- Tão sossegada a olhar o
horizonte… em que pensas Kica querida?
“Em ti…”
- Em mim, como? Bem ou mal?
“Não posso pensar mal. Não tenho
razões para isso. Aliás, como poderia pensar algo menos bom de alguém que me
tem feito tão bem?...”
Manel, envolveu-lhe o pescoço e
os ombros com os seus braços e beijou-a
na testa. Olhou o luar, de um brilho intenso, e manteve-se assim. Kica
recostou-se num afago meigo e doce.
- Posso saber onde é que eu
andava então no teu pensamento?
“ Podes claro. Sabes, têm sido
tão bons estes dias nesta paz de vista maravilhosa, que já tenho saudades…”
- Acredita que para mim tem sido
uma bênção esta semana contigo. Por aqui ficaria mais uns tempos. Fazes-me tão
bem, minha querida, mesmo quando estamos em desacordo ou refilas…
“Ahahah, olha lá o meu mau feitio
… deves ser a primeira pessoa que me diz que a minha refilice lhe faz bem! Só
tu mesmo …
- Falo a sério. A forma simples
como colocas os assuntos, como equacionas a vida, tem-me feito pensar, e por
isso me sinto tão bem ao teu lado. Já falámos bastantes vezes sobre as nossas
diferenças de vida e de estar, mas no fundo, penso que toda a nossa relação se
resume àquilo que é a simplicidade e a autenticidade. Gosto do teu
despretensiosismo e da tua frontalidade, ainda que saibas que eu possa pensar
de outra forma. Não receias dizer o que te vai na alma, e aprecio isso. Não
gosto de pessoas que dizem sempre que sim, apenas para fazer jeito, mas que
ficam a remoer. Nem mesmo daquelas que de tão ocas que são, não conseguem ter uma opinião formada e
deixam-se ir embaladas conforme o vento sopra. Para mim és um desafio que nunca
tinha vivido. És uma luz que se acende quando o breu se instala e me desperta
para o caminho.
“ Bem, com tantos elogios, fico
sem jeito… Mas olha, eu sou assim, como vês. Não me vergo para fazer jeitos,
tão pouco me calo se acho que devo intervir. Prezo a sinceridade e a
honestidade acima de tudo e gosto das coisas simples da vida, como já
percebeste. Estar aqui contigo, longe da civilização, a percorrer caminhos que
nem imaginava, comer em tascas de pura
genuinidade, conversarmos horas a fio sentados no chão ou num muro qualquer,
tem sido tudo aquilo que eu gosto e que eu sou. Lido mal com frivolidades e aparências. Fujo
delas a sete pés. Gosto de passar sem que reparem em mim, por forma a poder
manter-me sempre quem sou em qualquer lugar e em qualquer ocasião. Podes até
pensar que serei um pouco bicho-do-mato, o que possivelmente terá a sua
pontinha de verdade, mas o certo é que ou estou bem, ou não estou. Cheguei
àquele patamar em que não faço nada que vá contra mim.”
- É isso Kica querida. É isso que
me encanta e fascina em ti. Seres tu. Como deves calcular, muitas pessoas têm
cruzado a minha vida, mas sempre com um objectivo. Cansei-me dessa vida, dessa
gente. Prefiro este recato, nosso, cúmplice, verdadeiro e simples, do que todos
os outros caminhos que tenho pisado. Sei bem que dentro de dias voltaremos aos
nossos mundos reais e que esta paz acabou. Mas enquanto a temos, e teremos mais
vezes, se a vida o permitir, desfrutemos sem angústias e sem sofrermos por
antecipação.
“ Não estou a sofrer por
antecipação, meu amor. Aliás, estou muito, muito bem, como podes ver. Estava
apenas a pensar que me fazes falta. Quando os rios e as pontes nos afastarem, o
vazio vai aparecer, embora atenuado por tão boas memórias que vão viver comigo.
Serão elas a dar-me alento para prosseguir os meus dias alucinadamente
preenchidos. Já sinto falta desta paisagem, deste ar, deste cantinho tão
maravilhosamente nosso. “
- Anda, vamos dar uma volta ao
luar. Vou lá dentro buscar agasalhos.
Um gentleman. Simpático, educado,
culto, divertido, temperamental e por vezes impaciente. Eis o homem por quem
Cristina (Kica para Manel) se tinha apaixonado. Um amor sem explicação uniu-os,
sabendo ambos de antemão quão difícil seria terem uma vida “normal” de casal.
Talvez tivesse sido esse o desafio para ambos. Sobreviver a um relacionamento
distante, gastos que estavam de relacionamentos moribundos e que nada lhes
acrescentavam. Tinham as vidas profissionais separadas por muitos quilómetros,
intensas e imprevisíveis, o que lhes dificultava a previsibilidade de momentos
a dois. Aproveitavam todas as alturas em que havia algum vazio nas suas
actividades para viverem dias só deles, longe de tudo e de todos, e onde só os
dois existiam.
A noite estava luminosa. Uma
aragem ligeira fazia lembrar que o Outono se aproximava. Caminharam por entre
os vinhedos, juntos, na alma, no coração, e na paixão. O silêncio da encosta
quase deixava ouvir a conversa das estrelas. Entre eles criaram histórias de
pessoas improváveis, tão improváveis quanto eles, e que mais tarde seriam transcritas. Entre o
beijo, o afago e a gargalhada, tiveram a certeza de si. Almas gémeas? Não … não
existem. Existe sim o gosto, a essência, a cumplicidade e um caminho de alma a
percorrer…
Kica e Manel