quinta-feira, 28 de maio de 2020

A Máquina do Tempo


- É engraçado como os ciclos da vida nos remetem para os mesmos lugares e muitas vezes para as mesmas pessoas e circunstâncias. Lembras-te da primeira vez que almoçámos neste sítio maravilhoso?
- Sim, lembro-me bem. Estava um dia de sol de inverno, frio, mas com uma luminosidade incrível. O rio estava calmo, debruado pelos choupos, imponentes e verdejantes e nas margens começavam a despontar as mesmas plantas selvagens que estamos a ver, pintalgando o terreno. A mesa era exactamente esta. Apenas as louças e a toalha mudaram. A decoração interior e exterior permanece a mesma. Curioso, dá a ideia de que o tempo não passou por aqui. Apenas passou por nós.
- Tens razão. Depois de cinco anos, a paisagem e o ambiente são os mesmos. Espero que a cozinheira também. Era tão bom o arroz de garoupa… recordas-te?
- Ahahah, se me recordo! Foi por causa do arroz de garoupa e do vinho que pediste que me levaste à certa…
- Não foi nada! Estás a insinuar o quê?
- Não estou a insinuar nada. Apenas que o vinho branco que escolheste tinha demasiada graduação… e que, portanto, perdi um pouco o controle. Mas tudo bem. Com vinho ou sem vinho ia acontecer… e o que aconteceu foi bom. Tive saudades tuas quando partiste. Tantas … passei um mau bocado até perceber que tinha que te “libertar”. De facto, pensando à distância, apenas a inexperiência e o desconhecimento me poderiam ter convencido de que tinha encontrado a tal relação para toda a vida, de que a minha mãe e a minha avó falavam. Tretas ….
- Eu sei Madalena. Sei que não fui correcto contigo. Sei que te fiz sofrer. Sei que não mereço sequer o privilégio de podermos estar hoje de novo neste lugar que faz parte da história das nossas vidas. Sei que tinhas o direito de não me ter atendido o telefone. Sei que podias ter-me insultado e chamado todos os nomes que te viessem à cabeça. Sei inclusivamente que se algum pingo de amizade ou respeito restou entre nós, podia ter-se perdido irremediavelmente. Sei tudo isso, minha querida. Estás coberta de razão.
- Eu não quero ter razão, Manel. Mas de facto não foi nada fácil. A nossa relação não durou mais do que um ano, mas foi tão bonita, tão intensa, e tão cheia de coisas boas, que eu nunca quis ver a tua outra parte. Para mim eras o homem, o amigo, o companheiro, o professor, o padre até… sei lá… eras a minha metade que ajudou a crescer a outra metade e a dar-lhe vida. Hoje percebo-te. A tua necessidade de liberdade, de te desafiares, de sonhar e de fazer, não se coadunam com a relação que construímos. Sei que fui possessiva, desconfiada, mas era porque gostava de ti e me sentia insegura. Afinal não passava de uma miúda apaixonada pelo grande ser, tipo todo-o-mundo-pela-frente-para-fazer-acontecer-desbravar.
- Ouve Madalena, penso que em tempo algum duvidaste do bem que me fizeste, da paz que me deste, dos bons momentos que passámos juntos. Eu não me esqueço. E se entretanto corri mundo e a minha vida foi toda outra, quero que saibas que nunca me esqueci de ti. Prova disso? Estarmos aqui, agora.
Sabes que por vezes só damos valor a determinadas coisas quando estamos privados delas e depois de vivermos experiências que nos fazem pensar, reflectir, equacionar e re-equacionar.  Posso dizer-te com toda a certeza que estes anos para mim também não foram fáceis. Se por um lado cresci e me enriqueci interiormente, por outro lado, a constante necessidade de fuga provocou-me uma espécie de desequilíbio emocional que só com ajuda consegui superar e perceber porque e do que fugia, não me permitindo estabilizar num local ou numa relação. Mas esta conversa tê-la-emos mais tarde, se mo permitires. Agora prefiro falar de coisas mais agradáveis.
- Estás à vontade Manel. Não és obrigado a falar de nada que não queiras. De qualquer forma tens que perceber que só exorcizando o que nos faz mal, poderemos libertar-nos e dar-nos a oportunidade de sermos nós próprios e sermos felizes. Foi o teu mau estar que te levou a fugir sistematicamente. Fugiste de mim, de ti, da vida. Que trazes na bagagem? Experiência, sofrimento, talvez uma pessoa diferente e mais madura, acredito. Respeito-te e respeito os teus pontos de vista, mas acredita, que enquanto não fizeres o trabalho de casa todo, nunca irás ter a paz que desejas. Ou será, que por outro lado, precisas de não ter essa paz para te alimentares e alimentares os desafios que te colocas?
- Estou a gostar de te ouvir. Estás outra, apesar da expressão e do sorriso matreiro serem os mesmos. Esse teu sorriso sempre me desconcertou. Tão sincero, tão simples, tão teu…
- Manel, se tu engordaste a tua bagagem, eu também tratei da minha. Sabes que apesar de me teres deixado nitidamente na merda, consegui superar, muito pela via do pensamento, da reflexão e do colocar-me no lugar do outro. Acho que consegui fazer o tpc bem feito. Daí estar com esta tranquilidade e abertura a falar contigo. Sem remorsos. Sem dor.
- És uma querida. Acreditas que nos confins do mundo por onde andei, imaginava-te como minha companhia? Falava contigo em silêncio, ria e sofria a teu lado, e até ousei escrever páginas onde em linhas intercaladas, as minhas palavras cruzavam as tuas …. Só que depois vinha a realidade, a revolta, a frustração, a culpa, e logo em seguida a fuga.
- Ah… afinal andei por aí em viagem sem saber! Olha que bem! Tens que me dizer por onde andámos, para pelo menos enriquecer a minha cultura geral.
- Queres mesmo saber? Olha que alguns sítios não vais gostar de todo…, mas ok….
- Achas que não? Ui, então começo a ficar com medo…
- Não fiques. Estou tão feliz por estar aqui contigo. Vamos escolher a comida? A carta está excelente, mas atrevia-me a sugerir ….
- Arroz de garoupa!
- Como adivinhaste?
- Intuição meu caro…
- Ummm… e para beber …
- Vinho branco Crasto!
- Bem, a menina está a marcar pontos! Se tu o dizes… assim seja.
- Manel, é uma questão de lógica: passados cinco anos o mesmo local, a mesma mesa, a mesma paisagem, nós… apesar de mais velhitos … logo, depois de toda esta conversa existencial, e para termos fôlego para mais, só pode ser o mesmo prato e o mesmo vinho.
- Deixas-me sem palavras. Claro que sim.
Olha, não quero tornar o nosso almoço aborrecido, mas preciso tanto, tanto de continuar a falar contigo. Sinto tanto a tua falta … mas não quero invadir a tua paz. Sempre me questionei acerca do momento do nosso reencontro e confesso que para mim está a revelar-se muito melhor do que imaginei. Se me pedisses para ficar, ficaria. Feliz. Resolvido. Sem fugas.
- Manel, meu querido Manel, aprendi a gerir a minha paz, como lhe chamas. Se tivesse algum receio de que a fosses invadir ou perturbar, podes estar certo de que não estaria aqui contigo, a minutos de degustar um arroz de garoupa e a correr o risco de ficar de novo “leve” ao sabor do Crasto branco. Tal como dizes, estou outra. Cresci e a minha capacidade para lidar com certas situações mudou também. Relativizo muitas coisas, para poder enfatizar aquelas que realmente gosto e me dão prazer, e nesse equilíbrio consigo descobrir e alcançar a tal paz tão necessária na gestão dos nossos dias e das nossas vidas. Se eu conseguir ter a capacidade para te transmitir essa paz, fico feliz. Cheers!

 - Os senhores pretendem escolher alguma coisa para jantar?
- Jantar? Que horas são? Não pode ser! Estivemos aqui toda a tarde e não nos mandaram embora? Peço imensa desculpa… Madalena, queres jantar ou saímos?
- Por mim, podemos ficar e comer uma coisa leve se quiseres. Olha, talvez uma salada de camarão e frutos…
- Parece que essa salada me faz lembrar qualquer coisa… deixa ver …
- Pensa!
- Ummm …. foi essa a salada que jantámos na nossa primeira vinda aqui, pois tal como hoje, ficámos toda a tarde a falar como se a máquina do tempo se tivesse avariado…
- Exactamente! Afinal apesar de tudo ainda tens boa memória.
- Às vezes, minha querida. Às vezes…
Neste momento penso que se a máquina do tempo trocasse os fios e pudesse replicar tudo o que aconteceu há cinco anos, eu não iria ficar aborrecido…
Que é isto? Ficámos às escuras?
- Não, meu amor, é a máquina o tempo que está a reiniciar …
Manuel e Madalena

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Musas, ou talvez não...


- Correu bem a sessão de hoje? - Confrange-me ver a expressão de angústia e ansiedade espelhada no rosto da minha mãe. Sinto-me culpado do seu sofrimento que considero injusto. Ela, que sempre me apoiou, me fez ver os caminhos, me ajudou em todos os momentos difíceis, já para não falar das noites sem dormir, das privações, do colocar-me sempre acima de tudo na sua vida. Se por acaso existirem deusas, então a minha mãe será uma delas.
- Mais ou menos, mamã … correu …. - Nem sei como responder por forma a tornar a sua preocupação e angústia, menores. - Correu bem, sim! Só podia correr bem! - Consegui balbuciar, mais afirmativo e convincente.
- Tens a certeza filho? O Doutor disse mais alguma coisa que te aliviasse?
- Mamã, o Doutor para já tem que me ouvir. Vai falando algumas coisas, mas sabes que estas situações são demoradas… Vai correr tudo bem, vais ver. Dá cá uma beijoca e se quiseres fazer um sumo ao teu filho enquanto ele toma um duche, estás à vontade!  - Em tom de graça, tento distraí-la do assunto. Sei que a acompanhar o sumo virá uma outra qualquer iguaria que às suas mãos, faria as delícias de qualquer mortal e que durante alguns minutos a sua atenção estará concentrada na preparação do miminho.
Sempre soube que os assuntos do foro psicológico são difíceis de ultrapassar, pois não existe medicação química que cure maleitas sentimentais, existenciais ou psicológicas. É preciso que a interacção entre o doente e o médico funcione e que exista empatia e disponibilidade para procurar a cura. O Prof. João tinha-me sido aconselhado por uma amiga da minha mãe, pessoa com grande conhecimento das patologias psicossomáticas. Após ter recusado tratamento por diversas vezes, a conversa com a D. Luísa Almeida numa tarde ensolarada, no terraço de nossa casa, pareceu fazer-me sentido e acedi a procurar ajuda. De facto, eu estava uma sombra de mim, um farrapo humano, enquanto a minha mãe definhava de preocupação e apreensão. Não podia fazer-lhe mal muito mais tempo. Ela não merecia.
Cumpri a terceira sessão com o tal Prof. João, psicoterapeuta, tendo estabelecido de início, com ele,  a condição de nada lhe ocultar, mas em cuja terapêutica não entraria a acção de químicos. Tinha horror a comprimidos, ou outra qualquer forma de medicação. Ele acedeu, não de muito bom grado, mas percebendo a minha determinação. Fiquei-lhe grato. Dizia eu que cumpri hoje a minha terceira sessão de psicoterapia. Ao caminhar para o consultório tentava encontrar uma forma de encaixar as ideias por forma a fluírem quando lá chegasse. Em vão. Uma espécie de maldição tolda-me o raciocínio quando avivo a memória em relação àquela que me prendeu. Sim, porque de uma prisão se trata. Sinto-me preso e refém de um corpo que me enebriou pelo sexo. Perdi o normal sentido das coisas, sabendo apenas que aquela mulher, feiticeira por certo, me tinha lançado a maior das macumbas… Conheci-a num bar numa noite de aventura com amigos. Já bebidos e pouco lúcidos, perdemo-nos nos prazeres carnais com as raparigas contratadas para nos fazerem felizes, a troco de uns cobres e uns copos… Dançava com outras duas colegas de métier num palco meio escurecido, mas que deixava perceber os seus contornos, perfeitos. Estatura mediana, cabelo apanhado de lado e um fato suficientemente ousado para que conseguisse perceber-lhe o peito latejante e as pernas que rodopiavam em torno de um banco. De ficar sem respiração… Lembro-me de ter acordado num quarto em tons lilás, cheio de quadros e espelhos. Perdido e completamente rendido. Ela olhava-me recostada num cadeirão, nua e a desafiar-me. Colocou um cd e começou a dançar na minha frente, depois às voltas pelo quarto, e por fim, em cima da cama. Maldição, sim maldição de mulher que me acorrentou por dentro e durante muitos meses não me deixou pensar em mais nada do que no sexo que fazíamos a qualquer hora, de qualquer forma, fosse qual fosse o nosso estado de espírito. Tudo parava e tudo girava. Comecei a chegar atrasado ao trabalho, acabando por ser despedido. Não querendo que a minha mãe desconfiasse, ia arranjando desculpas para os dias que saía de casa mais tarde. Por fim, acabei por dizer que tinha mudado de emprego e que os horários eram flexíveis. Claro está que mal punha o pé na rua, o caminho era só um. O do quarto lilás, e o do sexo. Sem trabalho, precisava de dinheiro para manter a vida que tinha e para satisfazer caprichos daquela que haveria de quase me levar à loucura. Comecei por vender uma colecção de relógios que o meu avô me tinha dado. Devia ter batido com a cabeça naquele dia… Imperdoável. De seguida, vendi um conjunto de canetas de aparo com banho de ouro que a minha avó me oferecera no dia em que concluí a licenciatura. E por aí adiante, até que a minha mãe começou a dar por falta de coisas e me questionou. Reagi mal, como reagem todos os cobardes que não conseguem assumir os seus erros. Estava cego. Completamente cego por uma fulana que se apoderava da minha alma, do meu corpo e dos meus bens, a troco de prazer. Prazer que me desorientava completamente. Comecei a refugiar-me na bebida para afogar o sentimento de culpa e a incapacidade de varrer aquela mulher da minha vida. Tornei-me uma pessoa diferente. Agressivo, revoltado,  miserável. Um dia ao chegar ao quarto lilás tinha um bilhete: “ Não me procures mais. Foi bom enquanto durou, mas o que quero não é um homem bêbado e sem recursos. A minha vida seguiu outro caminho. Adeus.”
Julguei enlouquecer. Li e reli o bilhete. Não podia ser. Como era possível que a musa dos meus dias e das minhas noites me tivesse deixado? Eu, que só pensava nela, que lhe dei o que tinha e o que não tinha? Eu, que me perdia nas nossas horas de jogos carnais e que sabia satisfazê-la tão bem? Eu… miserável, fraco, obcecado….
Os tempos seguintes foram de tal forma horrorosos que hoje sinto remorsos profundos do sofrimento que causei à minha querida mãe. Ela sim, a verdadeira musa da minha vida. Ela que sofreu em silêncio durante todos aqueles meses, a ver-me afundar, mas pacientemente tentando manter um comando, ainda que remoto, sobre uma situação degradante.
Cumpri hoje a terceira sessão com o Prof. João. Tem sido bom falar, desabafar e procurar não só as causas, mas perceber o efeito e o caminho a seguir. Não me repreende. Não me condena. Não faz juízos. Apenas ajuda. E isso é tanto…
Francisco

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Nem Tudo São Farrapos


Um raio de sol espreitava por entre a persiana meio aberta, deixando adivinhar a manhã. Ao sentir a brisa vinda da janela enrolei-me no lençol e dei meia-volta na cama, com a intenção de dormitar mais algum tempo. Gosto de estar deitada e sentir o fresco afagar-me o rosto. Relaxa-me.
Dei voltas e voltas, mas o sono parecia não querer regressar. Coloquei os phones e seleccionei um dos dos CDs que normalmente me  tranquilizam e numa espécie de embalo, conseguem que “desligue” o pensamento e permaneça naquela letargia de dormir acordada. Quando olhei ao relógio tinham passado duas horas. Nada mau, pensei. Já “queimei” mais algum tempo  desta preguiça vazia que preenche uma grande parte dos meus dias.   Sem coragem para me levantar, ia arranjando desculpas,tão sem sentido, como a de ouvir a faixa seguinte,  na crença de descobrir um novo sentido nas palavras,  ou um novo acorde que me desafiassem o sentido e a imaginação. De facto eram as palavras e a música a minha companhia diária, infalível e fiel.
Há algum tempo que tinha perdido o gosto por quase tudo. Nada me fazia sentido. Ter que sair do meu casulo tinha-se tornado um fardo demasiado pesado. Não tinha paciência para as pessoas. Não conseguia lidar com uma sociedade de aparências, fria, calculista e onde os valores relacionais, aos meus olhos, se tinham perdido. Amizades, trabalho,   tudo tinha deixado de me fazer sentido. Queria apenas e só estar quieta com as minhas músicas, os meus livros, as minhas telas e as minhas recordações de um tempo em que tinha sido feliz.  Gostava de ir ao quintal de manhã cedo, quando ainda ninguém na vizinhança dava sinal de vida, ou ao serão, onde na espreguiçadeira me entretinha a olhar as estrelas, ou na sua ausência, as sombras dos ramos das árvores. Aquele silêncio era o meu conforto e a minha companhia.
Estou consciente que alguns anos atrás  caminhei a passos largos para uma depressão que quase me levou ao extremo? Sim, e não. Se por um lado tinha então, perdido a alegria de viver e toda a actividade do meu dia a dia era feita com um esforço desmesurado, como se eu fosse um autómato desprovido de cérebro, por outro lado, mais do que nunca naquela altura, como agora, os sentimentos estavam à flor da pele, hipervalorizando o que de bom ou mau acontecia, obrigando-me a procurar um ponto de equilíbrio que não conseguia. A lágrima fácil convivia com a revolta, e de repente uma força hercúlea vinda sabe-se lá de onde, apoderava-se de mim e numa espécie de transe, obrigava-me a tomar decisões, a ser racional e a afugentar os fantasmas que comigo viviam.
De facto, durante muitos anos fui obrigada a “apagar demasiados fogos” e a combater “em várias frentes”. Sozinha com o mundo às costas, como me sentia, consegui ter força para lutar e nunca falhar nas minhas obrigações familiares e profissionais, tão difíceis, como complicadas de gerir.  Estive sempre presente na vida dos meus filhos, dos meus pais, nos dois casamentos (falhados), no trabalho, esquecendo-me, porém, que eu também existia… Os meus gostos e os meus sonhos tinham ficado lá para trás, preocupada que estava em acorrer a todos e tentar que todos se sentissem felizes, confortáveis e sem faltas. Durante vinte anos vivi uma vida maratona, onde a corrida e as preocupações  não me deixavam espaço para mim própria, e muito sinceramente, “eu” existir ou não, era já uma questão esquecida no caminho da sobrevivência ao dia a dia.
Lentamente o cansaço foi-se instalando, a indiferença perante a vida ganhando espaço, o desprazer, o cinzento e o vazio, caminhavam a meu lado já de tal forma, que se “entranharam” nos meus poros. Afinal, desistir de tudo não me parecia de todo descabido. Quem era eu? O que restava de mim? Ninguém. Zero.
Ante a escolha  do vazio ou  de um possível amanhã, apanhei os farrapos, procurei o pavio ressequido de uma luz distante,  e munida de uma força emanada pela natureza, resolvi que no meu caderno amarelecido e guardado numa caixa no sotão, iria fazer os rabiscos e o rascunho de uma nova vida, reencontrando-me, talvez não na plenitude, mas no possível.
Agora a “ressacar” dessa viagem, penosa, solitária mas conseguida, dou-me o prazer de estar comigo, de desfrutar da minha própria companhia, sem dramas. Voltei a gostar. Readquiri a capacidade de apreciar o belo. Consigo arrepiar-me com o que me toca os sentidos. Já atendo o telefone e devolvo mensagens. As pessoas já não são para mim um fardo, mas consigo ser educadamente selectiva e reservada. Só entra quem eu permito.
 O sol já ia alto e o calor adivinhava-se pela persiana meio aberta. A preguiça vazia começava a aborrecer-me. Sim, já me sentia suficientemente segura para abraçar novos desafios. O meu sozinhismo tinha-me trazido uma nova perspectiva e uma nova luz, que a seu tempo me permitiam raciocinar de uma forma mais “light” sobre aquilo que consideramos difícil e contornar essas mesmas dificuldades.
“Veio-me à memória uma frase batida: hoje é o primeiro dia do resto da minha vida”.
Assim foi.
- Muito obrigada a todos os presentes, já que sem o vosso apoio e a vossa amizade esta conversa e este livro não teriam sido possíveis. Obrigada à minha família, por me permitir continuar a picar-lhe os miolos. Obrigada ao “eu”  reencontrado e a todas as forças que ajudaram a acordá-lo. A lágrima não é sinal de fraqueza, mas sim de descoberta que um novo caminho é possível. Cada pessoa tem uma luz interior que deve seguir, mesmo nas noites mais escuras. Desfrutem!
Isabel

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Olhar solitário


O tão desejado fim de semana tinha chegado. Qual adolescente, andou toda a semana ansiosa e pensativa. Nada poderia falhar nos planos que Ana e Carlos tinham feito. Programado, estudado ao milímetro, seria a primeiro fim de semana do resto das suas vidas. Pelo menos assim pensavam.
Quando Ana estacionou o carro no parque do hotel, já Carlos havia chegado há algum tempo e tinha pedido na recepção que lhes servissem o jantar no quarto. Carlos era detentor de um bom gosto extremo, experiente e uma pessoa tão doce quanto misteriosa. Talvez tivesse sido esse ar de mistério que desafiou e atraíu Ana.  Licenciada em psicologia social, adorava estudar as pessoas, perceber o seu lado não visível e esse trabalho que inconsciente e involuntariamente desenvolvia, transpunha-o para papel,  criando as personagens que davam vida às histórias que semanalmente publicava no jornal da terra. 
Conheceram-se numa apresentação literária. Carlos, fora convidado para participar. Ana acompanhava uma amiga, prima do autor. “Gosto da forma como aquele sujeito fala acerca do livro do teu primo”.  - É o Carlos. Amigo de infância e uma pessoa com uma cultura acima da média. Ouvi-lo é um prazer. Consegue fazer fluír o discurso e prende-nos a atenção a cada detalhe. No final apresento-to.
Mal sabia Ana o desfecho daquela tarde… Após a cerimónia de apresentação, feitos os cumprimentos e dados os autógrafos da praxe, houve direito a brinde e uma pequena celebração, onde Ana e Carlos foram apresentados.  Se mais palavras tivessem sido inventadas, mais eles teriam falado. Uma cumplicidade que mais fazia pensar que se conheciam de uma vida inteira, apesar do ar sempre  reservado de Carlos. Era um homem charmoso, com uma voz doce e pausada, mas algo distante.  Era do tipo que não deixava transparecer tudo no primeiro encontro.  Ana ficou curiosa. Uma pessoa absolutamente interessante.
- Meninas, combinei jantar com o Carlos para comemorarmos o lançamento do livro que mais luta me deu a escrever. Acompanham-nos? -  Ana e a amiga entreolharam-se. Ainda tinham que fazer a viagem de regresso a casa, e a noite estava chuvosa. Umas duas horas de caminho. - Primo, não leves a mal, mas temos que voltar hoje para casa. Não programámos ficar cá e além disso amanhã tenho que dar explicações a uns meninos que vão ter teste.
- A sério que estás a dizer que não nos vão dar o prazer da vossa companhia? Carlos, uma nega destas é inadmissível, ainda por cima num dia como o de hoje, não achas? - Concordo contigo. Deixa ver se os meus dotes de persuasão funcionam: embora sabendo que estas simpáticas jovens ainda têm que percorrer muitos quilómetros para que descansem no conforto dos seus quartos, estes dois seres menos jovens, mas apreciadores da vossa companhia e da vossa conversa, teriam o enorme prazer de as convidar para jantar num local que possa simbolizar o início de uma nova amizade e assim em conjunto celebrarmos o extraordinário trabalho hoje publicamente apresentado pelo meu querido amigo António, primo de V.Exa.
Gargalhadas.  - Obviamente que ficamos para jantar!
No regresso, já de madrugada, Ana sentia uma explosão. Não era do vinho que tinha bebido ao jantar, nem do Gin de frutos vermelhos que tomou no bar junto ao rio. Era um misto de excitação, agitação e uma sensação leve e boa que lhe fazia borbulhar o cérebro. Era o chamado efeito Carlos.
Daí para a frente os telefonemas sucederam-se, escreveram mails, quais cartas do tempo dos seus pais, encontraram-se sempre que se proporcionou uma deslocação ou um evento, e a sua proximidade era cada vez maior, embora duas horas de distância os separassem. Ana, como a maior parte das mulheres, lidava com a situação de forma muito mais clean do que Carlos, já que tinha uma vida extremamente ocupada profissionalmente, e colaborava como voluntária em alguns projectos culturais desenvolvidos por agentes da terra. Na sua rotina diária não lhe sobravam mais do que duas ou três horas livres. Já Carlos, menos conformista, muito senhor de si, insistia para que Ana aliviasse as tarefas por forma a que pudessem usufruir de mais tempo juntos.
- Bem vinda! Não imaginas o quanto estou feliz por teres conseguido organizar-te e teres vindo. - Enquanto Carlos a obsequiava com as boas vindas, Ana olhava em redor, sem palavras. A suite espaçosa, abria-se ao mar através de uma enorme janela e de um terraço adjacente. As suas flores preferidas numa jarra (lírios do campo). Pétalas variadas populavam sobre os dois sofás, sobre a cama e sobre a bancada da casa de banho. A luz intermitente era de velas, espalhadas por toda a suite e pelo terraço. Numa mesa um frappé com champanhe e frutos. Jamais tinha vivido um momento assim. Carlos adivinhava-lhe o pensamento e antes que Ana pudesse dizer algo, agarrou-a e com a sua boca colada na dela, não deixou que saísse uma única palavra.
- Shhhh…. Não precisas dizer nada. É por ti e para ti. A vida não pode ser só trabalho e luta. Tu mereces mais. Mereces viver e usufruír os bons momentos que a vida te possa proporcionar.
Ana deixou-se transportar, levemente, para um mundo que não tinha ainda conhecido. Entregou-se de corpo e alma àquela pessoa sensível, misteriosa, que lhe desafiava o sentimento mais escondido e a fazia sentir amada e mulher de verdade. Não queria pensar se tudo não iria passar de uma aventura, se  a ânsia de liberdade de Carlos lhe iria trazer dissabores, se, se, se…. Para ela o que contava era aquele momento.
O jantar extremamente bem confeccionado acompanhado por um vinho frisante gelado, convidou a um passeio ao ar livre. Caminharam pela praia já noite alta. Excepcionalmente o mar da Ericeira estava calmo, embora frio. Na noite apenas se ouvia o seu murmúrio e a respiração de Ana e Carlos. Que paz, que tranquilidade. Vontade de fazer o tempo parar e abraçar o mundo.
Na manhã seguinte Ana custou a despertar. Sentia-se bem naquele lazer entrelaçado e preguiçoso, onde os seus corpos dormiam e acordavam para se amarem de forma tão profunda quão irracional.
- O teu telefone está a tocar. Não atendes? - Já atendo. Prefiro olhar-te do que atender o telefone. Este nosso momento é único. O teu olhar e o teu cheiro são únicos.  O telefone não fica rouco… que se lixe o telefone.
Carlos tinha um olhar estranhamente fixo em Ana. Parecia querer reter todos os pormenores do seu corpo, qual pintor ou escultor, a memorizar o seu modelo. Com um toque suave percorreu-a por inteiro, excitando-a e  fazendo-a transbordar de prazer.
Novamente o telefone a quebrar a languidez. Um beijo profundo antes de atender.
… - Está certo. Dento de duas horas estarei na redacção e vamos juntos para o aeroporto. Até logo. - Assim terminou o telefonema. Carlos tinha que partir em trabalho. Fora chamado para fazer a cobertura dos atentados dessa noite. Ele sabia-o. Por isso deixou o telefone tocar sem que atendesse…
Ana permaneceu no quarto até ao por do sol. Recordou cada momento vivido. Percebeu o mistério que envolvia a vida de Carlos e percebeu que uma relação mais séria seria difícil de manter. A vida profissional dele tinha que ser livre de compromissos terceiros. A vida pessoal era evidentemente um reflexo da profissional. Sem sítio certo, a correr o mundo atrás das notícias, a dar a conhecer a sua imensa experiência em palestras e apresentações literárias, a fazer da sua vida um mundo visto aos seus olhos.
Arrumou as coisas e depois de um passeio sozinha na praia, regressou a casa. Amada, mas não conformada. Na área de serviços da autoestrada, enquanto comia uma sopa, reconheceu uma voz. Olhou para a TV, e lá estava Carlos, despenteado, mal dormido, mas com um extremo profissionalismo. “És um tipo demasiado bom para seres verdade”, pensou.  “Como gostaria de ver o mundo com os teus olhos...  “. Entrou no carro e ao seleccionar o CD para ouvir recordou-se da frase:
 “Amo/ amas a liberdade, por isso deixo/ deixas as coisas que amo/ amas, livres. Se voltarem, foi porque as conquistei/conquistaste.” - John Lennon
Ana e Carlos