quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

Uma Pauta ao Luar

- Um café curto por favor.
Recostou-se no cadeirão, acendeu um cigarro e respirou fundo. A brisa afagava-lhe o rosto e o cabelo já a querer atirar para o grisalho. Fechou os olhos e deixou-se estar. Quieto. Como se o mínimo movimento viesse estragar a paz que tanto procurava respirar.
“ O seu café, senhor. Posso servir mais alguma coisa?”
- Obrigado. Fico só pelo café por agora.
Com gestos lentos adoçou o café, e também lentamente o saboreou.
O rio parecia de prata. A lua reflectia na tranquilidade das águas do Douro, transformando-as num espelho. De cada vez que levava o cigarro à boca, numa miscelânea de sentidos que não conseguia perceber, punha-se a adivinhar as formas criadas pelas luzes e pela própria lua no leito do rio, e acerca delas no seu espírito surgiam pequenas histórias. Era sempre assim. O seu imaginário transportava-o. Refúgio? Talvez. Uma forma de tentar superar as memórias que com ele viviam dia e noite, dia após dia, semana após semana, mês após mês.
Já lá iam quatro anos e João continuava com o mesmo sentimento de perda, de saudade sufocante, de descaminho de vida, do espaço e dos sonhos. Tinha sido feliz, se acaso o que viveu poderá chamar-se de felicidade. Desde muito novo tinha tido duas grandes paixões – Madalena, e a música.
Em função delas foi alicerçando a sua existência; um namoro a princípio difícil mas que venceu barreiras e tabus, e que sobreviveu a todos os altos e baixos, a todas as crises existenciais, às mil e uma viagens, sempre cúmplice, sempre emotivo, sempre sensual. Madalena era tudo numa mulher só – a amiga, a conselheira, a crítica, a confidente,  a mulher e a amante. Nunca desde os seus quinze anos conseguira imaginar a sua vida sem ela. Era forte, tão forte o que os unia.
A música… ah a música … era nela que colocava toda a sua alma, era através dela que exprimia os seus sentimentos, e foi ela que o ligou a Madalena, quando ainda adolescentes começaram a cruzar-se nas festas de garagem. Ele, sempre rodeado das miúdas mais giras das festas, que como lapas se colavam, ensaiava novos acordes para os covers dos Beatles, dos Pink Floyd, de Tom Waits ou até mesmo dos Yes, para impressionar a rainha dos seus olhos, sempre distante, sem lhe dar grande importância.  Era contida nos gestos e nas palavras, mas quando os seus olhares se cruzavam, havia um brilho especial que sempre alimentou em João a esperança de uma conquista.
“Senhor, lamento mas temos que fechar”.
Despertou da sua espécie de transe, onde embalado pelos efeitos da lua e pela sua imaginação, deambulava pela sua história de vida tentando ilustrá-la com as sombras e as formas reflectidas no rio.
- Muito bem, peço desculpa. Não me apercebi que já só restava eu na esplanada. Nem me dei conta do tempo passar. Até amanhã Geraldo.
“Até amanhã senhor João. Tenha uma noite descansada”.
- Ainda vou caminhar um bocado. A temperatura está agradável e não me apetece ir para casa.  Boa noite.

De facto estava uma noite amena de Verão. Não suportaria o silêncio de casa. Madalena estava demasiado presente no seu espírito e no seu querer, para que fosse fechar-se em casa e passar mais uma noite sem dormir. Por outro lado, tinha decidido fazer aquele caminho interior que o ajudaria a lidar com a saudade e com a falta do seu amor. “Tens que te distraír João! Pensar noutras coisas, fazer algo que gostes e que possa de alguma forma preencher o vazio que sentes. Porque não voltas a compor? A música sempre foi o teu mundo. Não podes enterrá-la com a Madalena. Até porque a primeira pessoa a querer que a tua música continue, seria sem dúvida ela!” - eram as palavras de André, companheiro de uma vida, amigo inquestionável, um verdadeiro porto de abrigo que o acolheu quando João pensou que a vida tinha acabado ali, naquele estúpido acidente, do qual acordou dois meses depois, e tão mais pobre na alma e na essência… Há quatro anos que não compõe. Um luto amargo, com o qual não tem conseguido lidar . Passa os dias por entre leituras, telas, cigarros e cafés.
Subiu até aos Aliados. Cruzou-se com turistas, com residentes, passou por bares, desde os mais mal frequentados, aos que têm as elites como clientes, e viu a sua cidade com outros olhos. De repente percebeu que muitas coisas tinham mudado. De facto, era um prazer passear pelas ruas. As fachadas  dos prédios estavam iluminadas, com gosto, com charme. O comércio de rua tinha voltado a acender as montras, deixando ver espaços modernos, bonitos, a conviver com o tradicional numa simbiose perfeita. Ouviam-se vozes nas ruas. Havia vida!
Nada. Nada desta renovada cidade lhe tinha tocado até então, tal era a dor que sentia. Sentou-se nas escadas de acesso ao edifício da Câmara Municipal. Como era linda esta Avenida! Cheia de história, de património e um verdadeiro testemunho da força das suas gentes. Era como se cada luz, cada candeeiro em cada fachada, lhe transmitissem flashes e quisessem falar com ele. Mais dois cigarros.
Sentia-se um estranho na sua terra. Desceu a avenida, passou S.Bento, subiu ao Terreiro da Sé e já com algum cansaço foi até à Batalha. Sentou-se num banco. Tinha sede. Olhou em volta e já todos os bares estavam fechados. Afinal, o seu passeio nocturno levava já quatro horas a caminhar e a contemplar. Teria força para descer até ao rio e ir buscar o carro? Em último caso haveria um táxi.  Começou a dirigir-se para as Escadinhas dos Guindais, estreitas, pitorescas, a revelar alguma intimidade. Deteve-se. Novo cigarro. Uma espécie de aperto no peito e uma vontade estranha. Suores. Vacilou. Seria de ter andado tanto? Não… foram as memórias que o assaltaram. Ali mesmo ao lado estava o mítico clube que lhe fez tomar o verdadeiro gosto pela música e que foi em parte responsável pelas suas opções de vida. Lá, foi tão feliz… ele, a Madalena e todos quantos comungavam desse sentimento de que a vida é música e música é vida. Ainda estava aberto. Não sabia se devia entrar ou não, mas realmente tinha sede. Se por um lado o receio assomava, por outro a vontade e a curiosidade começaram a tomar forma.
- Boa noite. Ainda é possível entrar?
“Estamos quase a fechar e a banda vai terminar a actuação, mas se fizer questão, esteja à vontade Sr.João”.
Reparou então que era Geraldo quem lhe respondia. - Você por aqui? “Sim, Sr.João, tenho este trabalho suplementar depois de fechar o café. Gosto muito de música e consegui uma horas aqui no clube. Junto o útil ao agradável. Levo mais uns euros para casa, e tenho a possibilidade de apreciar boa música e conviver com excelentes profissionais.” Não sabia Geraldo que este clube, depois das garagens, tinha sido o seu berço. De repente, teve vontade de lhe contar, mas conteve-se. Ficaria para uma outra ocasião. - Olhe Geraldo vou apenas tomar uma bebida, pois estou cheio de sede. Não tem problema o facto de irem fechar em breve. Até já.”
Estava diferente. A decoração, as pessoas, mas o espírito era o mesmo. Havia fumo. Muito fumo, o que lhe recordava tempos passados, quando as regras dos estabelecimentos não eram tão rígidas, e o fumo mais parecia névoa. Ao sabor de um gin tónico ainda conseguiu ouvir os últimos dois temas da banda. Gostou. Tinham qualidade estes miúdos. De repente deu por si com uma enorme vontade de agarrar numa guitarra e soltar uns acordes. Até cantarolou como que a fazer coro com a banda. Era como se uma parte de si ressuscitasse. Madalena não estava a seu lado, como era hábito, mas estava consigo. Sentia-a. Sentia que ela lhe dizia: João, esta é a tua vida. Este é o teu caminho. Segue. Eu estarei sempre contigo para o bem e para o mal. Não deixes que a tua luz se apague. Toca  e canta para mim.
Tomou um segundo gin e saíu. Ao despedir-se de Geraldo sorriu e disse-lhe: - Obrigado. Amanhã havemos de falar sobre música no café. Tenho uma história para lhe contar. Bom descanso.
Desceu os Guindais com passo leve. A manhã anunciava-se, sem que os reflexos da lua no rio tivessem já desaparecido por completo. Antes pelo contrário, estavam ainda mais misteriosos, mais desafiantes. Talvez pela força do gin, que não bebia há muito tempo, ou por uma outra força qualquer que agora nem vinha ao caso, viu naquele rio prata a imagem de uma pauta. Seria o tema  da sua próxima composição.



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Sem Limite


“Não! Não! Não! - Nada disso! “
- Tem calma… não é necessário exaltares-te. Senta-te aqui junto a mim.
Estendeu-lhe a mão, trémula. Toma, bebe um pouco de chá frio. Vai fazer-te bem.
Olhou para o copo. Hesitou. Não porque não gostasse daquele chá feito com as ervas da quinta que  o viu nascer, mas apenas porque não. Era assim que reagia muitas vezes. Sabia que perdia toda a razão. Sabia que se tornava de tal forma antipático e estúpido, que era impossível manter uma conversa por mais de 3 minutos… Era superior a si …genes malvados que se apoderavam do raciocínio, das emoções e da vontade, que o transformavam numa das piores pessoas que o habitavam. Sim, porque dentro de si conviviam personagens diferentes, consoante o humor e a ocasião.
- Bebe, vais ficar melhor. Além disso, este calor está mesmo a pedir uma bebida fresca. Olha, juntei algumas ervas frescas para aromatizar. Como tu gostas. Fui apanhá-las de manhã enquanto vias os mails. Estava uma temperatura agradável, uma ligeira brisa, que não deixava antever que a temperatura fosse subir tanto. Pensei que uma manhã destas quisesses ir também. O passeio pela horta é giro. O cheiro dos legumes, a frescura da água da rega, acompanhar o crescimento dos produtos e apanhá-los para podermos fazer as nossas delícias… gosto tanto!…E depois dar a volta pelo pomar antes de vir para cima. Energia redobrada para o dia! - Os olhos azul-cinzento brilhavam enquanto relatava o passeio que diariamente fazia, com sol ou com chuva, mas normalmente sozinha, ou na companhia de Dog, o golden retriever que há tantos anos fazia parte da família.
“Sabes perfeitamente que não gosto desses passeios rurais. Fico contente que os aprecies e que te dêem a energia que dizes precisar, mas tens que perceber que a minha vida é outra. Acedi ao teu pedido de vir morar para a quinta, mas já é tempo de compreenderes que este não é o meu mundo. Sinto-me sufocar. Preciso de outro ar. Do ar das cidades. Do ar que outras culturas respiram. Do ar  do interior dos comboios ou dos aviões. Não consigo limitar-me a estar aqui. Não me chega. Não me alimenta a alma, entendes?”
- Mas aqui tens tido a oportunidade de falar e conviver com os nossos hóspedes, sejam eles portugueses ou estrangeiros. E hás-de reconhecer que temos conhecido pessoas muito interessantes e que nos têm enriquecido interiormente. - Já não sabia como argumentar com Manuel. Esta conversa começava a ser recorrente e isso inquietava-a.  Fora ela que lhe pedira para deixarem a cidade e abraçarem uma nova vida na quinta que sempre pertencera aos Cunha, e que de herança em herança, lhe coubera em testamento. É verdade que a Quinta do Alto estava muito degradada, que investiu meses a fio na sua reconstrução, que desenvolveu um projecto turístico e cultural que começava a dar frutos, e que em parte se sentia bem consigo própria. Porém … eram já bem claros  alguns sinais de inquietação no seu amor, na sua cara-metade.  Um amor à primeira vista, como nos filmes, mas tão profundo e cúmplice, que ficava desorientada só de pensar que Manuel um dia poderia partir. Era como se o melhor dos candeeiros que iluminavam a habitação se partisse em mil bocadinhos e de repente tudo ficasse escuro. Não! Havia de lutar com todas as suas forças na reinvenção daquela relação. A sua vida sem Manuel não seria mais do que um eclipse do sol.  Sem luz e sem sentido. A Quinta do Alto era o seu Forte. Não podia ficar sem o seu Guardião. O projecto fora traçado, discutido e realizado por ambos, portanto era obrigatório que ambos continuassem esse caminho de cumplicidade e crescimento.
“ Maria João”, (um estremecimento interior quando Manuel a trata por Maria João), “somos adultos. Somos cultos, educados, e temos que ser capazes de falar de coisas menos boas, com transparência e sinceridade.”  Segurou-lhe na mão e fixou-a nos olhos. Maria João era uma mulher interessante. Quase perfeita. Aliás, quase perfeita demais. Era uma pessoa esbelta, com um à vontade singular e com a delicadeza e educação dos Amaral. Empreendedora, procurava sempre o patamar acima. Não por vaidade ou ostentação, mas simplesmente porque gostava de fazer, fosse o que fosse. “Maria João, Jojo, sabes como gosto de ti. Sabes a facilidade com que abandonei amigos e uma vida que me preenchia, para vir contigo viver um sonho que hoje percebo ser mais teu do que meu. Vejo-te feliz com o projecto, reconheço o quanto te preocupas comigo, demais, por vezes, mas   para ser correcto e honesto contigo, preciso dizer-te exactamente o que me vai na alma.” Um esgar de Maria João deixava adivinhar que a conversa não ia ser fácil. Nada fácil.
Jojo tinha por Manuel uma paixão sublime. Ele, em conjunto com o projecto da Quinta eram a sua razão de existir. A eles dedicava os seus dias e as suas noites, parecendo que nada mais lhe seria necessário para se sentir preenchida. Podia não viajar, não ir a espectáculos, não fazer uma escapadinha de férias, porque o seu eu bastava-se com o homem que tinha a seu lado, e com o trabalho. De tão embrenhada que estava na relação e nas suas tarefas,  esquecia-se muitas vezes da complementaridade e da liberdade necessária aos casais, baseada no respeito mútuo e na partilha sã.  Manuel sentia-se um apêndice. Não duvidava nem por um minuto do amor de Jojo e da sua dedicação.  Mas não era aquela a forma de amor que queria para a sua vida. Sempre fora uma pessoa mundana, curiosa por natureza, aventureira e uma boa parte do seu alimento espiritual eram as viagens, o conhecer culturas, o vaguear pelo mundo. Pensou que a paixão que o uniu a Jojo fosse suficiente para se reinventar e trilhar um novo caminho. Mas não. Era mais forte do que ele. Sentia-se amputado de vida naquele cantinho no meio do nada. Os muros e vedações da Quinta, pareciam-lhe barreiras intransponíveis para o seu pensamento. O ondular do arvoredo, em dias de vento, mais se lhe assemelhava a um exército de fantasmas que o desafiava a alistar-se. Da piscina o único prazer que retirava era o de mergulhar pela manhã na água fria, e,  como se quisesse abraçar um oceano, dar 20 minutos de fortes braçadas, deixando por ali a energia negativa acumulada. Seria tão mais fácil se Maria João o percebesse, e ao menos conseguissem chegar a um acordo quanto à permanência a tempo inteiro na quinta...pelo menos a sua permanência …
Olhou-o. Séria. Pensativa, deixou transparecer um rasgo de revolta. Passados minutos estava aos gritos também. Transfigurada. Deselegante, até. Dava a sensação de que se pudesse acorrentaria Manuel com pesos nos pés e nas mãos para que ele dali não saísse. Perfeito egoísmo. Amar não é prender. Amar é dar-se a liberdade de  ser quem se é. Maria João não conseguia imaginar como o seu comportamento e as suas palavras levariam a um caminho sem volta…
Olhava-a ao longe a colher ervas que colocava numa cesta. Dog estava irrequieto, como se pressentisse que alguma coisa iria passar-se. Tinha que aproveitar o passeio pelo pomar, do lado oposto, para conseguir colocar os parcos pertences no carro (duas malas de roupa, três caixas de livros, CDs, o computador portátil e um baú invisível cheio de recordações).
“ Quero que saibas que continuo a pertencer-te e que fomos um só. Tenho uma parte de mim que pertence ao Mundo, e é para lá que preciso voltar. Dizer obrigado não faz sentido, por isso te deixo um beijo. Manuel”.
Fechou o livro onde há vinte anos guardou o bilhete, na esperança de voltar a ver Manuel entrar no pátio.  Fechou o livro, e arquivou também uma parte da história da sua vida.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Como Se Não Houvesse Amanhã

O sol estava particularmente quente naquela tarde de final de Julho, apesar da ligeira brisa provocada pela deslocação do barco. As encostas verdes em socalcos, erguiam-se majestosamente de ambos os lados, impondo-se, sobranceiras.  Aqui e ali edificações que o transportam para um imaginário longínquo.
Sentia-se calmo, mas simultaneamente inquieto. O verde da paisagem, a natureza, o correr tranquilo do rio por onde deslizava, revigoravam-lhe a alma carente de silêncio e daquela paz que só alguns entendem.
Olhava em redor, tentava adivinhar pela expressão o que estariam a pensar aquelas pessoas que consigo embarcaram, ilustres desconhecidos, mas de uma simpatia extrema,  que consigo comungavam desta viagem pela natureza. Durante o seu “estudo visual”, deteve-se num olhar que o fixava. Já tinha sentido aquele “frisson” em tons de castanho escuro enquanto esperava pelo embarque. Por meia dúzia de vezes ficou inquieto ao sentir-se fixamente observado. Quis abstraír-se, concentrar o pensamento na contemplação daquela paisagem enebriante, tão cheia e mística, mas a irrequietude superava-o.
Deveria ter cerca de 25 anos, estatura mediana, cabelo solto, meio selvagem, deixando adivinhar uma personalidade forte. Os olhos, grandes, pareciam querer pedir permissão para entrar no seu canto mais escondido e que tanto preservava. Se fumasse, poderia acender um cigarro e assim ganhar tempo para pensar, entre uma “passa” e outra. Poderia fingir não querer que o fumo incomodasse os demais, e deslocar-se para outro lugar no convés sem denotar que aquele nervoso miudinho estava a consumi-lo.
Deixou-se levar pelo pensamento, deslizando em ritmo sincopado com o navegar.  O seu olhar perdeu-se não sabe se nos vinhedos, se na tranquilidade das águas do Douro, onde as sombras pareciam querer transmitir alguma mensagem a quem estivesse mais atento.
“Olá! Estás a gostar do passeio?”
Estremeceu… virou-se. Aturdido, balbuciou algumas palavras engasgadas e sumidas… que coisa… sempre fora uma pessoa bem resolvida quanto ao sexo oposto, e agora a transpirar, mal conseguia articular as palavras mais banais… “ Olá! Sim… estou. E tu?”
“ Acho maravilhoso. Sabes, há imenso tempo que sonhava em fazer a descida do Douro. Moro longe e nem sempre é possível conciliar tempos e agendas. Vim sozinha e estou a adorar. É uma viagem tão tranquila e inspiradora, que acho que vou repetir mais tarde. Pena estar tanto calor e não podermos estar sempre a descoberto para que a brisa nos afague o rosto e o cabelo. Também estás sozinho? Ah, já agora chamo-me Maria. E tu?”
Despachada a miúda, pensou. Tentou ganhar fôlego e disfarçar o turbilhão de pensamentos que o assolavam, bebendo um golo de água fresca e ajeitando o cap que o protegia do sol. Em simultâneo olhava-a. Tinha uma beleza muito própria, onde o cabelo rivalizava com o brilho e a força do olhar. Via-se que era uma pessoa determinada, resolvida mas acima de tudo de um sorriso fácil e de uma simpatia sem par. Impossível desviar o olhar daquele rosto que o interrogava e que ao mesmo tempo lhe fazia crescer um sufocante desejo.
“Desculpa, queres um pouco de água? Um sumo? Apesar da deslocação do ar, está imenso calor. Queres ir para um local mais resguardado do sol?”
“Estou bem aqui, obrigada. Já vamos tomar uma bebida fresca mais tarde se quiseres. Queres falar-me de ti?
“De mim?… Olha, Maria, também vim sozinho  fazer a descida do rio. Não é a primeira vez, mas neste tipo de passeio sim. Gosto de viajar sozinho. De conhecer lugares e pessoas. Aliás, uma grande parte da minha vida é passada a viajar. Ah, e o meu nome é João Pedro, mas podes tratar-me apenas por João”. Uf…. Tinha conseguido pronunciar algumas frases com sentido, de uma assentada… Definitivamente a irrequietude e a ânsia estavam a dominá-lo. Mas queria saber mais, muito mais, acerca daquela Maria com quem sentia já uma cumplicidade feroz. “ E vens de onde? O que fazes? Viajas sozinha por alguma razão especial?”
Ficou a saber que Maria era da região de Lisboa, que tinha acabado a licenciatura há uma semana, e que se deu de presente a si própria, o privilégio de viajar pelo País durante 3 semanas, conhecendo, explorando, testando alguns limites, mas acima de tudo para se encontrar, longe da confusão e da correria da cidade, já que durante 4 anos não teve férias e conciliou o curso de arquitectura paisagistica com um trabalho a tempo inteiro num escritório de contabilidade. Vivia uma vida que não lhe fazia sentido, entre facturas, telefonemas, repartições de finanças, e a paixão por uma actividade que lhe permitia a libertação através da criatividade e da pureza daquilo que a terra mãe tem para oferecer e desfrutar, com cuidados e sustentabilidade. De si, falou apenas o essencial, absorvendo cada palavra, cada gesto, cada esgar de Maria. Considerava-a uma pessoa inteligente, culta, algo mística, mas que já o tinha cativado. Aliás, já se tinha “apossado” dele.
O tempo ali era lento, tão lento quanto a velocidade a que o barco deslizava no Douro, sem um balanço, num perfeito equilíbrio entre paisagem e estados de alma. De facto, parecia que nem João nem Maria queriam que a viagem terminasse. Ela, absorta na explicação que João lhe dava sobre a história e as estórias das várias quintas por onde passavam, cruzando com a história do próprio vinho do Porto, e por outro lado, fazendo menção aos escritores, músicos, pintores, que por ali nasceram e ali se inspiraram. Ele, encantado com o à vontade de Maria, com o despretensiosismo, com a forma simples e directa com que falava, e com um crescente fascínio por aquela personalidade meio citadina, meio selvagem, que o aturdia. Ao fim de algumas horas, era como se o seu conhecimento viesse de longe, talvez dos ingénuos tempos de escola, tal o à vontade com que a conversa fluía, por entre risos, espantos, quimeras, sonhos trocados, desejos silenciados.
Gaia marcava o fim da viagem. Uma dúvida: e agora? Ambos se olharam em silêncio, mas com um pensamento comum. Saíram do barco, ficaram parados a contemplar a Ribeira, a Muralha Fernandina e o casario dos Guindais, o vai e vem de pessoas na Ponte D.Luís, a tranquilidade do rio a correr ao encontro do mar, as gaivotas, os últimos passeantes da tarde… Caminharam silenciosos mas cúmplices até à Estação de S.Bento. Maria deveria regressar ao Pinhão de comboio. João, estava na sua cidade e muito próximo de casa.
“Tens programa para hoje aqui no Porto?” Foi como se a pergunta de Maria o despertasse daquele sufoco. “Eu? Nada de especial”. “Vem comigo então, até ao Pinhão.” Os olhos de Maria penetravam-no no seu eu mais profundo. Sentia-se “despido” e indefeso mas bem. Talvez aquela frase de Maria fosse tudo o que queria ouvir no momento. “Posso levar o carro”… “Não, João, não há necessidade. Vamos de comboio e continuas a falar-me acerca desta região pela qual já me apaixonei.” Um largo sorriso acedeu. Há muito que não tinha aquela sensação, se alguma vez a tinha tido, apesar das muitas mulheres que tinham já passado pela sua vida.
Um raio de sol matinal incidia nos seus rostos. Ao longe o ladrar dos cães na quinta anunciava o início do dia de trabalho. Por cima das suas cabeças, esvoaçavam pássaros cujo canto compunha a banda sonora das suas vidas naquele momento. Olharam-se. Perceberam então que a noite tinha sido passada na relva junto à piscina, onde se amaram e se entregaram como se não houvesse amanhã. 
Maria e João Pedro

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Somos Apenas, Instantes …



Na dúvida, na certeza,
Na noite, no dia,
No amor, ou na falta dele,
Na pressa, ou na lentidão,
Na paz, ou na guerra,
No silêncio, ou no ruído,
No belo, ou no horrível,
Na crueza, ou na bondade,
Na arrogância, ou na simplicidade,
Na prepotência, ou na humildade,
Na mentira, ou na verdade,
Na máscara, ou na transparência,
Na riqueza, ou na pobreza,
No carácter, ou na falta dele,
Na demência, ou na saúde,
O certo é que somos apenas, instantes ...

One Light, One Way ...

There is always one light.
There is always one way.
Even when I think I can’t find it out
Life brings me strenght and will.

There is always one light,
Showing that hope is there.
And if I think the nonsense stays
Life learns me maybe it is the way.

There is always one light,
Shining in the narrow street,
And I come up and down
Trying to catch it and making my own.

There is always one way,
In this strange and confused life.
Must I go further and search it?
Or do I keep here just passing by?

There is always one way,
Where I can pass by, or stay, or find.
There is always one way,
There is always one light...