Recostou-se no cadeirão, acendeu
um cigarro e respirou fundo. A brisa afagava-lhe o rosto e o cabelo já a querer
atirar para o grisalho. Fechou os olhos e deixou-se estar. Quieto. Como se o
mínimo movimento viesse estragar a paz que tanto procurava respirar.
“ O seu café, senhor. Posso
servir mais alguma coisa?”
- Obrigado. Fico só pelo café por
agora.
Com gestos lentos adoçou o café,
e também lentamente o saboreou.
O rio parecia de prata. A lua reflectia
na tranquilidade das águas do Douro, transformando-as num espelho. De cada vez
que levava o cigarro à boca, numa miscelânea de sentidos que não conseguia
perceber, punha-se a adivinhar as formas criadas pelas luzes e pela própria lua
no leito do rio, e acerca delas no seu espírito surgiam pequenas histórias. Era
sempre assim. O seu imaginário transportava-o. Refúgio? Talvez. Uma forma de
tentar superar as memórias que com ele viviam dia e noite, dia após dia, semana
após semana, mês após mês.
Já lá iam quatro anos e João
continuava com o mesmo sentimento de perda, de saudade sufocante, de descaminho
de vida, do espaço e dos sonhos. Tinha sido feliz, se acaso o que viveu poderá
chamar-se de felicidade. Desde muito novo tinha tido duas grandes paixões –
Madalena, e a música.
Em função delas foi alicerçando a
sua existência; um namoro a princípio difícil mas que venceu barreiras e tabus,
e que sobreviveu a todos os altos e baixos, a todas as crises existenciais, às
mil e uma viagens, sempre cúmplice, sempre emotivo, sempre sensual. Madalena
era tudo numa mulher só – a amiga, a conselheira, a crítica, a confidente, a mulher e a amante. Nunca desde os seus
quinze anos conseguira imaginar a sua vida sem ela. Era forte, tão forte o que
os unia.
A música… ah a música … era nela que
colocava toda a sua alma, era através dela que exprimia os seus sentimentos, e
foi ela que o ligou a Madalena, quando ainda adolescentes começaram a cruzar-se
nas festas de garagem. Ele, sempre rodeado das miúdas mais giras das festas,
que como lapas se colavam, ensaiava novos acordes para os covers dos Beatles,
dos Pink Floyd, de Tom Waits ou até mesmo dos Yes, para impressionar a rainha
dos seus olhos, sempre distante, sem lhe dar grande importância. Era contida nos gestos e nas palavras, mas
quando os seus olhares se cruzavam, havia um brilho especial que sempre
alimentou em João a esperança de uma conquista.
“Senhor, lamento mas temos que
fechar”.
Despertou da sua espécie de
transe, onde embalado pelos efeitos da lua e pela sua imaginação, deambulava
pela sua história de vida tentando ilustrá-la com as sombras e as formas
reflectidas no rio.
- Muito bem, peço desculpa. Não
me apercebi que já só restava eu na esplanada. Nem me dei conta do tempo
passar. Até amanhã Geraldo.
“Até amanhã senhor João. Tenha
uma noite descansada”.
- Ainda vou caminhar um bocado. A
temperatura está agradável e não me apetece ir para casa. Boa noite.
De facto estava uma noite amena
de Verão. Não suportaria o silêncio de casa. Madalena estava demasiado presente
no seu espírito e no seu querer, para que fosse fechar-se em casa e passar mais
uma noite sem dormir. Por outro lado, tinha decidido fazer aquele caminho
interior que o ajudaria a lidar com a saudade e com a falta do seu amor. “Tens
que te distraír João! Pensar noutras coisas, fazer algo que gostes e que possa
de alguma forma preencher o vazio que sentes. Porque não voltas a compor? A
música sempre foi o teu mundo. Não podes enterrá-la com a Madalena. Até porque
a primeira pessoa a querer que a tua música continue, seria sem dúvida ela!” -
eram as palavras de André, companheiro de uma vida, amigo inquestionável, um
verdadeiro porto de abrigo que o acolheu quando João pensou que a vida tinha
acabado ali, naquele estúpido acidente, do qual acordou dois meses depois, e
tão mais pobre na alma e na essência… Há quatro anos que não compõe. Um luto
amargo, com o qual não tem conseguido lidar . Passa os dias por entre leituras,
telas, cigarros e cafés.
Subiu até aos Aliados. Cruzou-se
com turistas, com residentes, passou por bares, desde os mais mal frequentados,
aos que têm as elites como clientes, e viu a sua cidade com outros olhos. De
repente percebeu que muitas coisas tinham mudado. De facto, era um prazer
passear pelas ruas. As fachadas dos
prédios estavam iluminadas, com gosto, com charme. O comércio de rua tinha
voltado a acender as montras, deixando ver espaços modernos, bonitos, a
conviver com o tradicional numa simbiose perfeita. Ouviam-se vozes nas ruas.
Havia vida!
Nada. Nada desta renovada cidade
lhe tinha tocado até então, tal era a dor que sentia. Sentou-se nas escadas de
acesso ao edifício da Câmara Municipal. Como era linda esta Avenida! Cheia de
história, de património e um verdadeiro testemunho da força das suas gentes.
Era como se cada luz, cada candeeiro em cada fachada, lhe transmitissem flashes
e quisessem falar com ele. Mais dois cigarros.
Sentia-se um estranho na sua
terra. Desceu a avenida, passou S.Bento, subiu ao Terreiro da Sé e já com algum
cansaço foi até à Batalha. Sentou-se num banco. Tinha sede. Olhou em volta e já
todos os bares estavam fechados. Afinal, o seu passeio nocturno levava já
quatro horas a caminhar e a contemplar. Teria força para descer até ao rio e ir
buscar o carro? Em último caso haveria um táxi.
Começou a dirigir-se para as Escadinhas dos Guindais, estreitas,
pitorescas, a revelar alguma intimidade. Deteve-se. Novo cigarro. Uma espécie
de aperto no peito e uma vontade estranha. Suores. Vacilou. Seria de ter andado
tanto? Não… foram as memórias que o assaltaram. Ali mesmo ao lado estava o
mítico clube que lhe fez tomar o verdadeiro gosto pela música e que foi em
parte responsável pelas suas opções de vida. Lá, foi tão feliz… ele, a Madalena
e todos quantos comungavam desse sentimento de que a vida é música e música é
vida. Ainda estava aberto. Não sabia se devia entrar ou não, mas realmente
tinha sede. Se por um lado o receio assomava, por outro a vontade e a
curiosidade começaram a tomar forma.
- Boa noite. Ainda é possível
entrar?
“Estamos quase a fechar e a banda
vai terminar a actuação, mas se fizer questão, esteja à vontade Sr.João”.
Reparou então que era Geraldo
quem lhe respondia. - Você por aqui? “Sim, Sr.João, tenho este trabalho
suplementar depois de fechar o café. Gosto muito de música e consegui uma horas
aqui no clube. Junto o útil ao agradável. Levo mais uns euros para casa, e
tenho a possibilidade de apreciar boa música e conviver com excelentes
profissionais.” Não sabia Geraldo que este clube, depois das garagens, tinha
sido o seu berço. De repente, teve vontade de lhe contar, mas conteve-se.
Ficaria para uma outra ocasião. - Olhe Geraldo vou apenas tomar uma bebida,
pois estou cheio de sede. Não tem problema o facto de irem fechar em breve. Até
já.”
Estava diferente. A decoração, as
pessoas, mas o espírito era o mesmo. Havia fumo. Muito fumo, o que lhe
recordava tempos passados, quando as regras dos estabelecimentos não eram tão
rígidas, e o fumo mais parecia névoa. Ao sabor de um gin tónico ainda conseguiu
ouvir os últimos dois temas da banda. Gostou. Tinham qualidade estes miúdos. De
repente deu por si com uma enorme vontade de agarrar numa guitarra e soltar uns
acordes. Até cantarolou como que a fazer coro com a banda. Era como se uma
parte de si ressuscitasse. Madalena não estava a seu lado, como era hábito, mas
estava consigo. Sentia-a. Sentia que ela lhe dizia: João, esta é a tua vida.
Este é o teu caminho. Segue. Eu estarei sempre contigo para o bem e para o mal.
Não deixes que a tua luz se apague. Toca
e canta para mim.
Tomou um segundo gin e saíu. Ao
despedir-se de Geraldo sorriu e disse-lhe: - Obrigado. Amanhã havemos de falar
sobre música no café. Tenho uma história para lhe contar. Bom descanso.
Desceu os Guindais com passo
leve. A manhã anunciava-se, sem que os reflexos da lua no rio tivessem já
desaparecido por completo. Antes pelo contrário, estavam ainda mais
misteriosos, mais desafiantes. Talvez pela força do gin, que não bebia há muito
tempo, ou por uma outra força qualquer que agora nem vinha ao caso, viu naquele
rio prata a imagem de uma pauta. Seria o tema
da sua próxima composição.