quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Simplicidade


Foi uma tarde fantástica aquela passada no quintal da avó. Saudades imensas daquelas conversas por baixo da glicínia que perfumava todo o espaço. Ali tinha sido imensamente feliz na infância e na adolescência. As férias e os fins de semana passados na casa da avó Maria eram capítulos inesquecíveis da minha vida. Aprendi tantas coisas sobre a vida, sobre os costumes, sobre a história da nossa família, umas vezes fechada a sete chaves, outras vezes com pontas soltas que eu teimava em alinhar… A avó era uma pessoa dócil, sábia, exigente e com um encanto especial. Com a morte precoce do avô, foi ela que ficou no controle dos negócios. Como admirava aquela figura de estatura baixa, olhos verdes a sobressair num rosto emoldurado pelo cabelo grisalho, e um sorriso sempre afável. Era multifacetada, a minha avó. Ora a comandar os negócios, ora dona de casa exemplar e dedicada, fazendo tudo com a maior das perfeições, com o maior gosto. Nunca lhe ouvi uma queixa. Gostava de ter a família reunida e frequentemente a mesa era posta para quinze ou dezasseis pessoas, entre adultos e crianças. Com ela aprendi as artes e os segredos da cozinha, as regras de etiqueta ao pôr a mesa, a forma de me sentar e comportar em público. Aprendi a costurar, a fazer crochet e tricot, enfim, todas aquelas coisas que uma menina na altura tinha forçosamente que saber fazer.
Não me aborrecia. A disciplina era rigorosa, com horários para as várias actividades, mas se sabia que durante a manhã tinha que fazer determinada tarefa, também sabia que de tarde a brincadeira chamava por mim no quintal. Normalmente lanchávamos na enorme mesa de pedra por baixo da glicínia e aí prolongávamos o tempo até serem horas de fazer o jantar. Todos os dias a avó tinha uma história diferente para nos contar, a mim e aos primos, que eram os meus companheiros de férias.
- Hoje vou falar-vos sobre a mudança dos tempos. Vocês sabem que nem sempre tudo foi  como conhecem. Nem a forma de viver, nem as condições, e muito menos a liberdade. Quando eu tinha a vossa idade, era tudo muito fechado, as pessoas falavam pouco umas com as outras e as senhoras não tinham certos direitos que entretanto conseguiram. Quando se falava em casamento, muitas vezes era um problema grande, porque os nossos pais não nos deixavam casar com quem queríamos, mas sim com quem eles escolhiam. Não foi o meu caso.   Casei com o vosso avô porque foi a pessoa por quem me apaixonei e os meus pais respeitaram a minha vontade, embora houvesse um certo distanciamento social. O facto de os casais serem felizes era uma questão que não se colocava, nem o marido de sonho era suposto ousar-se imaginar …  Era assim e pronto!
Que confusão me fez sempre esta história… e a avó continuava:
- Então, muitas senhoras, infelizes mas em silêncio, tentavam ultrapassar esse facto, reunindo-se em chás em casa umas das outras, para poderem falar entre si e encontrarem formas de atenuar o sofrimento. Só que aos olhos da sociedade estas reuniões apenas eram bem vistas se tivessem como motivo acções de caridade, que não têm nada a ver com as acções de solidariedade que vocês conhecem hoje e nas quais participam com os vossos pais. Antes era tudo muito restrito e basicamente todas estas acções eram desenvolvidas em conjunto com o padre e as beatas da igreja, já que não podia haver grupos isolados. Era uma afronta e uma vergonha. Existiam basicamente três classes sociais: a dos ricos, a dos menos ricos e a dos pobres. Os ricos eram os donos das terras, das grandes herdades, os médicos, os advogados. Os menos ricos eram os professores e mais algumas pessoas que viviam de negócios próprios, e os pobres, esses coitados, não tinham direito a nada, e trabalhavam de sol a sol nos campos ou nas casas dos ricos, elas como empregadas domésticas, amas, lavadeiras, cozinheiras, costureiras, e eles nos mais variados serviços. Desta forma, existia um grande fosso a separar uns e outros, e se uns era como se fossem os donos de tudo,  os outros coitados, miseráveis, passavam fome e viviam muitas vezes em situações degradantes. A escola não era para todos e portanto também só os mais endinheirados estudavam, enquanto as crianças pobres tinham que trabalhar e ajudar as famílias a sobreviver.
Confesso que estava boquiaberta. Não conseguia imaginar … olhava em volta e aquilo que era a disciplina que a avó nos impunha, se comparado com o que nos estava a contar, era perfeita liberdade.
- Entretanto o pensamento das pessoas foi-se alterando, foi-se ajustando a ideias que começaram a vir de fora, e o descontentamento que existia, e que era muito, deu origem a movimentos de revolta que fizeram com que o 25 de Abril acontecesse. Essa história já vos contei há uns dias, quando fomos apanhar cravos para colocar nas jarras, lembram-se? Até vos ensinei a cantar a Grândola Vila Morena …
A um aceno de cabeça de todos nós, continuou:
- Desde então têm acontecido muitas coisas e a vida transformou-se muito e com grande velocidade. Numas coisas para melhor. Noutras para pior. Começou a existir muita ganância, muitos interesses económicos, muita falta de respeito pelo planeta e todos acharam que podiam tudo. Mas a liberdade não é isso. A liberdade é ser-se responsável e respeitar os outros e o espaço individual de cada um. Só assim, sem atropelos, a sociedade pode funcionar como deve ser. Por outro lado, os interesses económicos para crescerem começaram a incentivar as pessoas a comprar de tudo e mais alguma coisa, tanto o que precisam como o que não precisam, e em vez de as pessoas serem vistas pelos seus valores pessoais, começaram a ser vistas e educadas através dos valores materiais trazidos pelo consumo excessivo. Assim, a sociedade que cresceu tão depressa, vai-se degradando, porque as pessoas apenas se focam no que podem e querem ter, e não naquilo que são dentro delas, percebem? Há acesso ao estudo para todos, mas o estudo é visto mais como uma meta para atingir fins, do que para pensar, aprender e perceber qual o melhor caminho. Existe a internet onde há acesso a tudo, mas se não existir a capacidade para fazer um filtro, pode ser um caminho muito mau, embora moderno e útil. Existe a televisão com variados canais e parece que de repente todas as pessoas querem ser “famosas”. Não há qualidade nos programas, nem são interessantes, porque contabilizam as audiências, que se traduzem em dinheiro, sejam quais forem os “famosos” que por lá aparecem.
Existe ainda um outro perigo que é o das drogas, de que já falámos também há tempos. Tudo o que de mau elas podem trazer. Muitas das pessoas que querem o sucesso rápido e que parecem ter uma energia inesgotável, consomem drogas para se manterem sempre activas e bem dispostas. O que acontece é que não sabem que aos poucos se estão a matar, a colocar em risco a saúde, a vida pessoal, familiar e profissional. Consomem pelo impulso do momento, e chega uma altura que já não podem passar sem elas, e o que vem a seguir é mau demais…
Ficámos calados por momentos, a pensar em tudo o que a avó Maria tinha acabado de dizer. Ela sabia tantas coisas… Éramos uns privilegiados por termos uma avó que falava estes assuntos connosco e nos ensinava a pensar, a questionar e a descobrir caminhos. Por isso gostávamos tanto de estar em casa dela. Os nossos pais, andavam naquele frenesim profissional que a avó referiu, e de facto não tinham tempo nem paciência para falarem connosco sobre estes assuntos  da mesma forma simples que a avó falava.
Hoje, recordei cada recanto, cada brincadeira e cada conversa. A avó está velhinha, mas continua com o mesmo ar meigo, o sorriso generoso e a acariciar-me o cabelo como sempre fez. À sombra da glicínia conversámos durante horas, por entre o bolo de mel que teimou em fazer, por ser o meu preferido, e cujo segredo da receita só nós duas sabemos, o arroz doce queimado que só ela sabe confeccionar, os mini pães com linguiça que passaram a ser a minha especialidade, e umas canecas de café com leite como antigamente bebíamos. 
De repente, já no carro e de regresso, dei por mim a pensar que as coisas simples, são as que mais aprecio. Não é o meu gabinete  de trabalho num edifício chique que me faz brilhar os olhos, nem tão pouco o potente carro que a empresa me colocou à disposição. Muito menos as roupas que sou forçada a usar no meu papel de executiva. Estou cansada desse estatuto. Lembrei-me das palavras da avó no dia em que nos falou sobre a mudança da sociedade e sobre os bens materiais. Fez-me tanto sentido. Inverti a marcha.
“Avó! Voltei para trás, só para lhe dar mais um abraço e um beijo e agradecer por tudo o que me ensinou, principalmente, ter-me ensinado a pensar. Dentro de dias regresso para lhe dar uma novidade. Entretanto peça por favor à Manuela para arrumar o meu quarto para uma estadia mais prolongada. Não se preocupe com mais nada.  Eu depois conto.  Quero voltar à vida de verdade, simples e autêntica!”
Mila e Avó Maria

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Uma Ilha Dentro Da Ilha


O horizonte era infinito. O azul do mar parecia querer beijar o céu já meio alaranjado de final de dia. Apenas alguns navios de maior porte rasgavam essa linha que teimava em fundir-se. O mar estava estranhamente calmo, mais parecendo um espelho.
No cimo da falésia respirava a liberdade que as gaivotas em redor cantavam. Sentia tanta falta daquele mar, daquele pôr-do-sol, daquele silêncio de vida… Tinham sido cinco anos distantes e sombrios.
-Estás bem?
- Estou. Estou muito bem. Não se nota?
- Estás com uma expressão diferente e reparei numa lágrima a brilhar aí ao canto do olho …
- Lágrima de emoção. Daquele aperto no peito que este lugar me despertou. Uma lágrima boa. Estou bem, sim. Não te preocupes. Sabes, esta é a vitamina de que preciso. É revigorante, estar aqui. Se soubesses o que vai dentro de mim … Posso pedir uma coisa? Não quero melindrar-te, mas ficar aqui sozinha era tudo o que precisava… Não te importas?
- Claro que não! Tens a certeza que ficas bem? Não precisas de nada? Queres que te deixe uma água? Talvez uma peça de fruta…
- Não, João, obrigada. Eu fico bem e não preciso de nada. Só de estar comigo. Apareço ao jantar. Não te preocupes.
João era o irmão que nunca tinha tido. Amigo, protector, conselheiro, cúmplice, uma pessoa com um coração tamanho do mundo. Crescemos juntos, brincámos de quintal para quintal, andámos sempre na mesma turma até que a faculdade nos empurrou para sítios diferentes. Afastados na geografia, mas juntos como sempre, nos bons momentos e nos menos bons, a apoiar, a ajudar. O João é uma pessoa sensata, inteligente e perspicaz. Dono de uma calma imensa, analítica e certeira. Foi ele a primeira pessoa que me disse que a relação que tinha assumido com o Manel nunca iria dar certo. Teimosa e crente de que poderia mudar o mundo e as pessoas, não lhe dei ouvidos e segui a minha vida a meu belo prazer. Reconhecia uma certa ambiguidade e incongruência em alguns comportamentos do Manel, mas acreditei que seriam traumas de infância e que conseguiria dar a volta à situação e ajudá-lo a tornar-se outra pessoa. Afinal, tínhamos imensas coisas em comum, e a coisa não iria correr mal. Cedência daqui, afinação dali, é o que acontece com a maioria dos casais. Enganei-me redondamente. Entrei num caminho de nevoeiro, onde me perdia, tropeçava, caía, para depois me reerguer, cada vez com mais dificuldade.  Se de início não me faltava a força, o correr do tempo foi-me desgastando e continuar a percorrer o mesmo caminho tornou-se demasiado penoso. O João tinha razão. Nunca, durante todo o tempo em que vivi com o Manel deixei transparecer o mau estar. Apenas falava com o João ao telefone, tal como com as poucas pessoas que me restavam, família próxima e duas ou três amigas. Tinha perdido a alegria e a vontade. A distância e o desalento impediam que fizesse a viagem de regresso, ou talvez fosse apenas o pretexto que me dava, para não ter que simular, que enfrentar, que sentir as pessoas, o local e o cheiro dos anos idos… onde tinha sido feliz…
Respirei fundo, e mais fundo ainda, como se quisesse absorver toda aquela boa energia, e guardá-la no peito. Tinha tantas saudades da ilha … do verde, dos riachos, das cascatas, do mar que tudo envolve e devolve. Quando cheguei, resgatada pelo meu querido João, mais não era do que um farrapo. Tinha-me perdido de mim, tinha-me perdido da vida e de um caminho distante, outrora sonhado e planeado… A paixão tem o poder de cegar as pessoas…
Nada acontece por acaso, e quis o acaso que me cruzasse com a Mena, a mulher do João, numa farmácia perto de minha casa. Reconheci-a de imediato, mas fiquei incomodada. Queria abraçá-la e agarrá-la, qual tábua de salvação no meio da tempestade, mas ao mesmo tempo não queria que ela visse como eu estava. Sentia-me miseravelmente esfrangalhada. A Mena olhou para mim e de imediato abriu muito os olhos, o seu sorriso franco e largo e me estendeu o seu braço carinhoso e amigo. Comecei a chorar, numa torrente de lágrimas contidas durante nem sei quanto tempo. Lágrimas de dor, de revolta, mas de uma amizade imensa colocada naquele abraço.  Saímos da farmácia sem os medicamentos e a Mena levou-me para o hotel onde estava alojada, para podermos conversar com sossego. Estava há três dias em Sintra. Tinha vindo a um congresso e partia já no dia seguinte. Disse ter-me telefonado várias vezes, mas que o telefone dava sinal de desligado. Verdade. Tinha cortado relações com mundo há uma semana.  Disse também que como não sabia a minha morada actual, perguntou em dois ou três sítios se me conheciam. Foi o Sr.António do Café Central que lhe disse que eu morava para os lados da farmácia, e era lá que Mena ia perguntar por mim, quando nos deparámos. Que estava preocupada e que o João lhe tinha pedido por tudo para que me encontrasse e falasse comigo. Para ver como eu estava, pois pressentia coisa má.
Ainda que eu pretendesse esconder fosse o que fosse, as minhas lágrimas denunciaram-me, bem como as marcas roxas nos braços.  Falámos durante horas e a Mena apenas me disse: não posso adiar o regresso, porque tenho compromissos, mas tu não vais saír daqui. Vou pedir para que a reserva do quarto prossiga e eu ou o João voltaremos para te vir buscar dentro de poucos dias. Promete-me que não sais daqui. Vou pedir que te tragam as refeições ao quarto. Quanto às tuas coisas, pensaremos como fazer para as ires buscar. Se não queres denunciar o Manel pelos maus tratos, é contigo, mas percebe que a partir deste momento nada será como de antes , porque eu não vou deixar. Tu não mereces o sofrimento que tens tido, muito menos mereces continuar pelo medo. Não consigo sequer reconhecer a minha amiga Laura, aquela mulher forte, determinada, furacão, a arrastar tudo e  todos e a envolvê-los nas suas causas…  
É verdade. O medo tinha-se apoderado de mim. A mente doentia do Manel aterrorizava-me, paralizava-me e remetia-me para um estado da mais profunda resignação. Deixei de trabalhar, já que não tinha condições pricológicas para tal. Meti algumas baixas, mas quando o médico começou a perceber que eu não contava a verdade toda e foi mais directo e incisivo na abordagem, deixei de lá ir. Acabei por me despedir e comecei a fazer pequenos trabalhos em casa, quando estava sozinha, no meu canto, na minha paz. Foi assim que descobri a pintura. Nela escrevia com traços e cores, o que me ia na alma, e que só eu percebia. Toda a arte é passível de várias interpretações, pelo que o que eu via, outros podiam não ver.
O regresso foi complicado e doloroso. Acedi a tudo o que a Mena me disse. O João ligou-me para o hotel e tivemos a conversa que nunca tínhamos tido depois de ele me ter alertado quanto ao Manel. Passados dois dias em que basicamente dormi, descansei a cabeça, me alimentei como deve ser e consegui ter alguma calma, apesar da incerteza futura, chegou o João. Ficou assente que eu iria com ele para a ilha. Antes, e no menor tempo possível, tinha que organizar as minhas coisas e retirá-las de casa enquanto o Manel estava fora. Às quintas-feiras era dia de ir visitar clientes a Coimbra, e estaria mais tempo ausente. O problema é que com a minha ausência e silêncio, deveria andar louco e se calhar nem de casa saía… um problema para resolver… O João, frio, racional e previdente, foi rondar a casa, para ver se havia sinal de vida, ou se o carro estava estacionado à porta. Nada de carro. Nada de movimento. Depois ligou para a empresa a perguntar se seria possível o Dr.Manuel Correia recebê-lo, pois tinha vindo de fora e queria falar assuntos de negócios com ele. A secretária disse que o Dr. tinha saído para fora em serviço e que muito provavelmente só regressaria de noite. Estupendo. Era mesmo o que se pretendia. Enquanto apressadamente juntei o indispensável em casa, o João mantinha-se vigilante dentro do carro, não fosse haver alguma surpresa. Hora e meia depois, tinha tudo ensacado. Apenas faltavam as telas, os cavaletes e os materiais. Rapidamente carregámos o carro, com grande pormenor, nem ciência, pois o tempo corria e saír dali era preciso.
Antes de virar a esquina, com um aperto no peito, olhei para trás. Era um bocado de mim e da minha vida que ali ficara. Foram cinco longos anos de angústia, de desespero, de resignação e de medo. De novo, chorei. Muito. Solucei de raiva de mim do mais profundo do meu ser.
- Laurinha, sei como tudo isto é difícil e penoso. Acredita que nunca pensei que tivesses chegado a este ponto nas mãos de uma mente obcecada, maquiavélica e manipuladora. Agora acabou. Chora, sim. Chorar faz bem. Deita cá para fora todo esse mau estar.  Vais ter uma vida nova. Tens a tua família, tens-nos a nós e nada de mau irá acontecer-te.
O João tinha sempre a palavra amiga a reconfortante. Sabia que sim, que podia contar com ele para o que fosse preciso.  Passámos num shopping para comprar malas de viagem e acomodar as bagagens ensacadas,  caixas de cartão para proteger as telas e sacos para os materiais. Ainda tive tempo para passar no Banco e levantar a minha parte do dinheiro disponível na conta, bem como dar ordem de transferência da minha parte das aplicações para uma outra conta minha que tinha deixado de utilizar por imposição do Manel.
O avião era às dez horas da noite. A Mena tinha tratado das passagens enquanto nós andávamos atarefados com a organização da bagagem e o Banco.
Sentei-me do lado da janela. Lisboa era linda iluminada. Aquela luz cativou-me desde que lá coloquei os pés. A luz das lâmpadas de noite, a luz do sol de dia.  Era uma cidade radiosa, mas que para mim tinha perdido todo o encanto. O avião subiu mais ainda, e Lisboa era já um ponto distante, na geografia e no meu peito.
“Credo”, pensei para mim, “a Mena e o João já devem estar à minha espera para jantar. Perdi-me nos meus pensamentos e nem dei pelo tempo”.
- Olá, desculpem! Atrasei-me um bocadinho. Eu ponho a mesa. Vamos lá!
- Não faz mal, miúda! Sabemos o quanto gostas de estar na falésia e quanto isso te conforta. Estás à vontade, sabes disso.
- Sei. Sei disso e sei que vocês são os melhores amigos do mundo e que não tenho sequer palavras para vos agradecer. Estas duas semanas na vossa casa têm sido indescritíveis. Têm-me mimado tanto, que vou ficar mal habituada.  A propósito, decidi que amanhã vou comprar um telefone, e que vou ligar aos meus pais. Vou fazer-lhes uma surpresa. Vou visitá-los à quinta, mas apenas vou dizer que regressei. Quero poupá-los a tudo o resto.  Afinal já estou com melhor aspecto e pode ser que consiga disfarçar a coisa…
- Claro que não pareces a mesma, Laura! O ar da ilha tem-te feito bem. O sossego e a paz de espírito são alimento para a alma. Quanto ao telefone, sim senhor, bem vinda ao mundo! E já que estás a ressuscitar, tenho uma novidade para ti: a nova galeria da Câmara Municipal vai inaugurar no próximo mês. Como sabes, o Presidente é o Víctor que estudou connosco. Sabe que estás de regresso e que até tens uns quadros interessantes. Pediu para falar contigo.
Fiquei apreensiva. Iria ele pedir para que expusesse alguns dos meus trabalhos? Mas eram tão meus… tão bocados de vida passada … hummm… assunto a pensar. Preferiria muito mais expor telas positivas, com a energia da ilha, do mar, da vila, da quinta. Era de facto essa a força que me agarrava àquele chão. Era essa a minha metade, tanto tempo ausente, adormecida e esquecida… Eu própria era uma ilha, dentro da ilha.
Laura e Manel, Mena e João

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Mala Da Esperança


Saí do comboio com as pernas entorpecidas. Sem me aperceber adormeci mal sentado e acordei com as vozes e o barulho dos meus companheiros de viagem ao avistar a estação.
Duas malas carregavam lá dentro a esperança de uma vida melhor.
No exterior da estação olhei atordoado para um vai e vem de pessoas de semblante carregado e apressadas. Tirei do bolso do casaco o bilhete onde tinha apontado a morada da pensão, e apanhei um táxi. O motorista, nos seus sessenta anos, percebeu que eu não pertencia à cidade e perguntou-me: “ O senhor veio de onde? Vê-se bem que não conhece a cidade. A morada que me está a dar, fica já ao virar da esquina desta rua. Uns trezentos metros. Quer mesmo pagar para eu o deixar lá?”. Confesso que fiquei atrapalhado. Trezentos metros faziam-se bem a pé. O problema eram as malas. Não me apetecia nada carregá-las depois da maçada da viagem. Olhei-as. O motorista percebeu a minha pouca vontade e solícito “Deixe estar senhor. Deve estar cansado. Não tem problema. Eu conduzo-o e levo-lhe as malas sem qualquer custo. Afinal, temos que receber bem quem vem para a nossa cidade.” Agradeci-lhe e entrei no carro. Na bagageira, a esperança, acomodada. No curto trajecto contei-lhe ao que vinha, de onde vinha e quais as minhas expectativas. De sobrolho franzido olhou-me e disse “ Eu desejo que tudo lhe corra bem por aqui, mas aviso-o já de que este é um mundo muito diferente do seu. As pessoas são egoístas e querem vencer a todo o custo. Maltratam quem lhes faz sombra, e as oportunidades são só para alguns. Tenha sempre os olhos e os ouvidos bem abertos, senhor.” Pensei para mim, que não poderia ser assim tão mau… afinal as pessoas da aldeia que tinham partido, quando regressavam em férias mostravam uma vida diferente. Seria só fachada? Não valorizei e chegados à pensão, agradeci, paguei, retirei as malas do carro e parei no passeio, antes de entrar. Olhei em redor. A rua era estreita, mas acolhedora. Nas fachadas dos prédios de quatro andares e águas furtadas, dependuravam-se vasos de flores de cores diversas. A roupa pendurada nas janelas, em cordas sustidas por uma ripa de madeira, a formar um vê. Aqui e ali, cabeças assomavam-se, ao barulho de mais um carro.
Determinado entrei na pensão. Um homem de cabelo ralo e óculos grossos mirou-me e disse: “Boa tarde. Se procura quarto, estamos cheios”. Mau … eu tinha telefonado a pedir para reservarem um quarto. Expliquei a situação, e por entre rabiscos a lápis num caderno, lá estava o meu nome. “João Silva, é o senhor? “. Ufa, estava safo…
Instalei-me num pequeno quarto do primeiro andar. Cama, mesa de cabeceira, um pequeno armário para a roupa e uma casa de banho improvisada num recanto que deveria ter sido arrecadação. Nada do outro mundo, mas para já, dava para dormir,  organizar o meu tempo e a procura de trabalho.
Arrumei os pertences, guardei comigo a esperança e saí para dar uma volta e jantar. Percorri uns quantos quarteirões, e enquanto por ali deambulava no passeio de reconhecimento da zona, várias foram as percepções que tive. Depois de ter caminhado uns quatro quilómetros, entrei numa pequena tasca cujo cheiro da comida me chamou a atenção. Umas dez mesas, toalhas de xadrez azul e branco, pratos brancos , tudo muito asseado. Pedi o prato do dia e um copo de vinho tinto. Enquanto fui degustando demoradamente o cabrito com batatas, ia ouvindo conversas nas mesas laterais. Pessoas com bom ar, via-se que eram clientes habituais, tal o à vontade no relacionamento. Falavam sobre política, insegurança e tentáculos do poder. A conversa interessava-me e fui-me demorando mais e mais. O que ouvia era um mundo novo para mim. Um mundo que sabia existir, mas que era distante do meu até então. Ali havia de regressar muitas vezes, para perceber, para aprender, para conseguir interpretar realidades que começavam a despontar em mim um interesse crescente.
Ao fim de uma semana a procurar trabalho, contava já com inúmeras histórias curiosas, que um dia mais tarde haveria de resumir num caderno. Afinal, não era fácil encontrar o tão almejado e falado lugar ao sol. Ou seria questão minha, que me bloqueava certos trabalhos? Sempre tive tendência para as questões da sociedade e da humanidade. Não que fosse desprimor trabalhar como operário numa fábrica, ou atrás de um balcão de café. Nada disso. Se tivesse que ser, seria. De qualquer forma, aquilo que de facto me cativava era a relação com as pessoas num sentido mais lato. Os estudos que tinha limitavam-se ao ensino secundário, mas o muito que lia permitia-me ter uma absorção fácil da conjuntura e da sociedade.
Nas longas caminhadas que fazia pelas ruas e avenidas, reparava cada vez mais nas pessoas e naquilo que saltava à vista. Uma classe emergente, ávida e apressada, olhava com desprezo para o lado.  Funcionava tipo clubite fechada em si, mas ramificando o seu poder e influência a lugares chave. Do outro lado, os que viviam com cada vez maiores dificuldades quer em termos laborais, quer em termos económicos e sociais. Um mundo extremado pela ganância, pelo interesse e pelo desrespeito pelos mais fracos.
Certa noite, cedo ainda, ao chegar junto à pensão,  fui abordado por alguém que parava um carro junto a mim. Fiquei pouco à vontade. Uma história mal contada por um indivíduo com ar de quem tinha posses, mas com um olhar alucinado, que se fazia transportar num carro de boa cilindrada. Apesar da agitação e da forma como me olhava, pensei que devia ouvi-lo naquela versão titubeante de quem queria pedir dinheiro. Percebi-lhe a dependência da droga. Percebi-lhe o desespero da privação. Tentei encetar uma conversa sensata e didáctica, mas acabei por desistir e remeter-me ao meu mundo. O Sr. Carlos, dono da pensão, contou-me que se tratava de um indivíduo que tinha sido completamente apanhado pela cocaína. Ocupava um bom lugar numa empresa, era bem relacionado, mas a teia onde se movimentava tinha-o desgraçado.  Mais um… pensei. Tinha já noção da influência dessas teias. Por vezes era um assunto abordado nas pequenas tertúlias da tasca onde jantava, e onde tinha começado a sentir-me tão à vontade, que era já convidado a dar o meu modesto contributo de opinião.
Já no quarto, fui à janela e acendi um cigarro. Respirei o ar fresco da noite e reparei nas luzes. Engraçado, como durante aquela semana, fora a primeira vez que as luzes me prendiam a atenção. Candeeiros grandes em formato de lanterna, iluminavam a rua e o que se via mais além. Sim, era de luz que a humanidade precisava. Era luz que a sociedade tinha que absorver. Começava a desenhar-se um tempo estranho e cujo futuro se adivinhava difícil. No País, no mundo, a velocidade era estonteante, a superficialidade ganhava cada vez mais espaço, os interesses escavavam alicerces e túneis difíceis de desmontar e de grande perigosidade social e económica. Não podia valer tudo. Nada nas nossas vidas poderia estar na mão de meia dúzia de influentes. Foi uma noite angustiante, onde mergulhado nos pensamentos, mal consegui dormir. Tinha terminado uma semana onde tinha aprendido mais sobre a vida, do que nos vinte e cinco anos passados.
Hoje, a uma distância que me permite fazer uma análise crítica, estou grato aos meus pais, para quem a minha partida foi dolorosa, mas que veio confirmar o que eu queria da vida. Não fosse o cabrito na tasca do Sr.Manuel e nunca teria sido desafiado para fazer parte de um movimento de pensadores humanistas. Já não habito a pensão do Sr. Carlos, mas ainda guardo comigo toda a esperança contida nas malas.
João

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Vidas Adiadas



Sentados naquele pedaço de rocha, com os pés a roçar o mar de um verde imenso, e com o olhar preso no horizonte, percorríamos as nossas vidas.
Tínhamos assentado arraiais num parque de campismo não muito longe do mar e próximo de uma povoação que nos pudesse servir de base para as refeições.  Estávamos ali há quatro dias e tínhamos como rotina diária, levantar cedo e caminhar ora junto à orla marítima, ora pela serra que a poucos quilómetros, oferecia paisagens indescritíveis, por entre trilhos, cascatas, subidas e descidas, vegetação das mais variadas espécies, e um ar leve e perfeitamente respirável.
O dia anterior tinha sido cansativo pelos muitos quilómetros percorridos e resolvemos dar-nos uma ligeira folga. Almoçámos numa das tascas da aldeia e caminhámos em direcção à praia. Não havia muitos veraneantes e o areal estendia-se por entre os dois molhes de rochas, tão naturais e tão perfeitos, que parecia terem ali sido colocados de propósito a formar a pequena baía. Estava bonito o mar. Uma leve ondulação serena, de um verde intenso e cheiro profundo. Ali sim, o mar cheirava a verdadeiro.  Por entre salpicos, e com a maré a descer, escolhemos como plateia daquele horizonte sem fim, a rocha de um dos molhes. Por entre brincadeiras e conversas, o tema foi ficando mais sério, e a tarde acabou meio reflexiva, meio angustiada, ante a realidade de cada um de nós.
Conhecemo-nos na faculdade e anualmente programávamos entre uma semana e semana e meia para férias em conjunto. Se de início as preocupações não eram muitas, já que os tempos de lazer eram ainda custeados pelos nossos pais, ou complementados com uns trocos de trabalhos esporádicos que arranjávamos para o efeito, com o correr dos anos, as necessidades foram aumentando e a forma como encarávamos a vida começava a alterar-se. Tínhamos crescido numa classe média ascendente, onde o poder e o consumo foram igualmente ascendentes. A juventude afigurou-se-nos fácil, pois tudo tínhamos ao nosso alcance. A sociedade, ela própria, se encarregava de fomentar a competição, o consumismo, e quis convencer-nos de que a nossa geração seria pujante. Um perfeito engano. Por entre as curvas dos índices e dos raitings, concluímos as nossas licenciaturas e a nossa aspiração seria entrar no mercado de trabalho, nas nossas áreas de formação. Novo engano. A malha apertava. A dificuldade crescia.
Do nosso grupo de seis, dois eram engenheiros civis, três arquitectos e um licenciado em filosofia.  Passaram três anos desde que recebemos os nossos “canudos”. Por entre estágios, part-times, trabalhos precários e uma grande vontade, fomos, cada um à sua maneira, tentando construír uma vida, que cada vez mais, víamos adiada. Alguns permaneciam em casa dos pais, pois era manifestamente impossível sobreviverem sozinhos. Os que conseguiram o feito de arranjar o seu espaço, contavam os cêntimos e viviam uma vida de privações. Afinal, a ideia de plenitude que nos tinham “vendido” durante anos, era uma perfeita mentira. Aquela sociedade onde crescemos, não mais era do que uma fachada utópica de algo que era impossível prosseguir. Pior, a falta de valores humanos a ela associada, veio revelar a hipocrisia, a ruindade e tudo aquilo que de pior há na espécie humana. A ambição desmedida e a falta de lisura por parte daqueles que emergiram, teve consequências nefastas para a vida de grande parte da população.
Hoje, temos trinta anos e as nossas vidas continuam adiadas. Hoje, olhamos para o imenso horizonte verde que temos em frente, e sentados na rocha, pensativos e preocupados, perguntamos como vão ser, para onde vão caminhar e de que serão feitas a nossas vidas…
O pôr do sol começou a desenhar-se. A maré baixou de vez. O parque de campismo dista três quilómetros e a aldeia dois.  Já comíamos qualquer coisa…
Grupo de amigos