quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Alma


- Tão sossegada a olhar o horizonte… em que pensas Kica querida?
“Em ti…”
- Em mim, como? Bem ou mal?
“Não posso pensar mal. Não tenho razões para isso. Aliás, como poderia pensar algo menos bom de alguém que me tem feito tão bem?...”
Manel, envolveu-lhe o pescoço e os ombros com os seus braços e  beijou-a na testa. Olhou o luar, de um brilho intenso, e manteve-se assim. Kica recostou-se num afago meigo e doce.
- Posso saber onde é que eu andava então no teu pensamento?
“ Podes claro. Sabes, têm sido tão bons estes dias nesta paz de vista maravilhosa, que já tenho saudades…”
- Acredita que para mim tem sido uma bênção esta semana contigo. Por aqui ficaria mais uns tempos. Fazes-me tão bem, minha querida, mesmo quando estamos em desacordo ou refilas…
“Ahahah, olha lá o meu mau feitio … deves ser a primeira pessoa que me diz que a minha refilice lhe faz bem! Só tu mesmo …
- Falo a sério. A forma simples como colocas os assuntos, como equacionas a vida, tem-me feito pensar, e por isso me sinto tão bem ao teu lado. Já falámos bastantes vezes sobre as nossas diferenças de vida e de estar, mas no fundo, penso que toda a nossa relação se resume àquilo que é a simplicidade e a autenticidade. Gosto do teu despretensiosismo e da tua frontalidade, ainda que saibas que eu possa pensar de outra forma. Não receias dizer o que te vai na alma, e aprecio isso. Não gosto de pessoas que dizem sempre que sim, apenas para fazer jeito, mas que ficam a remoer. Nem mesmo daquelas que de tão ocas que são,  não conseguem ter uma opinião formada e deixam-se ir embaladas conforme o vento sopra. Para mim és um desafio que nunca tinha vivido. És uma luz que se acende quando o breu se instala e me desperta para o caminho.
“ Bem, com tantos elogios, fico sem jeito… Mas olha, eu sou assim, como vês. Não me vergo para fazer jeitos, tão pouco me calo se acho que devo intervir. Prezo a sinceridade e a honestidade acima de tudo e gosto das coisas simples da vida, como já percebeste. Estar aqui contigo, longe da civilização, a percorrer caminhos que nem imaginava,  comer em tascas de pura genuinidade, conversarmos horas a fio sentados no chão ou num muro qualquer, tem sido tudo aquilo que eu gosto e que eu sou.  Lido mal com frivolidades e aparências. Fujo delas a sete pés. Gosto de passar sem que reparem em mim, por forma a poder manter-me sempre quem sou em qualquer lugar e em qualquer ocasião. Podes até pensar que serei um pouco bicho-do-mato, o que possivelmente terá a sua pontinha de verdade, mas o certo é que ou estou bem, ou não estou. Cheguei àquele patamar em que não faço nada que vá contra mim.”
- É isso Kica querida. É isso que me encanta e fascina em ti. Seres tu. Como deves calcular, muitas pessoas têm cruzado a minha vida, mas sempre com um objectivo. Cansei-me dessa vida, dessa gente. Prefiro este recato, nosso, cúmplice, verdadeiro e simples, do que todos os outros caminhos que tenho pisado. Sei bem que dentro de dias voltaremos aos nossos mundos reais e que esta paz acabou. Mas enquanto a temos, e teremos mais vezes, se a vida o permitir, desfrutemos sem angústias e sem sofrermos por antecipação.
“ Não estou a sofrer por antecipação, meu amor. Aliás, estou muito, muito bem, como podes ver. Estava apenas a pensar que me fazes falta. Quando os rios e as pontes nos afastarem, o vazio vai aparecer, embora atenuado por tão boas memórias que vão viver comigo. Serão elas a dar-me alento para prosseguir os meus dias alucinadamente preenchidos. Já sinto falta desta paisagem, deste ar, deste cantinho tão maravilhosamente nosso. “
- Anda, vamos dar uma volta ao luar. Vou lá dentro buscar agasalhos.
Um gentleman. Simpático, educado, culto, divertido, temperamental e por vezes impaciente. Eis o homem por quem Cristina (Kica para Manel) se tinha apaixonado. Um amor sem explicação uniu-os, sabendo ambos de antemão quão difícil seria terem uma vida “normal” de casal. Talvez tivesse sido esse o desafio para ambos. Sobreviver a um relacionamento distante, gastos que estavam de relacionamentos moribundos e que nada lhes acrescentavam. Tinham as vidas profissionais separadas por muitos quilómetros, intensas e imprevisíveis, o que lhes dificultava a previsibilidade de momentos a dois. Aproveitavam todas as alturas em que havia algum vazio nas suas actividades para viverem dias só deles, longe de tudo e de todos, e onde só os dois existiam.
A noite estava luminosa. Uma aragem ligeira fazia lembrar que o Outono se aproximava. Caminharam por entre os vinhedos, juntos, na alma, no coração, e na paixão. O silêncio da encosta quase deixava ouvir a conversa das estrelas. Entre eles criaram histórias de pessoas improváveis, tão improváveis quanto eles,  e que mais tarde seriam transcritas. Entre o beijo, o afago e a gargalhada, tiveram a certeza de si. Almas gémeas? Não … não existem. Existe sim o gosto, a essência, a cumplicidade e um caminho de alma a percorrer…
Kica e Manel

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Imortal


A notícia chegou como uma bomba. Confesso que nos primeiros minutos não consegui articular uma única palavra. Tinha um nó enorme na garganta, a cabeça a latejar e um aperto no peito. Transpirava mas estava gelada e trémula.
- Que se passa Maria? Estás branca… Fala! Aconteceu alguma coisa? Estás de telefone na mão, hirta, como se fosses uma estátua… O que foi?
Não conseguia falar. Corri para o jardim e atirei-me para a piscina, ainda de pijama. Precisava sentir a água fria despertar-me daquele pesadelo e refrescar-me a cabeça ardente.
- Maria! Não estás bem! Fala, rapariga! Ana, Clara! Zé, Francisco, Rui! Cheguem aqui por favor! Passa-se algo grave. Não estou a perceber nada…
Depois de umas quantas braçadas e de mergulhar vezes sem conta, com todos em volta da piscina, cada um a gralhar para seu lado, saí e embrulhei-me na toalha que a Ana me estendia. “Maria, estás gelada. Toma, enxuga-te e vai mudar de roupa. Tem calma. Já percebi que se passa alguma coisa grave. Respira fundo. Queres que vá contigo lá dentro?” Não. Não queria ir lá dentro, nem queria mudar de roupa. Respirei fundo e sentei-me.
- Amigos, aconteceu algo terrível. Não estou a conseguir lidar com a situação, mas tenho que vos contar. É transversal a todos. Estamos todos no mesmo barco. É mau, muito mau …
As lágrimas começaram a caír numa torrente sem fim. A raiva, a revolta, o sentimento de injustiça apoderaram-se de mim.
- Então Maria… tem calma … Clara, trás um copo de chá frio com açúcar por favor.
Fui bebendo o chá e balbuciando palavras que ninguém entendia.
- Carro? Mas qual carro? Os carros estão todos à porta, excepto o do Paulo que deve ter passado a noite em casa da Lúcia de novo.
Ante o meu grito, fez-se silêncio … carro? Paulo? … “Aconteceu alguma coisa ao Paulo? Maria! Fala por favor!”
Com esforço e perfeitamente dessincronizada, lá consegui dizer que tinha recebido um telefonema da GNR a perguntar se conhecia um Paulo da Costa. Que esse Paulo tinha tido um acidente do qual resultou a morte imediata dele e da pessoa que seguia com ele, uma Lúcia Abreu. Que pediam que fosse ao hospital para fazer o reconhecimento dos corpos e avisasse os familiares.
Do silêncio geral, passou-se ao borburinho. Cada um a falar para seu lado. Que não, não era possível, como tinha sido, onde tinha sido, porque tinha sido, que o Paulo e a Lúcia não mereciam, que devia ser engano, Paulos da Costa pode haver muitos certamente …
- Gente, párem, por favor! É o nosso Paulo e a nossa Lúcia … Eu explico, mas calem-se um minuto. É mau demais e muito difícil para todos nós.
Era de facto muito doloroso. O nosso grupo de amigos vinha de há mais de dez anos. Todos os anos arrendávamos uma moradia grande nas férias e passávamos duas ou três semanas juntos. Éramos cúmplices, amigos, irmãos, e os namorados e namoradas que se iam juntando ao grupo, adquiriam o mesmo estatuto.  Era como se de repente nos sentíssemos amputados de uma parte de nós.
O Paulo despistou-se e foi embater numa árvore. Excesso de velocidade ao que o guarda me disse. De facto, sempre lhe conheci essa veia de adrenalina máxima ao conduzir. Gostava de velocidade e os carros que tinha, sempre potentes, desafiavam-no no asfalto. Muitas vezes lhe tínhamos chamado a atenção. Já não era nenhum garoto inconsciente e o prazer de voar pela estrada, tinha que ser refreado. Além disso, a sede de vida e o gosto com que desfrutava cada momento, por vezes tiravam-lhe o raciocínio lógico das situações. Vivia cada dia e cada momento como se fosse o último. Era um prazer imenso tê-lo como companhia. Nele não existia negativismo, e se a vida era para ser vivida, então que se cumprisse com o máximo prazer em cada momento. Amigo do seu amigo. Bem disposto. Jovial. Educação extrema e cultura apurada. Os olhos verdes rasgados faziam furor no sector feminino, que gostava de atiçar. Namoradas conheci-lhe muitas. Aliás, era-lhe difícil fixar-se numa por muito tempo, pois a forma como vivia, não era compatível com relações profundas e duradouras. Até que apareceu a Lúcia. Miúda pacata, que sabia gerir-lhe as emoções e os impulsos e por quem se apaixonou como nunca antes. Lúcia tinha casa própria não muito distante da nossa, e o Paulo por lá pernoitava sempre que ela conseguia conciliar três ou quatro dias de folga. Por isso não estranhávamos a sua ausência em casa de noite. Era uma relação já com mais de ano e meio, e apesar de Lúcia ser uma mulher para quem o valor da independência e da liberdade tinha um peso fundamental, o certo é que conseguiu através da sua noção de liberdade, gerir a liberdade do Paulo e torná-lo menos impulsivo e menos ávido de vida e de aventura. Gostava de os ver. Uma relação que todos testemunhámos, que de início nos pareceu estranha, mas que estava a dar frutos. “Contigo vou até ao fim do mundo”, dissera-lhe Paulo num dos nossos últimos jantares. Ironia do destino ….
O desespero era geral. Cabisbaixos, dirigimo-nos ao hospital, para aquele momento terrível da confirmação.
Regressados a casa, depois das formalidades, a única vontade que tínhamos era a de acabar com as férias. Não fosse a intervenção do Rui, e as malas eram feitas naquele momento.
- Meus queridos amigos, estamos todos muito tristes e com uma enorme sensação de vazio. Pode parecer a maior estupidez, neste momento, mas tenho vindo a pensar qual seria o desejo do Paulo no dia de hoje. De facto nos milhões de conversas que tivemos, a morte nunca foi tema. Estava muito longe dele, tal a paixão que tinha pela vida. Por isso, e se me colocar no pensamento dele, acredito que não quereria que estivéssemos tristes e derrotados como estamos. O Paulo está vivo nas nossas memórias, com a sua alegria, o seu charme, a sua bondade e a sua ponta de loucura sã, de que tanto gostamos e que tanto nos puxou para cima sempre que estivemos em momentos menos bons. Penso que a maior homenagem que poderemos fazer-lhe é celebrarmos a vida. A dele e a da Lúcia. Não haverá choros, não haverá coroas de flores a debitar um cheiro sinistro de funeral. Vamos organizar rapidamente um vídeo com os melhores momentos do Paulo e da Lúcia, vamos projectá-lo na quinta dele e será lá e desta forma que nos despediremos deles antes de os devolvermos à natureza. Estou certo de que ambas as famílias vão aceitar esta ideia. Afinal, somos um todo.
Anoiteceu. Sentada na varanda da casa da quinta do Paulo, olho para o rio, lá em baixo. Corre sereno. Um raio de lua ilumina-o. Sombras parecem dançar. Na minha cabeça ouço o Paulo cantar na sua voz sincopada e depois dar uma das suas gargalhadas “ passei ao largo de uma bela carreira de cantor” – tantas vezes assim foi …
As sombras continuam a dançar sob a luz do luar – há pessoas imortais!...

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A Luz Do Silêncio


O tempo era para mim um conceito abstracto e vazio, tal a ansiedade que carregava comigo. Tinha sido um ano extremamente difícil em termos pessoais e profissionais, trabalhando dias e noites a fio, mal dormindo e tomando refeições de raspão.
Sentia-me como se carregasse nos ombros a muralha de um qualquer castelo, e a cabeça começava a dar sinais de esgotamento, que tentava enganar com cafés e ben u rons. Foi naquele fim de tarde, que soou o alerta. Não conseguia pensar. Não conseguia sequer ouvir o mínimo barulho, nem conseguia interagir. Uma estrondosa dor de cabeça instalou-se e tudo me ecoava no interior do crânio, deixando-me numa aflição nunca vista. Confesso que pela primeira vez na minha vida entrei em pânico. De tão atordoado que estava só me apetecia gritar, ante a sensação de impotência que sentia face ao burnout instalado,  declarado e assumido. Telefonei para o Zé João, meu amigo e o único médico com quem podia conversar à vontade. Ele percebeu na minha voz que algo não estava bem e não demorou quinze minutos a chegar. Resultado: uma semana em casa, sem telefone e sem computador, a tentar fazer turn-off. Extremamente doloroso. O ritmo a que me tinha habituado, não era compatível com a paragem forçada. Meio sonolento em consequência de um ansiolítico que o Zé João insistiu que tomasse, não conseguia equacionar os dias “vazios” de actividade. Fazia uma espécie de carreiro entre a cama e o sofá, divergindo apenas para ir à cozinha preparar alguma coisa para comer. Certo é que, ao final do quarto dia começava a conviver melhor com a privação e até já me apetecia descer ao jardim, ver o sol e apanhar ar.
O Zé João chegou para a sua visita de acompanhamento diária e conduzi-o para o exterior. Recostámo-nos nas espreguiçadeiras junto à piscina, e notei-lhe um ar de satisfação. “Mas que bem! Estou a gostar de te ver fora de portas! Saberás dizer-me por acaso, há quantos meses não vinhas aqui?” – É verdade. Não sabia ao certo. A pressão do trabalho, as corridas, o facto de vir a casa apenas para dormir rapidamente e regressar ao ritmo frenético, tinham-me afastado deste espaço, que percebo agora, é de tão boa energia e bonito.
- Nem sei. Olha, hoje a seguir ao almoço olhei pela janela e deu-me vontade de descer até aqui. Observei as hortênsias, tão bonitas e frescas, andei descalço na relva e soube-me tão bem… senti-me um estranho na minha casa. Se não fossem os cuidados do senhor António a tratar o jardim, certamente estaria uma selva, se dependesse de mim. Sabes, sentei-me naquele canto por baixo do jacarandá, senti o cheiro das plantas e consegui alcançar alguma paz, que me fez pensar. De facto, tens razão quando me dizes que existe algo mais além do trabalho, além das quinhentas reuniões, dos mails e dos dossiers. Confesso que não me apercebi da passagem dos meses e de repente, há um ano que os meus dias são consecutivamente cheios, desregrados e cansativos, de tal forma, que acho que não vinha ao jardim há mais de oito meses.
A retórica do meu amigo médico já a sabia de cor. Desta vez comecei a dar-lhe razão, finalmente. Estava a perceber a solidão e a frieza de uma vida demasiado cheia, que me privava de coisas simples e prazenteiras que fazem parte da nossa existência. Tão simples como o estar sentado debaixo do jacarandá e olhar a relva e as plantas. Tão simples, como fazer um sumo e tomá-lo sob um raio de sol luminoso e reconfortante. Tão simples ainda como estar recostado na espreguiçadeira a falar com o Zé João sobre coisas banais. Acabámos por improvisar uma salada de camarão e jantámos, por escolha sua, no jardim. Apesar da leveza da refeição, consegui tirar dela um gosto que há muito tempo não sentia. Partilhar um momento com tranquilidade, conversar e colocar em causa o próprio caminho, é um excelente ponto de partida para um virar de página, que eu não queria ver, mas que era necessário. No último ano não dei sequer hipótese ao meus amigos de se aproximarem. Vivia num mundo por mim criado, onde qualquer sinal de invasão era de imediato obstaculizado, refugiando-me sempre no escritório.
“ Sabes que estou a gostar da forma como estás a falar hoje? Parece que houve um clique em ti Tó Pê! Diz-me que é mesmo lá de dentro que estás a falar! Da forma como te encontrei no escritório, custa acreditar que em tão poucos dias de afastamento conseguiste já fazer uma boa parte do caminho. “
- Olha, hoje tem sido um dia importante para mim. É o dia de aniversário da minha mãe. Lembrei-me disso quando cheguei ao jardim e vi as hortênsias. As suas plantas preferidas que cuidava com tanto carinho. Confesso-te que chorei. Chorei muito e, sentado no chão, deitei contas à vida. A uma vida que não lhe faria sentido. A minha mãe tinha uma forma muito própria de estar e viver. Procurava energia e luz nos mínimos detalhes. Se uma adversidade tentava derrubá-la, ela erguia-se sempre, com um sorriso luminoso e tentava abraçar o mundo e a vida, naquele seu jeito místico mas sincero. Tive tantas saudades dela hoje… da palavra, do olhar, do toque,  até da reprimenda. Senti vontade de fazer a mala e partir para os lugares por onde passeávamos. Tempos onde fui tão feliz…Ainda hoje não consigo aceitar o seu desaparecimento tão repentino … Foi no meio de todo este turbilhão que dei comigo a reflectir e a meditar sobre o presente e sobre o futuro. Não quero andar medicado. Sei que neste momento não havia alternativa, mas o trilho que estou a pensar, passa pelo tratamento da alma com aquilo que me pode ajudar, e não com comprimidos para dormir, para acordar , para aliviar ou seja lá o que for.
“Bem… parece-me que temos homem! Tó Pê, a medicação que te dei, foi de choque, mas não será para continuar eternamente, nem é isso que eu pretendo. Fico contente por saber que equacionas outro caminho e outra terapia que, tenho que concordar, é bem melhor do que qualquer pastilha química. Vais é fazer-me o favor de descansar mais dois ou três dias aqui em casa, no mesmo registo. Depois falamos e faço-te um programa de medicação mais ligeiro, para poderes ir abandonando conforme te disser. Nada de aventuras precoces. E sabes uma coisa? Se achas que te faz bem, porque não programas o tal passeio de que falaste? Desde que me vás dando notícias tuas, obviamente…”
Era tudo o que queria ouvir da boca do Zé João. Agora,  gostava de estar na minha casa. Sentia-me um privilegiado. Tinha-me ficado de herança após a morte da mãe. Filho único, filho de pais divorciados, tinha sempre tido uma relação muito cúmplice com a mãe, média burguesia e professora num colégio propriedade da família.
- Até hoje não tinha tido este sentimento de pertença a esta casa, nem da casa me pertencer. Sempre a vi como o forte onde aportava quando me perdia em naufrágios diversos, e onde me aguardava uma guerreira sempre pronta a ajudar e  não deixar afundar. Percebi que essa força é tão forte, que o que tenho a fazer é tão somente dar-lhe sequência o melhor que conseguir. É a alma desta casa que me empurra. É o silêncio deste jardim que hoje tem falado comigo.
“Os silêncios são um excelente aliado no nosso caminho interior. Os silêncios podem dizer-nos tudo, se os soubermos escutar”.
O resto da semana foi marcado por várias conversas com o Zé João. Ia-lhe dando conta do meu estado e do meu pensamento, mas também da minha enorme vontade de saír dali por uns dias.  Acedeu. Qual menino da escola, fez-me prometer que iria cumprir o tratamento à risca, e que ao mínimo sinal de ansiedade lhe telefonaria. Que não andaria sozinho em locais isolados, nem conduziria muitas horas. Resumindo, em conjunto elaborámos o programa quer do tratamento, quer do passeio. Ele ficaria mais descansado e eu, que lhe tenho uma estima e amizade enormes, não poderia deixá-lo preocupado e inseguro.
Rumei ao Douro. O meu rio de eleição, onde aprendi a apreciar paisagens e silêncios na companhia da minha mãe. Fiz os circuitos que nos eram  familiares, cruzei os mesmos caminhos, retive cada canto, cada momento e comecei a tomar notas numa espécie de diário. A cada dia que passava sentia-me mais liberto e mais leve. Após alguns dias por entre vinhas a serpentear o rio nas suas encostas, num caminho lento e sem nunca o perder de vista, iniciei a descida até ao Porto, que me aguardava esplendoroso, como era costume a minha mãe adjectivá-lo. Era de noite e as luzes conferiam uma magia única àquela cidade que a minha mãe tanto amara e me ensinara a amar. Estava cansado, mas após um duche reconfortante e uma francesinha no Café Santiago, fui caminhar pela baixa até à ribeira. Sentei-me no chão, no cais. Os barcos estavam amarrados a descansar do dia de navegação. Os cafés e restaurantes começavam a fechar. Os turistas retiravam-se. Por ali fui ficando. Recordei-me da noite em que a minha mãe me falou sobre uma das lendas do Porto, ali mesmo naquele lugar. Os dois sentados no cais. Sentia-me bem, tão bem, que apesar da hora tardia tinha que partilhar com o Zé João aquele momento. Enviei-lhe uma foto do rio onde o reflexo das muitas luzes, o tornava de uma rara beleza,  e uma mensagem que dizia “ Este silêncio de luz é o início de um novo tempo. Obrigado por teres permitido e ajudado  no reencontro dos eus. Abraço!”
Tó Pê

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Sempre Que Um Mundo São Dois


Tinha acabado de chegar a casa quando o telefone tocou. Estranhou a hora tardia, mas atendeu com o coração a aumentar o ritmo e um leve tremor na voz.
- Olá! Desculpa ligar-te a esta hora, mas sabia que não estarias deitada ainda. Estás bem?
“Olá boa noite. Estou bem sim. E tu como estás? Na realidade acabei de chegar a casa.”
- Calculei isso. Dei algum tempo desde que saíste e pensei que a esta hora já estarias sozinha. Estive a ver-te toda a noite com o teu grupo de amigos. Estavam bastante divertidos. Confesso que hesitei antes de te ligar, mas a verdade é que pensei que poderíamos falar um pouco pessoalmente. Sei que é tarde, mas amanhã vou embora ao final da manhã e não queria adiar esta conversa por muito mais tempo…
Maria nem sabia que pensar ou dizer. Estava ao rubro com aquele telefonema que em simultâneo a deixava ansiosa e nervosa, mas determinada e com uma imensa vontade de se encontrar com Miguel. Aos poucos foi perdendo o tremor na voz – afinal não podia vacilar nem dar a entender o quão importante Miguel era na sua vida. Com suores, mas a mostrar segurança “ Miguel, de facto a noite já vai alta, mas falar contigo é sempre um prazer redobrado. Tens a certeza que queres falar agora e não de manhã cedo antes de partires?”
- Maria, minha querida, se me deres o gosto de podermos encontrar-nos agora, é tudo o que quero para final de um dia cheio de emoções. Apanho-te onde?
Uma penteadela no cabelo, um leve retoque da maquiagem, três borrifos de perfume, um copo de água gelada e estava pronta.  Respirou fundo e com passo firme desceu as escadas. O jipe de Miguel já estava estacionado frente à porta. Um sorriso enorme vinha lá de dentro. Maria devolveu o sorriso e entrou. Parecia-lhe mentira o que estava a viver. Tanto o desejou, tanto o receou. “Boa noite Miguel! Chegaste rápido. Presumo que não tiveste dificuldade em encontrar a rua. Aqui é tudo pertinho e fácil.”
- Boa noite … foi fácil sim. Sabes, há muitos anos que venho para estes teus domínios e já vou controlando a coisa… Não vale a pena perguntar como estás, pois é visível. (gargalhada). Quero agradecer-te por estares aqui, apesar da hora tardia. Podíamos ter combinado de tarde, mas o facto é que não sabia bem a que horas iria despachar-me de todos os compromissos e não queria estar a assumir horários que não pudesse cumprir. Portanto, as minhas desculpas pela madrugada e pela privação de mais algum tempo de sono…
Miguel tinha um timbre de voz forte e meigo e uma boa energia contagiante. Para Maria o facto de serem duas da manhã estava perfeitamente ultrapassado. Teria todo o dia de domingo para recuperar as horas de sono.
O carro rolava lentamente na estrada. Miguel parecia dominar o caminho. A conversa fluía, entre assuntos mais sérios, brincadeiras, banalidades ou existencialismo. Bebia-lhe as palavras. Aquele homem era um poço de sabedoria. Despretensioso, falava com um à vontade, que era impossível não ficar presa naquelas conversas. Um fascínio antigo, agora tornado realidade.
Reconheceu o caminho que estavam a tomar ao saír da estrada principal.
- Não tenhas receio, Maria. Não te vou fazer mal. Quando chegarmos ao sítio, vais perceber porque o escolhi para falar contigo.
De facto, não se sentia receosa fosse do que fosse. Apesar de ser a primeira vez que estavam a sós, no meio do nada e de madrugada, Miguel inspirava-lhe extrema confiança. Uma admiração longínqua no tempo e no espaço, que lhe tinha permitido estudar os  traços de personalidade e perceber quem era a pessoa que a levava estrada fora a deshoras, depois de um dia de trabalho intenso.
- Chegámos. O carro não pode ir mais além, mas o luar permite que nos vejamos e que olhemos a encosta e o rio a correr ali em baixo. Sabes, este é um lugar de que gosto particularmente. Foi há muitos anos que aqui vim pela primeira vez, meramente por acaso.  Estava numa fase menos boa, a necessitar de pausa e vim refugiar-me para estes lados. Um dia, comecei a caminhar com os cães e vim aqui parar. Fiquei fascinado com a beleza da paisagem, agreste, pura, autêntica. É um local que tem muito significado para mim, pois aqui consegui descer à terra, fazer o trabalho de casa e recentrar-me.
O cheiro das estevas perfumava deliciosamente aquele pedaço de terra, onde a lua cheia incidia sobre o rio que corria tranquilamente. O silêncio enchia a alma de qualquer mortal sensível. Lindo. “Fantástico Miguel. Como é possível que alguém de tão longe descubra estes paraísos tão escondidos, que a maior parte das pessoas de cá nem sabe onde ficam?.... Fabuloso mesmo.”
Miguel sentou-se no chão. Ficou em silêncio algum tempo. Maria esforçou-se para não fazer barulho e não interromper aquele momento. Olhava-o com os olhos a brilhar e o coração a palpitar. Não que fosse uma estampa, mas era um homem interessante, com charme, com atitude, com postura, com luz.
- Desculpa Maria. Sentar-me no chão,  sentir a terra e respirar esta ar,  foi mais forte do que eu. Senta-te aqui também. Posso ir buscar qualquer coisa ao jipe, para não sujares a roupa.
“Não te preocupes com a roupa. A máquina lava.”
Sentados no chão, cúmplices com a terra, tendo as estevas, o rio e a lua por testemunhas, deram início a um capítulo fascinante  das suas vidas. Se foi naquele local que Miguel encontrou alguma paz em tempos idos, foi também naquele local que começou uma das mais bonitas histórias de amor, cumplicidade e partilha.
- Sabes que neste preciso momento estamos reduzidos à nossa essência? Não há estatutos, divisões, ou profissões. Somos apenas nós, com os nossos defeitos, as nossas virtudes, as nossas impaciências, as nossas complacências, os nossos medos, os nossos anseios, mas também a nossa força e a nossa vontade.  Somos o que há de mais verdadeiro. Estamos num patamar de igualdade. É esse o poder da terra, do chão que nos serve de âncora e nos prende. A química e a energia conjugam-se naquilo que há de mais simples, que não é nada além da circunstância de comungarmos de um mesmo espaço, de um mesmo propósito e de um mesmo querer.
Ouvia-o  tecer reflexões sobre a simplicidade, sobre o ser possível uma relação com base naquilo que é puro e desinteressado, sobre o artificialismo reinante na sociedade e nos relacionamentos. Tão verdade e tão bonito, não fossem os seus mundos completamente diferentes. Maria tinha perfeita consciência da insignificância do mundo onde vivia e do qual gostava, face ao mundo onde Miguel se movimentava, tão cheio de gente das mais variadas áreas, tão cheio de agenda, tão cheio de solicitações várias. Era uma diferença abissal, que sempre fez Maria recuar. Não que não soubesse ter a atitude e o comportamento adequados, mas simplesmente porque aquele não era o seu mundo, simples, com à vontade, sem espartilhos e sobretudo sem exposição. Gostava de passar anónima.
- Espera só dois minutos. Vou buscar uma coisa ao carro.
Uma garrafa de vinho branco gelado, dois copos e uns salgados. “Não reparei que tinhas a geladeira ligada no carro. Que bom! Vem mesmo a calhar!” – Por entre risos e duas ou três músicas cantadas a dois, brindaram a um futuro desconhecido, mas que queriam deles, independentemente dos mundos, das profissões e dos condicionalismos existentes. Estavam cientes de que o caminho não seria fácil, mas sim o possível. Miguel iria manter a sua vida itinerante, super-preenchida e exposta. Maria, iria continuar a permanecer low profile, discreta e a tentar estabelecer o equilíbrio entre dois mundos distintos, sem que dessem por ela. Era uma dualidade desafiante para ambos.
A manhã começava a dar os primeiros sinais. A brisa morna de um Junho quente passava-lhes pelo rosto, afagando-lhes a expressão de felicidade. Que noite bonita…
Ao saír do carro, após um longo beijo de até logo, Maria guardou o sorriso e a boa energia de Miguel. Seriam eles a força nos momentos de saudade nos dois mundos divididos…
Maria e Miguel