aos poucos se estão a matar, a colocar em risco a saúde, a vida pessoal, familiar e profissional. Consomem pelo impulso do momento, e chega uma altura que já não podem passar sem elas, e o que vem a seguir é mau demais…
Ficámos calados por momentos, a pensar em tudo o que a avó Maria tinha acabado de dizer. Ela sabia tantas coisas… Éramos uns privilegiados por termos uma avó que falava estes assuntos connosco e nos ensinava a pensar, a questionar e a descobrir caminhos. Por isso gostávamos tanto de estar em casa dela. Os nossos pais, andavam naquele frenesim profissional que a avó referiu, e de facto não tinham tempo nem paciência para falarem connosco sobre estes assuntos  da mesma forma simples que a avó falava.
Hoje, recordei cada recanto, cada brincadeira e cada conversa. A avó está velhinha, mas continua com o mesmo ar meigo, o sorriso generoso e a acariciar-me o cabelo como sempre fez. À sombra da glicínia conversámos durante horas, por entre o bolo de mel que teimou em fazer, por ser o meu preferido, e cujo segredo da receita só nós duas sabemos, o arroz doce queimado que só ela sabe confeccionar, os mini pães com linguiça que passaram a ser a minha especialidade, e umas canecas de café com leite como antigamente bebíamos. 
De repente, já no carro e de regresso, dei por mim a pensar que as coisas simples, são as que mais aprecio. Não é o meu gabinete  de trabalho num edifício chique que me faz brilhar os olhos, nem tão pouco o potente carro que a empresa me colocou à disposição. Muito menos as roupas que sou forçada a usar no meu papel de executiva. Estou cansada desse estatuto. Lembrei-me das palavras da avó no dia em que nos falou sobre a mudança da sociedade e sobre os bens materiais. Fez-me tanto sentido. Inverti a marcha.
“Avó! Voltei para trás, só para lhe dar mais um abraço e um beijo e agradecer por tudo o que me ensinou, principalmente, ter-me ensinado a pensar. Dentro de dias regresso para lhe dar uma novidade. Entretanto peça por favor à Manuela para arrumar o meu quarto para uma estadia mais prolongada. Não se preocupe com mais nada.  Eu depois conto.  Quero voltar à vida de verdade, simples e autêntica!”
Mila e Avó Maria

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Uma Ilha Dentro Da Ilha


O horizonte era infinito. O azul do mar parecia querer beijar o céu já meio alaranjado de final de dia. Apenas alguns navios de maior porte rasgavam essa linha que teimava em fundir-se. O mar estava estranhamente calmo, mais parecendo um espelho.
No cimo da falésia respirava a liberdade que as gaivotas em redor cantavam. Sentia tanta falta daquele mar, daquele pôr-do-sol, daquele silêncio de vida… Tinham sido cinco anos distantes e sombrios.
-Estás bem?
- Estou. Estou muito bem. Não se nota?
- Estás com uma expressão diferente e reparei numa lágrima a brilhar aí ao canto do olho …
- Lágrima de emoção. Daquele aperto no peito que este lugar me despertou. Uma lágrima boa. Estou bem, sim. Não te preocupes. Sabes, esta é a vitamina de que preciso. É revigorante, estar aqui. Se soubesses o que vai dentro de mim … Posso pedir uma coisa? Não quero melindrar-te, mas ficar aqui sozinha era tudo o que precisava… Não te importas?
- Claro que não! Tens a certeza que ficas bem? Não precisas de nada? Queres que te deixe uma água? Talvez uma peça de fruta…
- Não, João, obrigada. Eu fico bem e não preciso de nada. Só de estar comigo. Apareço ao jantar. Não te preocupes.
João era o irmão que nunca tinha tido. Amigo, protector, conselheiro, cúmplice, uma pessoa com um coração tamanho do mundo. Crescemos juntos, brincámos de quintal para quintal, andámos sempre na mesma turma até que a faculdade nos empurrou para sítios diferentes. Afastados na geografia, mas juntos como sempre, nos bons momentos e nos menos bons, a apoiar, a ajudar. O João é uma pessoa sensata, inteligente e perspicaz. Dono de uma calma imensa, analítica e certeira. Foi ele a primeira pessoa que me disse que a relação que tinha assumido com o Manel nunca iria dar certo. Teimosa e crente de que poderia mudar o mundo e as pessoas, não lhe dei ouvidos e segui a minha vida a meu belo prazer. Reconhecia uma certa ambiguidade e incongruência em alguns comportamentos do Manel, mas acreditei que seriam traumas de infância e que conseguiria dar a volta à situação e ajudá-lo a tornar-se outra pessoa. Afinal, tínhamos imensas coisas em comum, e a coisa não iria correr mal. Cedência daqui, afinação dali, é o que acontece com a maioria dos casais. Enganei-me redondamente. Entrei num caminho de nevoeiro, onde me perdia, tropeçava, caía, para depois me reerguer, cada vez com mais dificuldade.  Se de início não me faltava a força, o correr do tempo foi-me desgastando e continuar a percorrer o mesmo caminho tornou-se demasiado penoso. O João tinha razão. Nunca, durante todo o tempo em que vivi com o Manel deixei transparecer o mau estar. Apenas falava com o João ao telefone, tal como com as poucas pessoas que me restavam, família próxima e duas ou três amigas. Tinha perdido a alegria e a vontade. A distância e o desalento impediam que fizesse a viagem de regresso, ou talvez fosse apenas o pretexto que me dava, para não ter que simular, que enfrentar, que sentir as pessoas, o local e o cheiro dos anos idos… onde tinha sido feliz…
Respirei fundo, e mais fundo ainda, como se quisesse absorver toda aquela boa energia, e guardá-la no peito. Tinha tantas saudades da ilha … do verde, dos riachos, das cascatas, do mar que tudo envolve e devolve. Quando cheguei, resgatada pelo meu querido João, mais não era do que um farrapo. Tinha-me perdido de mim, tinha-me perdido da vida e de um caminho distante, outrora sonhado e planeado… A paixão tem o poder de cegar as pessoas…
Nada acontece por acaso, e quis o acaso que me cruzasse com a Mena, a mulher do João, numa farmácia perto de minha casa. Reconheci-a de imediato, mas fiquei incomodada. Queria abraçá-la e agarrá-la, qual tábua de salvação no meio da tempestade, mas ao mesmo tempo não queria que ela visse como eu estava. Sentia-me miseravelmente esfrangalhada. A Mena olhou para mim e de imediato abriu muito os olhos, o seu sorriso franco e largo e me estendeu o seu braço carinhoso e amigo. Comecei a chorar, numa torrente de lágrimas contidas durante nem sei quanto tempo. Lágrimas de dor, de revolta, mas de uma amizade imensa colocada naquele abraço.  Saímos da farmácia sem os medicamentos e a Mena levou-me para o hotel onde estava alojada, para podermos conversar com sossego. Estava há três dias em Sintra. Tinha vindo a um congresso e partia já no dia seguinte. Disse ter-me telefonado várias vezes, mas que o telefone dava sinal de desligado. Verdade. Tinha cortado relações com mundo há uma semana.  Disse também que como não sabia a minha morada actual, perguntou em dois ou três sítios se me conheciam. Foi o Sr.António do Café Central que lhe disse que eu morava para os lados da farmácia, e era lá que Mena ia perguntar por mim, quando nos deparámos. Que estava preocupada e que o João lhe tinha pedido por tudo para que me encontrasse e falasse comigo. Para ver como eu estava, pois pressentia coisa má.
Ainda que eu pretendesse esconder fosse o que fosse, as minhas lágrimas denunciaram-me, bem como as marcas roxas nos braços.  Falámos durante horas e a Mena apenas me disse: não posso adiar o regresso, porque tenho compromissos, mas tu não vais saír daqui. Vou pedir para que a reserva do quarto prossiga e eu ou o João voltaremos para te vir buscar dentro de poucos dias. Promete-me que não sais daqui. Vou pedir que te tragam as refeições ao quarto. Quanto às tuas coisas, pensaremos como fazer para as ires buscar. Se não queres denunciar o Manel pelos maus tratos, é contigo, mas percebe que a partir deste momento nada será como de antes , porque eu não vou deixar. Tu não mereces o sofrimento que tens tido, muito menos mereces continuar pelo medo. Não consigo sequer reconhecer a minha amiga Laura, aquela mulher forte, determinada, furacão, a arrastar tudo e  todos e a envolvê-los nas suas causas…  
É verdade. O medo tinha-se apoderado de mim. A mente doentia do Manel aterrorizava-me, paralizava-me e remetia-me para um estado da mais profunda resignação. Deixei de trabalhar, já que não tinha condições pricológicas para tal. Meti algumas baixas, mas quando o médico começou a perceber que eu não contava a verdade toda e foi mais directo e incisivo na abordagem, deixei de lá ir. Acabei por me despedir e comecei a fazer pequenos trabalhos em casa, quando estava sozinha, no meu canto, na minha paz. Foi assim que descobri a pintura. Nela escrevia com traços e cores, o que me ia na alma, e que só eu percebia. Toda a arte é passível de várias interpretações, pelo que o que eu via, outros podiam não ver.
O regresso foi complicado e doloroso. Acedi a tudo o que a Mena me disse. O João ligou-me para o hotel e tivemos a conversa que nunca tínhamos tido depois de ele me ter alertado quanto ao Manel. Passados dois dias em que basicamente dormi, descansei a cabeça, me alimentei como deve ser e consegui ter alguma calma, apesar da incerteza futura, chegou o João. Ficou assente que eu iria com ele para a ilha. Antes, e no menor tempo possível, tinha que organizar as minhas coisas e retirá-las de casa enquanto o Manel estava fora. Às quintas-feiras era dia de ir visitar clientes a Coimbra, e estaria mais tempo ausente. O problema é que com a minha ausência e silêncio, deveria andar louco e se calhar nem de casa saía… um problema para resolver… O João, frio, racional e previdente, foi rondar a casa, para ver se havia sinal de vida, ou se o carro estava estacionado à porta. Nada de carro. Nada de movimento. Depois ligou para a empresa a perguntar se seria possível o Dr.Manuel Correia recebê-lo, pois tinha vindo de fora e queria falar assuntos de negócios com ele. A secretária disse que o Dr. tinha saído para fora em serviço e que muito provavelmente só regressaria de noite. Estupendo. Era mesmo o que se pretendia. Enquanto apressadamente juntei o indispensável em casa, o João mantinha-se vigilante dentro do carro, não fosse haver alguma surpresa. Hora e meia depois, tinha tudo ensacado. Apenas faltavam as telas, os cavaletes e os materiais. Rapidamente carregámos o carro, com grande pormenor, nem ciência, pois o tempo corria e saír dali era preciso.
Antes de virar a esquina, com um aperto no peito, olhei para trás. Era um bocado de mim e da minha vida que ali ficara. Foram cinco longos anos de angústia, de desespero, de resignação e de medo. De novo, chorei. Muito. Solucei de raiva de mim do mais profundo do meu ser.
- Laurinha, sei como tudo isto é difícil e penoso. Acredita que nunca pensei que tivesses chegado a este ponto nas mãos de uma mente obcecada, maquiavélica e manipuladora. Agora acabou. Chora, sim. Chorar faz bem. Deita cá para fora todo esse mau estar.  Vais ter uma vida nova. Tens a tua família, tens-nos a nós e nada de mau irá acontecer-te.
O João tinha sempre a palavra amiga a reconfortante. Sabia que sim, que podia contar com ele para o que fosse preciso.  Passámos num shopping para comprar malas de viagem e acomodar as bagagens ensacadas,  caixas de cartão para proteger as telas e sacos para os materiais. Ainda tive tempo para passar no Banco e levantar a minha parte do dinheiro disponível na conta, bem como dar ordem de transferência da minha parte das aplicações para uma outra conta minha que tinha deixado de utilizar por imposição do Manel.
O avião era às dez horas da noite. A Mena tinha tratado das passagens enquanto nós andávamos atarefados com a organização da bagagem e o Banco.
Sentei-me do lado da janela. Lisboa era linda iluminada. Aquela luz cativou-me desde que lá coloquei os pés. A luz das lâmpadas de noite, a luz do sol de dia.  Era uma cidade radiosa, mas que para mim tinha perdido todo o encanto. O avião subiu mais ainda, e Lisboa era já um ponto distante, na geografia e no meu peito.
“Credo”, pensei para mim, “a Mena e o João já devem estar à minha espera para jantar. Perdi-me nos meus pensamentos e nem dei pelo tempo”.
- Olá, desculpem! Atrasei-me um bocadinho. Eu ponho a mesa. Vamos lá!
- Não faz mal, miúda! Sabemos o quanto gostas de estar na falésia e quanto isso te conforta. Estás à vontade, sabes disso.
- Sei. Sei disso e sei que vocês são os melhores amigos do mundo e que não tenho sequer palavras para vos agradecer. Estas duas semanas na vossa casa têm sido indescritíveis. Têm-me mimado tanto, que vou ficar mal habituada.  A propósito, decidi que amanhã vou comprar um telefone, e que vou ligar aos meus pais. Vou fazer-lhes uma surpresa. Vou visitá-los à quinta, mas apenas vou dizer que regressei. Quero poupá-los a tudo o resto.  Afinal já estou com melhor aspecto e pode ser que consiga disfarçar a coisa…
- Claro que não pareces a mesma, Laura! O ar da ilha tem-te feito bem. O sossego e a paz de espírito são alimento para a alma. Quanto ao telefone, sim senhor, bem vinda ao mundo! E já que estás a ressuscitar, tenho uma novidade para ti: a nova galeria da Câmara Municipal vai inaugurar no próximo mês. Como sabes, o Presidente é o Víctor que estudou connosco. Sabe que estás de regresso e que até tens uns quadros interessantes. Pediu para falar contigo.
Fiquei apreensiva. Iria ele pedir para que expusesse alguns dos meus trabalhos? Mas eram tão meus… tão bocados de vida passada … hummm… assunto a pensar. Preferiria muito mais expor telas positivas, com a energia da ilha, do mar, da vila, da quinta. Era de facto essa a força que me agarrava àquele chão. Era essa a minha metade, tanto tempo ausente, adormecida e esquecida… Eu própria era uma ilha, dentro da ilha.
Laura e Manel, Mena e João

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Mala Da Esperança


Saí do comboio com as pernas entorpecidas. Sem me aperceber adormeci mal sentado e acordei com as vozes e o barulho dos meus companheiros de viagem ao avistar a estação.
Duas malas carregavam lá dentro a esperança de uma vida melhor.
No exterior da estação olhei atordoado para um vai e vem de pessoas de semblante carregado e apressadas. Tirei do bolso do casaco o bilhete onde tinha apontado a morada da pensão, e apanhei um táxi. O motorista, nos seus sessenta anos, percebeu que eu não pertencia à cidade e perguntou-me: “ O senhor veio de onde? Vê-se bem que não conhece a cidade. A morada que me está a dar, fica já ao virar da esquina desta rua. Uns trezentos metros. Quer mesmo pagar para eu o deixar lá?”. Confesso que fiquei atrapalhado. Trezentos metros faziam-se bem a pé. O problema eram as malas. Não me apetecia nada carregá-las depois da maçada da viagem. Olhei-as. O motorista percebeu a minha pouca vontade e solícito “Deixe estar senhor. Deve estar cansado. Não tem problema. Eu conduzo-o e levo-lhe as malas sem qualquer custo. Afinal, temos que receber bem quem vem para a nossa cidade.” Agradeci-lhe e entrei no carro. Na bagageira, a esperança, acomodada. No curto trajecto contei-lhe ao que vinha, de onde vinha e quais as minhas expectativas. De sobrolho franzido olhou-me e disse “ Eu desejo que tudo lhe corra bem por aqui, mas aviso-o já de que este é um mundo muito diferente do seu. As pessoas são egoístas e querem vencer a todo o custo. Maltratam quem lhes faz sombra, e as oportunidades são só para alguns. Tenha sempre os olhos e os ouvidos bem abertos, senhor.” Pensei para mim, que não poderia ser assim tão mau… afinal as pessoas da aldeia que tinham partido, quando regressavam em férias mostravam uma vida diferente. Seria só fachada? Não valorizei e chegados à pensão, agradeci, paguei, retirei as malas do carro e parei no passeio, antes de entrar. Olhei em redor. A rua era estreita, mas acolhedora. Nas fachadas dos prédios de quatro andares e águas furtadas, dependuravam-se vasos de flores de cores diversas. A roupa pendurada nas janelas, em cordas sustidas por uma ripa de madeira, a formar um vê. Aqui e ali, cabeças assomavam-se, ao barulho de mais um carro.
Determinado entrei na pensão. Um homem de cabelo ralo e óculos grossos mirou-me e disse: “Boa tarde. Se procura quarto, estamos cheios”. Mau … eu tinha telefonado a pedir para reservarem um quarto. Expliquei a situação, e por entre rabiscos a lápis num caderno, lá estava o meu nome. “João Silva, é o senhor? “. Ufa, estava safo…
Instalei-me num pequeno quarto do primeiro andar. Cama, mesa de cabeceira, um pequeno armário para a roupa e uma casa de banho improvisada num recanto que deveria ter sido arrecadação. Nada do outro mundo, mas para já, dava para dormir,  organizar o meu tempo e a procura de trabalho.
Arrumei os pertences, guardei comigo a esperança e saí para dar uma volta e jantar. Percorri uns quantos quarteirões, e enquanto por ali deambulava no passeio de reconhecimento da zona, várias foram as percepções que tive. Depois de ter caminhado uns quatro quilómetros, entrei numa pequena tasca cujo cheiro da comida me chamou a atenção. Umas dez mesas, toalhas de xadrez azul e branco, pratos brancos , tudo muito asseado. Pedi o prato do dia e um copo de vinho tinto. Enquanto fui degustando demoradamente o cabrito com batatas, ia ouvindo conversas nas mesas laterais. Pessoas com bom ar, via-se que eram clientes habituais, tal o à vontade no relacionamento. Falavam sobre política, insegurança e tentáculos do poder. A conversa interessava-me e fui-me demorando mais e mais. O que ouvia era um mundo novo para mim. Um mundo que sabia existir, mas que era distante do meu até então. Ali havia de regressar muitas vezes, para perceber, para aprender, para conseguir interpretar realidades que começavam a despontar em mim um interesse crescente.
Ao fim de uma semana a procurar trabalho, contava já com inúmeras histórias curiosas, que um dia mais tarde haveria de resumir num caderno. Afinal, não era fácil encontrar o tão almejado e falado lugar ao sol. Ou seria questão minha, que me bloqueava certos trabalhos? Sempre tive tendência para as questões da sociedade e da humanidade. Não que fosse desprimor trabalhar como operário numa fábrica, ou atrás de um balcão de café. Nada disso. Se tivesse que ser, seria. De qualquer forma, aquilo que de facto me cativava era a relação com as pessoas num sentido mais lato. Os estudos que tinha limitavam-se ao ensino secundário, mas o muito que lia permitia-me ter uma absorção fácil da conjuntura e da sociedade.
Nas longas caminhadas que fazia pelas ruas e avenidas, reparava cada vez mais nas pessoas e naquilo que saltava à vista. Uma classe emergente, ávida e apressada, olhava com desprezo para o lado.  Funcionava tipo clubite fechada em si, mas ramificando o seu poder e influência a lugares chave. Do outro lado, os que viviam com cada vez maiores dificuldades quer em termos laborais, quer em termos económicos e sociais. Um mundo extremado pela ganância, pelo interesse e pelo desrespeito pelos mais fracos.
Certa noite, cedo ainda, ao chegar junto à pensão,  fui abordado por alguém que parava um carro junto a mim. Fiquei pouco à vontade. Uma história mal contada por um indivíduo com ar de quem tinha posses, mas com um olhar alucinado, que se fazia transportar num carro de boa cilindrada. Apesar da agitação e da forma como me olhava, pensei que devia ouvi-lo naquela versão titubeante de quem queria pedir dinheiro. Percebi-lhe a dependência da droga. Percebi-lhe o desespero da privação. Tentei encetar uma conversa sensata e didáctica, mas acabei por desistir e remeter-me ao meu mundo. O Sr. Carlos, dono da pensão, contou-me que se tratava de um indivíduo que tinha sido completamente apanhado pela cocaína. Ocupava um bom lugar numa empresa, era bem relacionado, mas a teia onde se movimentava tinha-o desgraçado.  Mais um… pensei. Tinha já noção da influência dessas teias. Por vezes era um assunto abordado nas pequenas tertúlias da tasca onde jantava, e onde tinha começado a sentir-me tão à vontade, que era já convidado a dar o meu modesto contributo de opinião.
Já no quarto, fui à janela e acendi um cigarro. Respirei o ar fresco da noite e reparei nas luzes. Engraçado, como durante aquela semana, fora a primeira vez que as luzes me prendiam a atenção. Candeeiros grandes em formato de lanterna, iluminavam a rua e o que se via mais além. Sim, era de luz que a humanidade precisava. Era luz que a sociedade tinha que absorver. Começava a desenhar-se um tempo estranho e cujo futuro se adivinhava difícil. No País, no mundo, a velocidade era estonteante, a superficialidade ganhava cada vez mais espaço, os interesses escavavam alicerces e túneis difíceis de desmontar e de grande perigosidade social e económica. Não podia valer tudo. Nada nas nossas vidas poderia estar na mão de meia dúzia de influentes. Foi uma noite angustiante, onde mergulhado nos pensamentos, mal consegui dormir. Tinha terminado uma semana onde tinha aprendido mais sobre a vida, do que nos vinte e cinco anos passados.
Hoje, a uma distância que me permite fazer uma análise crítica, estou grato aos meus pais, para quem a minha partida foi dolorosa, mas que veio confirmar o que eu queria da vida. Não fosse o cabrito na tasca do Sr.Manuel e nunca teria sido desafiado para fazer parte de um movimento de pensadores humanistas. Já não habito a pensão do Sr. Carlos, mas ainda guardo comigo toda a esperança contida nas malas.
João

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Vidas Adiadas



Sentados naquele pedaço de rocha, com os pés a roçar o mar de um verde imenso, e com o olhar preso no horizonte, percorríamos as nossas vidas.
Tínhamos assentado arraiais num parque de campismo não muito longe do mar e próximo de uma povoação que nos pudesse servir de base para as refeições.  Estávamos ali há quatro dias e tínhamos como rotina diária, levantar cedo e caminhar ora junto à orla marítima, ora pela serra que a poucos quilómetros, oferecia paisagens indescritíveis, por entre trilhos, cascatas, subidas e descidas, vegetação das mais variadas espécies, e um ar leve e perfeitamente respirável.
O dia anterior tinha sido cansativo pelos muitos quilómetros percorridos e resolvemos dar-nos uma ligeira folga. Almoçámos numa das tascas da aldeia e caminhámos em direcção à praia. Não havia muitos veraneantes e o areal estendia-se por entre os dois molhes de rochas, tão naturais e tão perfeitos, que parecia terem ali sido colocados de propósito a formar a pequena baía. Estava bonito o mar. Uma leve ondulação serena, de um verde intenso e cheiro profundo. Ali sim, o mar cheirava a verdadeiro.  Por entre salpicos, e com a maré a descer, escolhemos como plateia daquele horizonte sem fim, a rocha de um dos molhes. Por entre brincadeiras e conversas, o tema foi ficando mais sério, e a tarde acabou meio reflexiva, meio angustiada, ante a realidade de cada um de nós.
Conhecemo-nos na faculdade e anualmente programávamos entre uma semana e semana e meia para férias em conjunto. Se de início as preocupações não eram muitas, já que os tempos de lazer eram ainda custeados pelos nossos pais, ou complementados com uns trocos de trabalhos esporádicos que arranjávamos para o efeito, com o correr dos anos, as necessidades foram aumentando e a forma como encarávamos a vida começava a alterar-se. Tínhamos crescido numa classe média ascendente, onde o poder e o consumo foram igualmente ascendentes. A juventude afigurou-se-nos fácil, pois tudo tínhamos ao nosso alcance. A sociedade, ela própria, se encarregava de fomentar a competição, o consumismo, e quis convencer-nos de que a nossa geração seria pujante. Um perfeito engano. Por entre as curvas dos índices e dos raitings, concluímos as nossas licenciaturas e a nossa aspiração seria entrar no mercado de trabalho, nas nossas áreas de formação. Novo engano. A malha apertava. A dificuldade crescia.
Do nosso grupo de seis, dois eram engenheiros civis, três arquitectos e um licenciado em filosofia.  Passaram três anos desde que recebemos os nossos “canudos”. Por entre estágios, part-times, trabalhos precários e uma grande vontade, fomos, cada um à sua maneira, tentando construír uma vida, que cada vez mais, víamos adiada. Alguns permaneciam em casa dos pais, pois era manifestamente impossível sobreviverem sozinhos. Os que conseguiram o feito de arranjar o seu espaço, contavam os cêntimos e viviam uma vida de privações. Afinal, a ideia de plenitude que nos tinham “vendido” durante anos, era uma perfeita mentira. Aquela sociedade onde crescemos, não mais era do que uma fachada utópica de algo que era impossível prosseguir. Pior, a falta de valores humanos a ela associada, veio revelar a hipocrisia, a ruindade e tudo aquilo que de pior há na espécie humana. A ambição desmedida e a falta de lisura por parte daqueles que emergiram, teve consequências nefastas para a vida de grande parte da população.
Hoje, temos trinta anos e as nossas vidas continuam adiadas. Hoje, olhamos para o imenso horizonte verde que temos em frente, e sentados na rocha, pensativos e preocupados, perguntamos como vão ser, para onde vão caminhar e de que serão feitas a nossas vidas…
O pôr do sol começou a desenhar-se. A maré baixou de vez. O parque de campismo dista três quilómetros e a aldeia dois.  Já comíamos qualquer coisa…
Grupo de amigos

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O Que De Nós Se Vê


- Que se passa Rui? Estás tão cabisbaixo e silencioso…
- Não se passa nada. Apenas não me apetece falar. Estou cansado. – Sentado na beira da piscina a balançar os pés dentro da água morna, Rui permanecia de semblante fechado.
- Como não se passa nada? Vieste calado durante toda a viagem. Mal chegámos, jogaste as malas para o quarto e vieste a correr para a piscina, sem quase dizeres uma palavra. Talvez fosse preferível termos adiado o fim de semana e virmos numa altura em que o teu humor estivesse um pouco melhor. Sinto-me viajar sozinha na companhia de um estranho.
Existem alturas complicadas, que nem sequer sabemos como traduzir em palavras. O certo é que quanto menos queremos magoar aqueles de que gostamos, mais as nossas angústias existenciais se encarregam de nos fazer tomar atitudes que não conseguimos explicar. Como fazer perceber a Susana que o que se passa não é com ela? Que a amo incondicionalmente, mas que neste momento preciso do meu espaço interior para pensar? Que não a quero magoar, pois iria culpabilizar-me para sempre se a ferisse? Planeámos este fim de semana a dois, longe de tudo e de todos. A pressão do dia a dia tem-me consumido e tem desgastado a nossa relação. Era imperioso fazer um reset e devolvermo-nos, antes que não houvesse solução. Deixei que a Susana escolhesse o local, já que é perita em descobrir sítios verdadeiramente idílicos, onde a natureza e a paz nos abraçam. E não falhou em nada. A viagem demorou três horas; três longas horas em estradas secundárias, ora a serpentear a serra, ora por entre vales verdejantes, cuja paisagem era povoada por aldeias de granito dispersas, campos de cultivo e algumas explorações pecuárias de pequena dimensão. Essencialmente agricultura de subsistência. A reduzida velocidade a que tinha que conduzir permitia-me contemplar e observar os mínimos detalhes. Nem por um minuto fiz observações acerca do percurso, pois não queria melindrar a Susana, mas o facto é que estava desejoso de chegar ao destino, pensando já que passados dois dias teria que fazer o caminho inverso. Ao meu lado, percebi alguma indisposição na Susana, fruto das muitas curvas, mas também ela não deu parte de fraca.  Esperança que o nosso refúgio compensasse o incómodo da viagem…
- Susana, a viagem foi um pouco cansativa e se pouco falei, foi porque tive que estar atento à estrada, que como percebeste não é das melhores. Não dramatizes. Tu própria estavas mal disposta, ou pensas que não percebi? Tem calma. Respira. Senta-te aqui junto a mim. Incrível como a água da piscina está a uma temperatura superior à temperatura do ar. Certamente que é aquecida.
- Sim, eu vinha mal disposta, mas tu não ajudaste, de tão calado… Podias ao menos ter dito se gostas do hotel. – Estava nervosa e impaciente. Desiludida talvez…
- Gosto sim, querida. É um sítio lindo, com magia e poesia para nos envolver. Ninguém iria imaginar que no meio do nada existiria algo assim. Parabéns pela escolha. Vamos mergulhar? De facto nunca tomei banho numa piscina de ar livre com esta temperatura e ainda por cima no Inverno.
Tentei desfrutar ao máximo aqueles dias de pausa. Tentei que os momentos de cumplicidade a dois voltassem a ter o frisson de antes, o desejo calado, o toque escaldante, o beijo silencioso e atrevido, a conversa interminável, a gargalhada espontânea. Confesso que por momentos me esqueci da conversa com o médico, de tão normal que estava. A Susana tinha um brilhozinho nos olhos como não lhe via há muito tempo. Afinal, independentemente de tudo, tinha sido uma decisão acertada a de virmos. É necessário fazer pausas e reequacionar a vida. Sobretudo para mim, que naquele momento vivia a uma só voz um drama interior difícil de abordar.  Andei durante meses a adiar uma ida ao médico, por cobardia, por medo, por insegurança. A pressão do trabalho e os problemas recorrentes na empresa serviam-me para me esquivar a um relacionamento mais íntimo, depois de algumas tentativas falhadas, que não conseguia aceitar nem explicar. Só a paciência e a compreensão da Susana conseguiram que não enlouquecesse de frustração e complexo. Para mim era um assunto tabu, acerca do qual nem queria falar. Fui-me arrastando com o meu sofrimento, e só no dia em que percebi que estava a fazer sofrer a minha companheira de forma injusta e sem o merecer, aceitei para mim consultar um médico, não sem que antes tenha feito uma profunda pesquisa na net. Fiz exames e nada comentei em casa. A última consulta tinha sido precisamente na véspera desta nossa escapadinha. Tinha ainda a memória fresca da conversa com o Dr.Sá. Que tudo se ia resolver, com tempo, com paciência e com mudança de hábitos de vida. Não tinha ainda conseguido contar à Susana. Se por um lado pensei que não seria a altura certa para termos esta conversa, por outro lado, ante a normalidade evidenciada, achei que lhe deveria revelar toda a minha angústia dos últimos tempos. Percebi que quando duas pessoas se amam, a dor partilhada é muito mais fácil de suportar e que a ajuda mútua pode fazer toda a diferença.
- Realmente esta estrada é péssima, mas valeram a pena estes dias meu amor. Foi preciso um exílio forçado para te fazer falar. Eu sabia que alguma coisa se passava contigo, mas pensei que a situação tivesse a ver com o facto de teres outra pessoa na tua vida e já não me desejares. Devias ter partilhado tudo comigo antes, querido. Eu própria teria tido outra atitude e outro comportamento. Sabes, a minha avó tinha uma expressão de que gosto muito e que utilizava quando as coisas não eram muito perceptíveis, ou quando achava que as pessoas escondiam alguma coisa: “podemos ser quem nós sabemos que somos, mas aos olhos dos outros, somos o que de nós se vê”.
Susana e Rui

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Vazio Das Vinte e Uma e Trinta


Vinte e uma horas e trinta de um vazio que lhe era já familiar.
Tinha sido mais um daqueles dias perfeitamente alucinados, por entre telefonemas, mails, reuniões, assuntos complexos para tomar decisões, já para não falar dos filhos e das respectivas vidas, e da habitual visita a casa dos pais,  antes de descalçar os sapatos e mudar de roupa.
Vestida de uma outra pele recostou-se no sofá. Exausta. Os dias já não eram mais do que um somatório de obrigações, deveres, dar resposta a solicitações, acorrer às múltiplas situações para que era requisitada, sem ter tempo para pausar sequer. Verdade que sempre se mostrou disponível para ajudar, para colaborar, e se algumas vezes pensou escusar-se a alguns desafios, outras tantas vezes, era de si que partiam as ideias  que empenhadamente punha em prática. O certo é que ultimamente se sentia desgastada e cansada. Eram anos seguidos a manter o mesmo ritmo, com preocupações e responsabilidades acrescidas, às quais o seu sentido perfeccionista, estético  e exigente , colocava sempre num patamar acima. Sabia que conseguia fazer bem feito, por isso a inquietação que a habitava, não lhe dava espaço para erros.
Há já alguns dias que andava pensativa, algo melancólica, misto de realidade e interrogação. Os serões começaram a ter um peso diferente no seu estar, como diferente começou a sentir-se. Não era já a conversa com os amigos que lhe animava o final do dia. Muito menos a televisão, que ligava apenas para ver o noticiário. Talvez uma música suave que lhe apaziguasse a alma e lhe fizesse descansar a mente. 
“Cuidado com os vazios de uma vida cheia demais”… tinha-lhe dito um amigo há dias, quando tomaram um café a correr, notando-lhe sinais de desgaste, de pressão e de alguma solidão.
Fez um chá e retornou ao sofá. Aconchegou-se na manta e ficou a ouvir o silêncio. O seu e o da casa. Recordou as palavras de Rui. Tão verdadeiras lhe pareciam… De facto tinha uma vida preenchida em questão de horários.  Em termos profissionais tinha inteira dedicação e somava horas de trabalho nos projectos em que se envolvia. A família, cujo bem estar sempre fora o seu principal objectivo, e a quem dedicou toda uma vida, que conseguiu conciliar com tudo o resto,  absorvia-lhe grande parte do tempo disponível, já que sempre fora a âncora emocional, materna e lúdica daquela casa. Nas poucas horas de lazer, procurava outros projectos que a completassem em termos interiores, já que a frieza empresarial não lhe permitia enfatizar a sua parte emocional e relacional, tão importantes à alma humana. Era nesta vertente que cruzava os caminhos dos amigos, com quem privava quando possível, com quem assistia a espectáculos e com quem viajava, se bem que cada vez menos.
No silêncio da sua conversa consigo própria, percebeu estar esgotada, vazia. Vazia de uma vida cheia, que não lhe deixava espaço para se encontrar consigo. Os filhos haviam crescido, e mantendo-se a preocupação sobre si próprios e sobre as suas vidas, tinham seguido o seu caminho. A casa parecia-lhe enorme, de tão vazia de gente. E se o silêncio era bem vindo e a acompanhava, era esse mesmo silêncio que a fazia despertar para a realidade em que vivia. Deu-se conta que a pressão que lhe impunham e que ela mesma se impunha, era uma má companhia. Teve vontade de fugir, de partir para longe, sem telefone, sem internet, apenas partir para onde pudesse reencontrar-se. Sentia uma dor enorme, que não conseguia explicar. Sempre na vida fizera tudo com convicção, com a perfeição que lhe era característica e onde nada podia falhar. Sentia-se bem ao ver à sua volta rostos alegres, realizados, muito pela sua ajuda. Sentia-se bem ao perceber que os valores transmitidos aos filhos tinham dado os seus frutos. Sentia-se bem por sentir que cuidava dos pais o melhor que podia e sabia. Sentia-se bem por ter ajudado a criar projectos de vida. Todos a consideravam uma espécie de mulher de ferro, que tudo aguentava e a que nada amedrontava.  Só não aguentava a dor que começava a consumi-la, silenciosa…
Partir seria a solução? Conseguiria de facto desligar-se de uma vida tão intensa, que nem lhe deixava tempo para uns laivos de romance?
Os pensamentos sucediam-se, frenéticos, em corropio. Mais uma caneca de chá e uma música calma como companhia. O telefone tocou. Decidiu não atender. Voltou a tocar e de novo não atendeu. Sucederam-se mensagens que não leu. Afinal era possível parar o tempo, passar as urgências a não urgências, perceber que a pressa também pode ser repouso, e que nessas circunstâncias, a vida não acabou.
“Um Lugar” era a música que tocava. As teclas, suaves, transportavam-na numa viagem emocional e de alma, na procura do seu Lugar…
Maria

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Já Te Escrevi Um Poema


Já não sei quantas vezes acendi a luz para ver as horas. Horas lentas numa noite interminável … Disseste-me que virias ao início do serão. Tenho-te aguardado naquela ânsia de te tocar, de te olhar, de sentir o teu cheiro, e de profundamente te amar.
Prisioneiro dentro do meu próprio eu, sinto-me desgraçado na tua ausência.
Habituaste-me ao teu calor, ao toque suave da tua pele, às conversas intermináveis, enfim… habituaste-me a ti.
Lembro-me do nosso primeiro encontro. Mero acaso. Eu descia a rua em direcção a casa,  aborrecido e frustrado por não ter conseguido escrever o artigo com que me comprometera para o jornal. Certo que o tema que me tinham dado, não tinha muito a ver comigo, mas o simples acto de criar escrita, obriga a que nos projectemos e vejamos além. Tinha-me dado uma branca, e não conseguia escrever uma única frase que fosse coerente. De irritado que estava, ao tropeçar numa pedra mais saliente, atirei com o caderno onde esboçava os rascunhos. Quis não o apanhar do chão. Quis que aquela nuvem que me bloqueava, e que para mim tudo tinha a ver com o caderno, desaparecesse de vez. Talvez não devesse ter aceite o convite do Daniel. Talvez tivesse sido preferível continuar a ser um mero funcionário dos correios, ordenado no final do mês, horário fixo, e ter uma vida pacata e acomodada à minha condição. Não era de todo um dos meus melhores dias...  Cruzaste-te comigo e rapidamente resgataste o caderno do passeio húmido e escorregadio. Ficámos presos no olhar. Agradeci-te e lembro-me de te ter dito que não valia a pena teres apanhado o caderno. Que não continha nada a não ser frases sem nexo. “ O sentido das frases e das palavras é subjectivo”, retorquiste. “Por vezes é do caos e da desorganização que surgem as grandes ideias”, acrescentaste. “Pense nisso”, e seguiste o teu caminho. Fiquei a olhar-te. O caos? Caos era o que eu sentia naquele momento, e a palavra ficou a batucar-me no cérebro, qual pêndulo … caos… caos … caos…
Nessa noite sonhei contigo. Não me perguntes porquê. Há coisas que são maiores do que nós. Sonhei ver-te no mesmo sítio e entregares-me um caderno completamente escrito. Era a tua letra. Eram as tuas palavras, as tuas frases. No início  e no final a frase “ o desabrochar dos nossos caos”...Acordei transpirado, desorientado. Percebi então que tudo não passava de um sonho. Levantei-me, e ao passar pelo espelho fiquei a olhar-me. Nunca passo mais do que quatro ou cinco segundos frente a um espelho, a não ser para fazer a barba. Por norma não gosto de espelhos.
Aquela contemplação de mim mesmo, fez-me questionar. Quem, o quê, como, porquê… uma imensidão de perguntas que me coloquei e para as quais tentei arranjar uma reposta, ou talvez um incentivo.  Se voltasse a encontrar-te falaríamos sobre o caos.
Não dormi mais nessa noite. Peguei no caderno e na caneta, e foi como se de repente todas as ideias fluissem, organizadas, metódicas e coerentes. Escrevi o meu artigo de uma assentada. Li, revi, passei para o pc e enviei para o jornal. Estava-te grato, tão grato que tive vontade de te escrever um poema…
Não nego que fiz de tudo para voltar a encontrar-te. Afinal a vila não é grande, e existia essa possibilidade. Em vão. Nem sinal de ti, até ao dia em que entraste nos correios para levantar uma encomenda. Estremeci. Sem querer mostrar a minha surpresa, a minha alegria, e ao mesmo tempo a minha atrapalhação, cumpri todo o protocolo do atendimento. No final, não resisti: “ Fátima, tenho que lhe agradecer pelo outro dia. Lembra-se de mim? Apanhou do chão um caderno que tinha acabado o seu percurso… “. “Claro que sim! Estava a pensar que já tínhamos falado, e ia precisamente perguntar-lhe se devolveu vida ao caderno?”
Ousei convidar-te para um café ao final da tarde. Tinha tanto para te contar …
Falámos imenso tempo. A tua inteligência cativou-me. Era fácil estar na tua companhia. Alguém a quem a vida moldou, mas que se impunha às situações com uma sobranceria tão elegante, quão elegante era todo o teu ser.
Continuámos a encontrar-nos nos finais de tarde, após o teu regresso da faculdade. A minha vida tomou um único sentido: tu. Lentamente fui-me construindo  a gravitar em torno de ti. Se me pedisses a maior das enormidades, fá-lo-ia por ti. Amava-te intensamente e mal podia esperar pelo próximo encontro. Tu, por vezes parecias distante, facto que eu relacionava com o stress do estudo, outras vezes, eras a perfeita musa que descrevi no tal poema e que te ofereci na noite no nosso primeiro encontro íntimo. Uma inevitabilidade.
Os meses sucederam-se e junto a ti sentia-me ancorado. Inseguro e desgraçado quando não podias vir. A prisão que eu próprio havia criado, iria levar-me para a antecâmara da loucura, sem sentido e sem nexo.
Percebo hoje o quanto fui possessivo, obcecado e egoísta. Se te aguardo nesta inquietação, é porque te amo e te quero,  mais do que tudo na vida, mas é também porque quero dizer-te que mais uma vez o caos cumpriu o seu papel, ao fazer-me perceber que estava no caminho errado.
Já não sei quantas vezes acendi a luz para ver as horas, e percebo agora que tu já não vens…
Paulo e Fátima