Foi uma tarde fantástica aquela
passada no quintal da avó. Saudades imensas daquelas conversas por baixo da
glicínia que perfumava todo o espaço. Ali tinha sido imensamente feliz na
infância e na adolescência. As férias e os fins de semana passados na casa da
avó Maria eram capítulos inesquecíveis da minha vida. Aprendi tantas coisas
sobre a vida, sobre os costumes, sobre a história da nossa família, umas vezes
fechada a sete chaves, outras vezes com pontas soltas que eu teimava em
alinhar… A avó era uma pessoa dócil, sábia, exigente e com um encanto especial.
Com a morte precoce do avô, foi ela que ficou no controle dos negócios. Como
admirava aquela figura de estatura baixa, olhos verdes a sobressair num rosto
emoldurado pelo cabelo grisalho, e um sorriso sempre afável. Era multifacetada,
a minha avó. Ora a comandar os negócios, ora dona de casa exemplar e dedicada,
fazendo tudo com a maior das perfeições, com o maior gosto. Nunca lhe ouvi uma
queixa. Gostava de ter a família reunida e frequentemente a mesa era posta para
quinze ou dezasseis pessoas, entre adultos e crianças. Com ela aprendi as artes
e os segredos da cozinha, as regras de etiqueta ao pôr a mesa, a forma de me
sentar e comportar em público. Aprendi a costurar, a fazer crochet e tricot,
enfim, todas aquelas coisas que uma menina na altura tinha forçosamente que
saber fazer.
Não me aborrecia. A disciplina
era rigorosa, com horários para as várias actividades, mas se sabia que durante
a manhã tinha que fazer determinada tarefa, também sabia que de tarde a
brincadeira chamava por mim no quintal. Normalmente lanchávamos na enorme mesa
de pedra por baixo da glicínia e aí prolongávamos o tempo até serem horas de
fazer o jantar. Todos os dias a avó tinha uma história diferente para nos
contar, a mim e aos primos, que eram os meus companheiros de férias.
- Hoje vou falar-vos sobre a
mudança dos tempos. Vocês sabem que nem sempre tudo foi como conhecem. Nem a forma de viver, nem as
condições, e muito menos a liberdade. Quando eu tinha a vossa idade, era tudo
muito fechado, as pessoas falavam pouco umas com as outras e as senhoras não
tinham certos direitos que entretanto conseguiram. Quando se falava em
casamento, muitas vezes era um problema grande, porque os nossos pais não nos
deixavam casar com quem queríamos, mas sim com quem eles escolhiam. Não foi o
meu caso. Casei com o vosso avô porque
foi a pessoa por quem me apaixonei e os meus pais respeitaram a minha vontade,
embora houvesse um certo distanciamento social. O facto de os casais serem
felizes era uma questão que não se colocava, nem o marido de sonho era suposto
ousar-se imaginar … Era assim e pronto!
Que confusão me fez sempre esta
história… e a avó continuava:
- Então, muitas senhoras,
infelizes mas em silêncio, tentavam ultrapassar esse facto, reunindo-se em chás
em casa umas das outras, para poderem falar entre si e encontrarem formas de
atenuar o sofrimento. Só que aos olhos da sociedade estas reuniões apenas eram
bem vistas se tivessem como motivo acções de caridade, que não têm nada a ver
com as acções de solidariedade que vocês conhecem hoje e nas quais participam
com os vossos pais. Antes era tudo muito restrito e basicamente todas estas
acções eram desenvolvidas em conjunto com o padre e as beatas da igreja, já que
não podia haver grupos isolados. Era uma afronta e uma vergonha. Existiam
basicamente três classes sociais: a dos ricos, a dos menos ricos e a dos
pobres. Os ricos eram os donos das terras, das grandes herdades, os médicos, os
advogados. Os menos ricos eram os professores e mais algumas pessoas que viviam
de negócios próprios, e os pobres, esses coitados, não tinham direito a nada, e
trabalhavam de sol a sol nos campos ou nas casas dos ricos, elas como
empregadas domésticas, amas, lavadeiras, cozinheiras, costureiras, e eles nos
mais variados serviços. Desta forma, existia um grande fosso a separar uns e
outros, e se uns era como se fossem os donos de tudo, os outros coitados, miseráveis, passavam fome
e viviam muitas vezes em situações degradantes. A escola não era para todos e
portanto também só os mais endinheirados estudavam, enquanto as crianças pobres
tinham que trabalhar e ajudar as famílias a sobreviver.
Confesso que estava boquiaberta.
Não conseguia imaginar … olhava em volta e aquilo que era a disciplina que a
avó nos impunha, se comparado com o que nos estava a contar, era perfeita
liberdade.
- Entretanto o pensamento das
pessoas foi-se alterando, foi-se ajustando a ideias que começaram a vir de
fora, e o descontentamento que existia, e que era muito, deu origem a movimentos
de revolta que fizeram com que o 25 de Abril acontecesse. Essa história já vos
contei há uns dias, quando fomos apanhar cravos para colocar nas jarras,
lembram-se? Até vos ensinei a cantar a Grândola Vila Morena …
A um aceno de cabeça de todos nós,
continuou:
- Desde então têm acontecido
muitas coisas e a vida transformou-se muito e com grande velocidade. Numas
coisas para melhor. Noutras para pior. Começou a existir muita ganância, muitos
interesses económicos, muita falta de respeito pelo planeta e todos acharam que
podiam tudo. Mas a liberdade não é isso. A liberdade é ser-se responsável e
respeitar os outros e o espaço individual de cada um. Só assim, sem atropelos,
a sociedade pode funcionar como deve ser. Por outro lado, os interesses económicos
para crescerem começaram a incentivar as pessoas a comprar de tudo e mais
alguma coisa, tanto o que precisam como o que não precisam, e em vez de as
pessoas serem vistas pelos seus valores pessoais, começaram a ser vistas e
educadas através dos valores materiais trazidos pelo consumo excessivo. Assim,
a sociedade que cresceu tão depressa, vai-se degradando, porque as pessoas
apenas se focam no que podem e querem ter, e não naquilo que são dentro delas,
percebem? Há acesso ao estudo para todos, mas o estudo é visto mais como uma
meta para atingir fins, do que para pensar, aprender e perceber qual o melhor
caminho. Existe a internet onde há acesso a tudo, mas se não existir a
capacidade para fazer um filtro, pode ser um caminho muito mau, embora moderno
e útil. Existe a televisão com variados canais e parece que de repente todas as
pessoas querem ser “famosas”. Não há qualidade nos programas, nem são
interessantes, porque contabilizam as audiências, que se traduzem em dinheiro,
sejam quais forem os “famosos” que por lá aparecem.
Existe ainda um outro perigo que
é o das drogas, de que já falámos também há tempos. Tudo o que de mau elas
podem trazer. Muitas das pessoas que querem o sucesso rápido e que parecem ter
uma energia inesgotável, consomem drogas para se manterem sempre activas e bem
dispostas. O que acontece é que não sabem que aos poucos se estão a matar, a
colocar em risco a saúde, a vida pessoal, familiar e profissional. Consomem
pelo impulso do momento, e chega uma altura que já não podem passar sem elas, e
o que vem a seguir é mau demais…
Ficámos calados por momentos, a
pensar em tudo o que a avó Maria tinha acabado de dizer. Ela sabia tantas
coisas… Éramos uns privilegiados por termos uma avó que falava estes assuntos
connosco e nos ensinava a pensar, a questionar e a descobrir caminhos. Por isso
gostávamos tanto de estar em casa dela. Os nossos pais, andavam naquele
frenesim profissional que a avó referiu, e de facto não tinham tempo nem
paciência para falarem connosco sobre estes assuntos da mesma forma simples que a avó falava.
Hoje, recordei cada recanto, cada
brincadeira e cada conversa. A avó está velhinha, mas continua com o mesmo ar
meigo, o sorriso generoso e a acariciar-me o cabelo como sempre fez. À sombra
da glicínia conversámos durante horas, por entre o bolo de mel que teimou em
fazer, por ser o meu preferido, e cujo segredo da receita só nós duas sabemos,
o arroz doce queimado que só ela sabe confeccionar, os mini pães com linguiça
que passaram a ser a minha especialidade, e umas canecas de café com leite como
antigamente bebíamos.
De repente, já no carro e de
regresso, dei por mim a pensar que as coisas simples, são as que mais aprecio.
Não é o meu gabinete de trabalho num
edifício chique que me faz brilhar os olhos, nem tão pouco o potente carro que
a empresa me colocou à disposição. Muito menos as roupas que sou forçada a usar
no meu papel de executiva. Estou cansada desse estatuto. Lembrei-me das
palavras da avó no dia em que nos falou sobre a mudança da sociedade e sobre os
bens materiais. Fez-me tanto sentido. Inverti a marcha.
“Avó! Voltei para trás, só para
lhe dar mais um abraço e um beijo e agradecer por tudo o que me ensinou,
principalmente, ter-me ensinado a pensar. Dentro de dias regresso para lhe dar
uma novidade. Entretanto peça por favor à Manuela para arrumar o meu quarto
para uma estadia mais prolongada. Não se preocupe com mais nada. Eu depois conto. Quero voltar à vida de verdade, simples e
autêntica!”
Mila e Avó Maria