quinta-feira, 30 de julho de 2020

O Que De Nós Se Vê


- Que se passa Rui? Estás tão cabisbaixo e silencioso…
- Não se passa nada. Apenas não me apetece falar. Estou cansado. – Sentado na beira da piscina a balançar os pés dentro da água morna, Rui permanecia de semblante fechado.
- Como não se passa nada? Vieste calado durante toda a viagem. Mal chegámos, jogaste as malas para o quarto e vieste a correr para a piscina, sem quase dizeres uma palavra. Talvez fosse preferível termos adiado o fim de semana e virmos numa altura em que o teu humor estivesse um pouco melhor. Sinto-me viajar sozinha na companhia de um estranho.
Existem alturas complicadas, que nem sequer sabemos como traduzir em palavras. O certo é que quanto menos queremos magoar aqueles de que gostamos, mais as nossas angústias existenciais se encarregam de nos fazer tomar atitudes que não conseguimos explicar. Como fazer perceber a Susana que o que se passa não é com ela? Que a amo incondicionalmente, mas que neste momento preciso do meu espaço interior para pensar? Que não a quero magoar, pois iria culpabilizar-me para sempre se a ferisse? Planeámos este fim de semana a dois, longe de tudo e de todos. A pressão do dia a dia tem-me consumido e tem desgastado a nossa relação. Era imperioso fazer um reset e devolvermo-nos, antes que não houvesse solução. Deixei que a Susana escolhesse o local, já que é perita em descobrir sítios verdadeiramente idílicos, onde a natureza e a paz nos abraçam. E não falhou em nada. A viagem demorou três horas; três longas horas em estradas secundárias, ora a serpentear a serra, ora por entre vales verdejantes, cuja paisagem era povoada por aldeias de granito dispersas, campos de cultivo e algumas explorações pecuárias de pequena dimensão. Essencialmente agricultura de subsistência. A reduzida velocidade a que tinha que conduzir permitia-me contemplar e observar os mínimos detalhes. Nem por um minuto fiz observações acerca do percurso, pois não queria melindrar a Susana, mas o facto é que estava desejoso de chegar ao destino, pensando já que passados dois dias teria que fazer o caminho inverso. Ao meu lado, percebi alguma indisposição na Susana, fruto das muitas curvas, mas também ela não deu parte de fraca.  Esperança que o nosso refúgio compensasse o incómodo da viagem…
- Susana, a viagem foi um pouco cansativa e se pouco falei, foi porque tive que estar atento à estrada, que como percebeste não é das melhores. Não dramatizes. Tu própria estavas mal disposta, ou pensas que não percebi? Tem calma. Respira. Senta-te aqui junto a mim. Incrível como a água da piscina está a uma temperatura superior à temperatura do ar. Certamente que é aquecida.
- Sim, eu vinha mal disposta, mas tu não ajudaste, de tão calado… Podias ao menos ter dito se gostas do hotel. – Estava nervosa e impaciente. Desiludida talvez…
- Gosto sim, querida. É um sítio lindo, com magia e poesia para nos envolver. Ninguém iria imaginar que no meio do nada existiria algo assim. Parabéns pela escolha. Vamos mergulhar? De facto nunca tomei banho numa piscina de ar livre com esta temperatura e ainda por cima no Inverno.
Tentei desfrutar ao máximo aqueles dias de pausa. Tentei que os momentos de cumplicidade a dois voltassem a ter o frisson de antes, o desejo calado, o toque escaldante, o beijo silencioso e atrevido, a conversa interminável, a gargalhada espontânea. Confesso que por momentos me esqueci da conversa com o médico, de tão normal que estava. A Susana tinha um brilhozinho nos olhos como não lhe via há muito tempo. Afinal, independentemente de tudo, tinha sido uma decisão acertada a de virmos. É necessário fazer pausas e reequacionar a vida. Sobretudo para mim, que naquele momento vivia a uma só voz um drama interior difícil de abordar.  Andei durante meses a adiar uma ida ao médico, por cobardia, por medo, por insegurança. A pressão do trabalho e os problemas recorrentes na empresa serviam-me para me esquivar a um relacionamento mais íntimo, depois de algumas tentativas falhadas, que não conseguia aceitar nem explicar. Só a paciência e a compreensão da Susana conseguiram que não enlouquecesse de frustração e complexo. Para mim era um assunto tabu, acerca do qual nem queria falar. Fui-me arrastando com o meu sofrimento, e só no dia em que percebi que estava a fazer sofrer a minha companheira de forma injusta e sem o merecer, aceitei para mim consultar um médico, não sem que antes tenha feito uma profunda pesquisa na net. Fiz exames e nada comentei em casa. A última consulta tinha sido precisamente na véspera desta nossa escapadinha. Tinha ainda a memória fresca da conversa com o Dr.Sá. Que tudo se ia resolver, com tempo, com paciência e com mudança de hábitos de vida. Não tinha ainda conseguido contar à Susana. Se por um lado pensei que não seria a altura certa para termos esta conversa, por outro lado, ante a normalidade evidenciada, achei que lhe deveria revelar toda a minha angústia dos últimos tempos. Percebi que quando duas pessoas se amam, a dor partilhada é muito mais fácil de suportar e que a ajuda mútua pode fazer toda a diferença.
- Realmente esta estrada é péssima, mas valeram a pena estes dias meu amor. Foi preciso um exílio forçado para te fazer falar. Eu sabia que alguma coisa se passava contigo, mas pensei que a situação tivesse a ver com o facto de teres outra pessoa na tua vida e já não me desejares. Devias ter partilhado tudo comigo antes, querido. Eu própria teria tido outra atitude e outro comportamento. Sabes, a minha avó tinha uma expressão de que gosto muito e que utilizava quando as coisas não eram muito perceptíveis, ou quando achava que as pessoas escondiam alguma coisa: “podemos ser quem nós sabemos que somos, mas aos olhos dos outros, somos o que de nós se vê”.
Susana e Rui

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Vazio Das Vinte e Uma e Trinta


Vinte e uma horas e trinta de um vazio que lhe era já familiar.
Tinha sido mais um daqueles dias perfeitamente alucinados, por entre telefonemas, mails, reuniões, assuntos complexos para tomar decisões, já para não falar dos filhos e das respectivas vidas, e da habitual visita a casa dos pais,  antes de descalçar os sapatos e mudar de roupa.
Vestida de uma outra pele recostou-se no sofá. Exausta. Os dias já não eram mais do que um somatório de obrigações, deveres, dar resposta a solicitações, acorrer às múltiplas situações para que era requisitada, sem ter tempo para pausar sequer. Verdade que sempre se mostrou disponível para ajudar, para colaborar, e se algumas vezes pensou escusar-se a alguns desafios, outras tantas vezes, era de si que partiam as ideias  que empenhadamente punha em prática. O certo é que ultimamente se sentia desgastada e cansada. Eram anos seguidos a manter o mesmo ritmo, com preocupações e responsabilidades acrescidas, às quais o seu sentido perfeccionista, estético  e exigente , colocava sempre num patamar acima. Sabia que conseguia fazer bem feito, por isso a inquietação que a habitava, não lhe dava espaço para erros.
Há já alguns dias que andava pensativa, algo melancólica, misto de realidade e interrogação. Os serões começaram a ter um peso diferente no seu estar, como diferente começou a sentir-se. Não era já a conversa com os amigos que lhe animava o final do dia. Muito menos a televisão, que ligava apenas para ver o noticiário. Talvez uma música suave que lhe apaziguasse a alma e lhe fizesse descansar a mente. 
“Cuidado com os vazios de uma vida cheia demais”… tinha-lhe dito um amigo há dias, quando tomaram um café a correr, notando-lhe sinais de desgaste, de pressão e de alguma solidão.
Fez um chá e retornou ao sofá. Aconchegou-se na manta e ficou a ouvir o silêncio. O seu e o da casa. Recordou as palavras de Rui. Tão verdadeiras lhe pareciam… De facto tinha uma vida preenchida em questão de horários.  Em termos profissionais tinha inteira dedicação e somava horas de trabalho nos projectos em que se envolvia. A família, cujo bem estar sempre fora o seu principal objectivo, e a quem dedicou toda uma vida, que conseguiu conciliar com tudo o resto,  absorvia-lhe grande parte do tempo disponível, já que sempre fora a âncora emocional, materna e lúdica daquela casa. Nas poucas horas de lazer, procurava outros projectos que a completassem em termos interiores, já que a frieza empresarial não lhe permitia enfatizar a sua parte emocional e relacional, tão importantes à alma humana. Era nesta vertente que cruzava os caminhos dos amigos, com quem privava quando possível, com quem assistia a espectáculos e com quem viajava, se bem que cada vez menos.
No silêncio da sua conversa consigo própria, percebeu estar esgotada, vazia. Vazia de uma vida cheia, que não lhe deixava espaço para se encontrar consigo. Os filhos haviam crescido, e mantendo-se a preocupação sobre si próprios e sobre as suas vidas, tinham seguido o seu caminho. A casa parecia-lhe enorme, de tão vazia de gente. E se o silêncio era bem vindo e a acompanhava, era esse mesmo silêncio que a fazia despertar para a realidade em que vivia. Deu-se conta que a pressão que lhe impunham e que ela mesma se impunha, era uma má companhia. Teve vontade de fugir, de partir para longe, sem telefone, sem internet, apenas partir para onde pudesse reencontrar-se. Sentia uma dor enorme, que não conseguia explicar. Sempre na vida fizera tudo com convicção, com a perfeição que lhe era característica e onde nada podia falhar. Sentia-se bem ao ver à sua volta rostos alegres, realizados, muito pela sua ajuda. Sentia-se bem ao perceber que os valores transmitidos aos filhos tinham dado os seus frutos. Sentia-se bem por sentir que cuidava dos pais o melhor que podia e sabia. Sentia-se bem por ter ajudado a criar projectos de vida. Todos a consideravam uma espécie de mulher de ferro, que tudo aguentava e a que nada amedrontava.  Só não aguentava a dor que começava a consumi-la, silenciosa…
Partir seria a solução? Conseguiria de facto desligar-se de uma vida tão intensa, que nem lhe deixava tempo para uns laivos de romance?
Os pensamentos sucediam-se, frenéticos, em corropio. Mais uma caneca de chá e uma música calma como companhia. O telefone tocou. Decidiu não atender. Voltou a tocar e de novo não atendeu. Sucederam-se mensagens que não leu. Afinal era possível parar o tempo, passar as urgências a não urgências, perceber que a pressa também pode ser repouso, e que nessas circunstâncias, a vida não acabou.
“Um Lugar” era a música que tocava. As teclas, suaves, transportavam-na numa viagem emocional e de alma, na procura do seu Lugar…
Maria

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Já Te Escrevi Um Poema


Já não sei quantas vezes acendi a luz para ver as horas. Horas lentas numa noite interminável … Disseste-me que virias ao início do serão. Tenho-te aguardado naquela ânsia de te tocar, de te olhar, de sentir o teu cheiro, e de profundamente te amar.
Prisioneiro dentro do meu próprio eu, sinto-me desgraçado na tua ausência.
Habituaste-me ao teu calor, ao toque suave da tua pele, às conversas intermináveis, enfim… habituaste-me a ti.
Lembro-me do nosso primeiro encontro. Mero acaso. Eu descia a rua em direcção a casa,  aborrecido e frustrado por não ter conseguido escrever o artigo com que me comprometera para o jornal. Certo que o tema que me tinham dado, não tinha muito a ver comigo, mas o simples acto de criar escrita, obriga a que nos projectemos e vejamos além. Tinha-me dado uma branca, e não conseguia escrever uma única frase que fosse coerente. De irritado que estava, ao tropeçar numa pedra mais saliente, atirei com o caderno onde esboçava os rascunhos. Quis não o apanhar do chão. Quis que aquela nuvem que me bloqueava, e que para mim tudo tinha a ver com o caderno, desaparecesse de vez. Talvez não devesse ter aceite o convite do Daniel. Talvez tivesse sido preferível continuar a ser um mero funcionário dos correios, ordenado no final do mês, horário fixo, e ter uma vida pacata e acomodada à minha condição. Não era de todo um dos meus melhores dias...  Cruzaste-te comigo e rapidamente resgataste o caderno do passeio húmido e escorregadio. Ficámos presos no olhar. Agradeci-te e lembro-me de te ter dito que não valia a pena teres apanhado o caderno. Que não continha nada a não ser frases sem nexo. “ O sentido das frases e das palavras é subjectivo”, retorquiste. “Por vezes é do caos e da desorganização que surgem as grandes ideias”, acrescentaste. “Pense nisso”, e seguiste o teu caminho. Fiquei a olhar-te. O caos? Caos era o que eu sentia naquele momento, e a palavra ficou a batucar-me no cérebro, qual pêndulo … caos… caos … caos…
Nessa noite sonhei contigo. Não me perguntes porquê. Há coisas que são maiores do que nós. Sonhei ver-te no mesmo sítio e entregares-me um caderno completamente escrito. Era a tua letra. Eram as tuas palavras, as tuas frases. No início  e no final a frase “ o desabrochar dos nossos caos”...Acordei transpirado, desorientado. Percebi então que tudo não passava de um sonho. Levantei-me, e ao passar pelo espelho fiquei a olhar-me. Nunca passo mais do que quatro ou cinco segundos frente a um espelho, a não ser para fazer a barba. Por norma não gosto de espelhos.
Aquela contemplação de mim mesmo, fez-me questionar. Quem, o quê, como, porquê… uma imensidão de perguntas que me coloquei e para as quais tentei arranjar uma reposta, ou talvez um incentivo.  Se voltasse a encontrar-te falaríamos sobre o caos.
Não dormi mais nessa noite. Peguei no caderno e na caneta, e foi como se de repente todas as ideias fluissem, organizadas, metódicas e coerentes. Escrevi o meu artigo de uma assentada. Li, revi, passei para o pc e enviei para o jornal. Estava-te grato, tão grato que tive vontade de te escrever um poema…
Não nego que fiz de tudo para voltar a encontrar-te. Afinal a vila não é grande, e existia essa possibilidade. Em vão. Nem sinal de ti, até ao dia em que entraste nos correios para levantar uma encomenda. Estremeci. Sem querer mostrar a minha surpresa, a minha alegria, e ao mesmo tempo a minha atrapalhação, cumpri todo o protocolo do atendimento. No final, não resisti: “ Fátima, tenho que lhe agradecer pelo outro dia. Lembra-se de mim? Apanhou do chão um caderno que tinha acabado o seu percurso… “. “Claro que sim! Estava a pensar que já tínhamos falado, e ia precisamente perguntar-lhe se devolveu vida ao caderno?”
Ousei convidar-te para um café ao final da tarde. Tinha tanto para te contar …
Falámos imenso tempo. A tua inteligência cativou-me. Era fácil estar na tua companhia. Alguém a quem a vida moldou, mas que se impunha às situações com uma sobranceria tão elegante, quão elegante era todo o teu ser.
Continuámos a encontrar-nos nos finais de tarde, após o teu regresso da faculdade. A minha vida tomou um único sentido: tu. Lentamente fui-me construindo  a gravitar em torno de ti. Se me pedisses a maior das enormidades, fá-lo-ia por ti. Amava-te intensamente e mal podia esperar pelo próximo encontro. Tu, por vezes parecias distante, facto que eu relacionava com o stress do estudo, outras vezes, eras a perfeita musa que descrevi no tal poema e que te ofereci na noite no nosso primeiro encontro íntimo. Uma inevitabilidade.
Os meses sucederam-se e junto a ti sentia-me ancorado. Inseguro e desgraçado quando não podias vir. A prisão que eu próprio havia criado, iria levar-me para a antecâmara da loucura, sem sentido e sem nexo.
Percebo hoje o quanto fui possessivo, obcecado e egoísta. Se te aguardo nesta inquietação, é porque te amo e te quero,  mais do que tudo na vida, mas é também porque quero dizer-te que mais uma vez o caos cumpriu o seu papel, ao fazer-me perceber que estava no caminho errado.
Já não sei quantas vezes acendi a luz para ver as horas, e percebo agora que tu já não vens…
Paulo e Fátima

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Metades Perfeitas


Se há amores e paixões que nos marcam, arriscaria dizer que os mais verdadeiros e puros são os da adolescência. Essa fase da descoberta de nós próprios e dos outros é fascinante, intensa e desprovida de segundas intenções, na maior parte dos casos.
Foi o que aconteceu com Isabel e Fernando. Hoje com vidas feitas, famílias, percursos de vida diferentes, mas unidos por uma amizade cúmplice de um passado remoto de descoberta, de emoções, de sensações e de um olhar o mundo.
Tinham passado vinte e cinco anos desde a última vez que se cruzaram na vila. Impossível não reconhecer o sorriso de Fernando. O cabelo já a apresentar uns laivos grisalhos, mas com a mesma melena teimosa  e irreverente a descaír para a testa.  O rosto, moreno, quiçá mais acentuado pelo bronzeado, mantinha a expressão franca a aberta que lhe conhecia. Uns  olhos verdes sorridentes compunham aquilo a que se chama uma moldura perfeita.
- Fernando, há quanto tempo… não posso acreditar … Ainda te lembras de mim?
- Olha a minha Isabelocas! Há tantos anos… Claro que me lembro de ti, mas confesso que de repente não te reconheci. Estás gira miúda!
Um abraço, as normais trocas de galhardetes entre ambos, onde residem, as famílias, o que fazem na vida, enfim… um palrar sem termo à vista.
- De vez em quando sei notícias tuas pela tua prima Zé. Todos os anos fazemos um almoço de curso e lá vamos sabendo as novidades. Tenho acompanhado o teu percurso à distância e fico muito feliz por perceber que agarraste a oportunidade de fazer o que realmente gostas e sempre gostaste. A música sempre fez parte de ti e do teu ADN.
- É verdade Isabel. Tinhas razão quando me dizias para seguir o caminho da música, custasse o que custasse. Muitas vezes duvidei de mim, tive inseguranças, mas as tuas palavras ecoavam sempre na minha cabeça. Quero que saibas que grande parte do que sou hoje devo-o a ti. Apesar da nossa separação, de teres partido da vila e da minha vida, durante muito tempo foram as tuas frases e as tuas expressões que me fizeram seguir em frente. Foste sempre muito sincera e transparente. Pena as nossas vidas terem levado rumos diferentes.
- Os rumos possíveis face às circunstâncias na altura. Mas olha que fico mesmo contente por ti. E tinha tantas saudades de te ver e de falar contigo… Já algumas vezes pensei enviar-te mensagem nas redes sociais, mas depois acabo por desistir. E pronto, aqui estás tu, igualzinho, apesar dos anos, e aqui estamos a conversar como nos velhos tempos.
- Como nos velhos tempos, não! Só se nos formos sentar na muralha. Assim sim, será como nos velhos tempos!
- E porque não?
- Vamos então. No caminho vais só deixar-me passar pelo carro para ir buscar uma coisa.
Era a guitarra.
- Pronto, assim podemos reconstituír a cena.
Entre gargalhadas e conversas mais sérias, as horas passaram sem que dessem por isso. Confissões da partida brusca de Isabel, apaziguaram uma mágoa latente no coração de Fernando. Ela não o abandonara pelo fim de uma paixão, mas por pressão familiar que não conseguia contornar na altura. Os seus estratos sociais eram diferentes aos olhos da família de Isabel, e um namorico entre os dois envergonhava todo um conjunto familiar, que se intitulava da aristocracia. De facto Fernando tinha origens humildes, mas um coração tamanho do mundo. Era uma pessoa educada, que procurava saber e  cultivar-se, mas cujo mundo era diferente do de Isabel. Não que eles o sentissem, já que as suas conversas e interesses estavam em consonância. O que diferia era o meio familiar e social, mas Isabel foi sempre resistindo às pressões, até que os pais a obrigaram a mudar de terra, matriculando-a numa escola em Lisboa e arranjando todos os pretextos para que não voltasse à vila, nem nas férias, altura em que lhe arranjavam ocupação de baby-sitter na casa de amigos na linha de Cascais. Foram anos de revolta, de frustração, de um mau estar que só mais tarde conseguiu digerir e utilizar como mola para uma nova vida.
Fernando, após o liceu, decidiu sair do país. Arranjou trabalho para se sustentar e em simultâneo iniciou estudos de música numa escola bem reputada. Reagiu muito mal à partida de Isabel, e ir para longe foi a solução que procurou por forma a evitar recordações. Isabel era a sua metade, a sua paixão, a sua confidente, a sua musa inspiradora, a sua maior fã entusiasta e franca, aquela que queria para sempre a seu lado.
Ambos passaram por outros relacionamentos, por casamentos falhados, e ali estavam agora sentados na muralha como há trinta anos atrás, a partilhar saberes, pensamentos,  dores de existência, a falar dos filhos,  como se nada tivesse acontecido.
- Isabel, tinha tantas, mas tantas saudades destas conversas, das tuas dissertações sobre quem somos e qual o nosso propósito, da tua forma de raciocinar sobre os assuntos. Nunca, mas nunca me cruzei com alguém que me prendesse na conversa e nos temas como tu. Durante muitos anos imaginava ver-te a atravessar uma rua de Paris e correr para ti. Muitas outras vezes pensei regressar e ir ao teu encontro, mas o orgulho falava mais alto. Tu tinhas-me deixado e a tua vida tinha seguido outro rumo. De facto, nada poderia esperar. A tua família nunca iria permitir que me reaproximasse de ti, e tu talvez até já me tivesses esquecido. Foi muito doloroso.
- Para mim também foi,  acredita. A dor e a revolta consumiram-me durante anos. Não consegui ter estabilidade emocional e se pensei alguma vez resignar-me, foi a maior asneira que fiz. Portanto, está à vista...
Fernando pegou na guitarra e aos primeiros acordes as lágrimas começaram a correr dos olhos de ambos. Sim, tinha sido aquela  canção a banda sonora do início da sua paixão. Se dúvidas restavam, estavam dissipadas:  metades  perfeitas…
Isabel e Fernando

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Uma Alvorada no Peito


Tenho saudades de ver o mar.
Tenho saudades do vento, da brisa, do cheiro, da cor,  da espuma das ondas a bater na rocha.
Tenho saudades da simplicidade de gostar do mar só porque sim, e da paz que só os simples e sensíveis conseguem atingir através de uns meros borrifos que assentam na pele.
Quis o acaso ou o destino que partisse para longe, para um interior geográfico onde a maior quantidade de água, em forma de lago artificial, fica a cerca de mil quilómetros.
Confesso de no início me era completamente indiferente esta interioridade, tal a necessidade de afastamento, quase reclusão, que sentia. O burnout  tinha - me despido da mais elementar capacidade de conviver normalmente,  de sair de casa e de enfrentar as mesmas caras, as mesmas ruas e os mesmos edifícios. Falar com quem quer que fosse era para mim uma tarefa tão dolorosa, como doloroso era sentir-me de uma inutilidade extrema. Não conseguia pensar, trabalhar ou organizar o meu dia a dia. Sentia que a única hipótese era fugir para longe e tentar reencontrar-me algures pelo mundo. Nem a expressão lacrimejante da minha mãe me demoveu. Ela, que me conhecia tão bem, que era o meu porto de abrigo, o meu colo, a minha crítica e a minha âncora.
Dizem que se tem instinto de mãe. Eu não lhe chamarei instinto. Chamo-lhe antes uma força que nos agarra, mas que em simultâneo nos liberta para a vida, nos desperta enquanto nos acarinha, nos aconchega no sofrimento e que com um olhar de luz, nos indica o caminho.
Todas as manhãs caminhávamos à beira mar. Era um hábito e um ritual que mantivemos durante anos, desde que pela primeira vez ousei querer ter uma vida independente e arrendei um pequeno apartamento em frente à praia.  O cheiro do mar e a brisa inspiravam as nossas conversas, ou apenas eram cúmplices quando caminhávamos em silêncio. Não que tivéssemos qualquer tipo de constrangimento, mas porque com ela aprendi a ouvir o silêncio das manhãs, que pode dizer muito mais do que palavras proferidas de viva voz.
Senti uma espécie de culpa ao antever-lhe o sofrimento provocado pela minha partida. Sabia-a preocupada com o meu estado anímico, mas se há coisa que sempre lhe admirei, foi a capacidade de  lidar com as situações adversas, encontrando sempre um caminho alternativo ainda que a luz para a solução estivesse envolta numa neblina cerrada.
De facto, não era a primeira vez que partia. Estava já habituada a ver-me partir e voltar. Sempre serena, sempre meiga, sempre com o abraço que conforta e nos diz “estou aqui”. Extraordinária capacidade esta das mães, que apesar de feridas, continuam a dar-nos  o seu colo para nele nos prendermos à vida e nos estendem o regaço para nele enxugarmos as lágrimas da tristeza e da falsidade.
Passaram dois longos anos desde a última caminhada na praia.
Tenho saudades do mar, do vento, da brisa, do cheiro, da cor, da espuma das ondas,  das coisas simples, da paz.
Tenho saudades do abraço, do colo, do regaço.
Já se anuncia a manhã. Uma alvorada que me bate no peito, me acelera a respiração e me provoca um agradável nervoso miudinho, ao pensar que estou quase a chegar.
Sinto-me bem.
“Bom dia minha querida mãe! Sabia que estarias aqui… O mar está lindo ...”
Manuel