quinta-feira, 26 de março de 2020

Vertigem de Verão

Quase enlouqueci naquele Verão quente algarvio. Não com a loucura dita “normal”, nem com demências, mas uma loucura física e carnal. Não me transformei em lobisomem nem tão pouco me alterava em noites de lua cheia. A minha loucura tinha a ver com aquela que me servia de musa, me inspirava, me desgastava e me punha a cabeça completamente à roda.
Conheci-a na esplanada do café da praia, onde ao final de tarde costumava passar algum tempo entre leituras, tremoços e uma ou duas imperiais. Encontrando-se ocupadas todas as mesas, dirigiu-se a mim e perguntou se estava a aguardar alguém, ou se poderia ter a gentileza de permitir que ela se sentasse um pouco enquanto tomava algo fresco antes de descer ao areal.
- Estou absolutamente só. Claro que pode sentar-se. - Ajeitei uma cadeira, tirei as minhas coisas da mesa para fazer espaço, e fiz um gesto para que se sentasse.  - A tarde realmente está muito agradável aqui. Corre uma leve brisa que refresca o ar. Que deseja tomar?  - perguntei, fazendo jus ao meu carácter de cavalheiro.
- Não se incomode comigo. Eu já peço ao empregado. Pode continuar a ler tranquilo. Prometo não incomodar. Apenas queria sentar-me para refrescar um pouco.
- Ora essa. Não me incomoda nada, acrescentei, fechando o livro e colocando-o junto aos restantes pertences que ocupavam outra cadeira. Tinha um sorriso bonito e uma expressão de frontalidade. Estatura mediana, pele morena, olhos de um verde água que pareciam reflectir o vestido solto e vaporoso que usava. O rosto redondo emoldurado por caracóis largos a caír um pouco abaixo dos ombros. Tinha uma figura bonita. Tinha presença.
Pediu um sumo de melancia gelado com hortelã. Eu pedi mais uma imperial e salgados.
- Penso que não nos apresentámos. O meu nome é Vasco. Muito gosto.
- Ahah, é verdade. O meu nome é Sofia. O gosto é meu e eu é que agradeço a sua gentileza.
Tentei adivinhar-lhe a idade. A pele era jovem e fresca. Não havia sinal de uma ruga ou de um vinco na pele que não devesse lá estar. O cabelo não tinha pintura e era perfeitamente natural. Os olhos tinham o brilho de uma jovem adulta a descobrir a vida e o mundo. Talvez uns vinte e seis anos. Menos três ou quatro do que eu.
A conversa começou a fluír, primeiro sobre o tempo, o mar, o gosto pela praia, evoluindo para tempos livres, actividades, locais, enfim… uma conversa que começou a ser para “encher chouriços”, mas que se tornou numa agradável cavaqueira.
Já com o sol a baixar no horizonte, mas com o mar super tranquilo, descemos à praia e após caminharmos um pouco até encontrarmos um lugar com poucas pessoas onde tivessemos espaço em volta, abraçámos o mar num mergulho. 
Havia de ser o primeiro de muitos mergulhos e a primeira de muitas tardes e noites passadas naquele areal. Sofia era uma miúda simpática, culta e com quem dava gosto acompanhar. Estava sozinha de férias, a captar energias para um emprego onde tinha sido aceite e que iria iniciar no mês seguinte. Eu lá lhe contei um pouco da minha história, que também estava de férias sozinho, que o meu trabalho era de free lancer, e portanto não tinha horários nem compromissos temporais rígidos. Que a leitura era o meu refúgio, mas não dispensava uma boa música,  um bom filme e uma boa conversa.
- Vasco, sei de um bar com música ao vivo de excelente qualidade. Queres ir comigo? (Podemos tratar-nos por tu não podemos?)
- Podemos claro! Um bar com música ao vivo? Qual? Conheço quase todos.
Combinámos hora e local para nos encontrarmos. Caprichei no duche, no cabelo e na roupa. Estava nervoso. Aquela miúda tinha um magnetismo muito forte. Sentia-me atraído por ela. Uma atracção física mas não só. As conversas dela tinham sentido, tinham corpo. Via-se que não era uma daquelas raparigas ocas, superficiais e fúteis. Era inteligente. E para mim, inteligência aliada ao físico, desafiava-me. Imaginava-me envolto nos seus caracóis desalinhados. Agarrá-la, abraçá-la, senti-la.
À hora marcada lá estávamos os dois, perfumados, bronzeados, confortavelmente vestidos e prontos para agarrar a noite e o que ela tivesse para nos dar. A banda jazz era de facto muito boa. O som não estava demasiado alto e permitia que trocássemos palavras, cúmplices de pequenos gestos a denotarem o desejo crescente em cada um de nós. Agarrou-me na mão, pagámos na saída e fui literalmente arrastado por Sofia para o seu hotel.
Apressadamente tirou-me a roupa, desprendeu os botões do vestido e mergulhámos um no outro numa espécie de loucura. Sofia tinha uma sensualidade enorme, o toque da sua pele morena excitava-me e possuía-me os sentidos e o corpo.  Foi talvez a noite mais alucinante da minha vida. Sofia comandava a nossa entrega mútua. Do chão fizemos cama e da cama fizemos o nosso palco.
Nos dias seguintes apenas ia a casa para trocar de roupa, e até mesmo o tempo que estava sem Sofia junto a mim, parecia uma eternidade. Queria senti-la, cheirá-la, entrar nela e nela permanecer. Queria tê-la nua junto a mim. Ouvir os seus gemidos de prazer e os seus gritos de dor quando insistente continuava a devorar-me.
O tempo era nosso, e tanto podia sê-lo no quarto do hotel, como num qualquer canto escuro da praia, ou até mesmo no mar. O calor dos nossos corpos era capaz de incendiar.
Uma manhã ao acordar não senti Sofia na cama. Ter-se-ia levantado mais cedo? Com que propósito? Olhei em volta e pareceu-me que o quarto estava demasiado arrumado. Levantei-me e foi como se tivesse sentido uma vertigem daquelas que aparecem do nada  e permanecem, tirando-nos a luz dos olhos e as forças. Nada. Não havia nem um objecto, nem uma peça de roupa de Sofia. Um cima da mesa um bilhete “Vasco, és uma pessoa especial que guardo no meu coração. Os dias que passámos foram também eles especiais e jamais os esquecerei. O que me esqueci foi de te dizer que ontem tinha uma mensagem a avisar que deveria apresentar-me no trabalho amanhã às 9h e que o voo estava marcado para hoje às 10h. Quando adormeceste arrumei as coisas e saí. Não gosto de despedidas. Não irei esquecer-te e não te direi adeus, mas sim até já”.

quinta-feira, 19 de março de 2020

A Estrada e o Seu Sentido

Imaginei-me a escrever um guião, tipo diário,  que pudesse relatar o tempo sabático que decidi dar-me o direito após a conclusão da Faculdade. Tarefa inglória. A minha desorganização mental não me permitia momentos de pausa com tranquilidade para colocar por escrito tudo aquilo que experienciava e vivia. Ia fazendo rabiscos em folhas soltas que guardava numa capa cartonada, onde ia acumulando também alguns dos meus “troféus” de viagem. Talvez um dia mais tarde conseguisse organizá-los e dar-lhes uma sequência lógica.

De facto tinha terminado aqueles cinco anos completamente esgotado. Queria afastar-me do peso das sebentas, das matérias que os professores debitavam nas aulas, da pressão das frequências e dos exames. Cumpri o que havia prometido aos meus pais: fazer o curso de uma assentada, sem reprovações, sem cadeiras em atraso e com uma média que me permitisse entrar com um certo à vontade no mercado de trabalho. Era a forma que tinha de lhes agradecer e reconhecer todo o esforço financeiro que fizeram para que no seu entender, me tornasse um homem, formado, culto e habilitado para a vida. Não eram tempos fáceis e a minha família, classe média, quatro filhos, deparava-se com dificuldades acrescidas fruto da instabilidade governamental e orçamental do país.  Enquanto filho mais velho senti a responsabilidade de corresponder às expectativas, não prejudicando os meus irmãos mais novos, que seguiriam para a Faculdade com uma cadência de 3 anos cada.  No penúltimo ano arranjei um trabalho em part-time numa Fundação ligada à cultura e por lá permaneci até ao final do curso. Confesso que este trabalho teve em mim uma influência enorme. No que realmente gostava, no que gostaria de conhecer, e no abrir de horizontes. Sentia-me bem a desempenhar o meu trabalho e tinha a grande vantagem de conjugar conhecimento com um ordenado que não sendo chorudo, me permitia algumas poupanças para o tal tempo sabático que começava a delinear-se no horizonte.
Mal podia esperar pelo resultado dos dois últimos exames e telefonar para casa a informar que tinha concluído com sucesso a minha formação académica. Sentia-me cansado da rotina que eu próprio criara. Casa, Faculdade, Biblioteca, Fundação, Biblioteca, casa. Quase sem tempo para conviver com os colegas, ir ao cinema, a um bar, ou simplesmente sentar-me numa esplanada sem fazer nada. Sendo perfeccionista, levei ao extremo quer o meu dever de filho, quer o de aluno, ou o de funcionário.
Acordei com fortes batidas na porta do quarto. Ainda meio atordoado levantei-me e fui ver o que se passava. As pautas dos exames já estavam afixadas. Alguém tinha telefonado para casa a avisar e os meus companheiros de apartamento davam largas à alegria. Todos tínhamos, naquela manhã, escrito mais um capítulo das nossas vidas. Uma enorme sensação de alívio, uma felicidade imensa e uma vontade de gritar ao mundo! Escusado será dizer que passámos o resto do dia a festejar das mais variadas formas, com tudo a que tínhamos direito – almoço, bebida, praia, bares, miúdas. Os meus pais emocionaram-se tanto, que por entre as felicitações conseguia percebê-los lacrimejantes. Os meus irmãos apareceram de surpresa, vindos no expresso e juntaram-se à festa.
No final do dia seguinte arrumei duas malas no carro comprado num stand de usados, mas em estado muito razoável e rumei a casa, levando comigo os meus irmãos que mal se tinham acomodado para descansar umas horas no apartamento que dividia com os meus colegas. Foi tão bom este regresso a casa… o calor da família, do lar, o cheiro da vila, as cores dos campos, os monumentos que antes me eram indiferentes. Nos dias subsequentes, dei por mim com uma enorme vontade de viajar. A Faculdade já não me prendia, e podia pedir um tempo de licença na Fundação. Afinal, todo o conhecimento e contactos que fui adquirindo no trabalho despertaram-me para outras realidades, outras culturas e outros países. Nada me prendia. Nem namorada tinha no momento, e estava ainda a ressacar de uma desilusão amorosa que me tirou muitas noites de sono. As poupanças que tinha feito suportariam os meus gastos durante um bom tempo e se fosse necessário trabalharia pontualmente em troca de alojamento ou comida.
Ao volante do meu carro em segunda mão sentia-me livre. Precisava dessa liberdade para respirar, para tentar encontrar-me e para comigo falar. Era nessa liberdade que iria decidir o meu caminho futuro. Enquanto esperei pela emissão do passaporte, fui-me organizando e comprando o que considerei mais útil -  mapas de estradas de vários países da Europa, um caderno, uma geleira tamanho xxl, um fogão camping gaz, uma lanterna, uma tenda e um saco cama. Uff… já tinha a bagageira cheia. Sorte viajar sozinho e poder aproveitar o banco de trás ou rebatê-lo.
A manhã estava soalheira e a temperatura amena. Era um bom prenúncio para começar o meu périplo. Em três horas estava em Espanha. Sem horas marcadas e sem rumo definido, deixei-me levar ao sabor da estrada.
Indescritíveis os dias, as experiências, as pessoas, os lugares. Formas de vida tão díspares, culturas tão diversas e tão enraizadas. Cruzei países e cidades diferentes, trabalhei em restaurantes e cafés, visitei os locais mais incríveis e mais recônditos, deixei-me enebriar por luzes e néons, matei a solidão em bares, amei em várias línguas,  saltei refeições, mas apesar de algumas dificuldades,   a cada dia desafiava-me mais. Quando telefonava para casa para dar e saber notícias, os meus pais perguntavam se estava quase a regressar. Respondia sempre com evasivas. Que não sabia ainda. A verdade é que queria ir sempre mais longe numa espécie de fuga ou na ânsia da descoberta. Era como se a estrada não tivesse fim, como se não existissem fronteiras e levado pelo desafio, se me abrisse o privilégio de um novo caminho. Tinha já explorado toda a Europa ocidental e teimava em perceber o que se passava no leste. Com alguma dificuldade, mas com uma conversa que já fluía em mim e um à vontade evidente, lá fui conseguindo transpor várias fronteiras. Era de facto um mundo diferente. Mais fechado mas onde saltava aos olhos uma cultura extremamente enraizada e defendida por todos. Olhos desconfiados observavam os estrangeiros, analisando-lhes cada movimento. Se por um lado a minha liberdade de ser, de estar e de pensar estava bem presente em mim, por outro lado, senti-me em parte amputado dessa mesma liberdade ao vivenciar aquelas paragens. Não ficaria por lá senão o tempo suficiente para conhecer e perceber.
Tinham já passado oito meses. Como me sentia outra pessoa … A solidão faz-nos reflectir e crescer. As dificuldades fazem-nos relativizar tantas outras coisas e valorizar as que realmente o merecem. Conhecer outros povos dá-nos uma perspectiva global da nossa pequenez individual, e torna-nos mais solidários. Conviver com séculos de culturas diferentes abre-nos o caminho para o pensamento, para a tolerância e para valorizarmos a história e as estórias dos nossos antepassados e convivermos melhor com o presente, porque o conseguimos dissecar e em parte compreender, o que não significa, contudo, que o aceitemos passivamente.
Fosse na Polónia, na Hungria, em Itália, França ou Inglaterra, o denominador comum são as pessoas, enquanto fazedoras das sociedades e dos valores que as regem.
Determinado,  regressei outra pessoa, deixando por lá os fantasmas e as inseguranças do passado. As minhas indecisões esvaíram-se num  qualquer vento norte. Nos motéis ficaram noites de prazer fugaz depois de uns copos bebidos nos bares mais diversos onde a música oscilava entre o  rock e o pop, e onde à força do fumo dos cigarros ou dos charros, mal conseguia distinguir as feições daquela que nessa noite seria a minha deusa.

Hoje, ao entrar na Biblioteca da Fundação, não posso esconder um misto de alegria e de orgulho. Finalmente consegui colocar em livro e numa sequência lógica e com sentido, todo o conteúdo difuso e rabiscado nas folhas de papel que guardava na capa cartonada. A sala já estava composta. Familiares, amigos, colegas de trabalho e alguns rostos para mim desconhecidos. Ia começar a sessão de apresentação do meu primeiro livro “A Estrada e o Seu Sentido”

quinta-feira, 12 de março de 2020

Retrato de uma Paixão

Não fora a mudança de casa e  não teria sequer encontrado aquele pedaço da minha vida, de tão encafuado que estava nas pilhas de caixas em prateleiras que tinha no sótão. Ah… se este sótão falasse teria histórias imensas para contar, talvez até matéria para uma mini-série. Teimosamente fui guardando tudo o que achei que sempre me iria ligar à vida, naqueles quase cem metros quadrados que eram o fascínio do meu grupo de amigos. Era por assim dizer o nosso refúgio. Lá passávamos horas a fio, a conversar, a compor, a escrever, a tocar, a jogar, ou em clima de maior intimidade, a namorar. Muitos foram os que por lá passaram, e muitos lá deixaram recordações que fui apaixonadamente coleccionando e arrumando, até a vida se encarregar de me fazer passar uns tempos fora do país. Regressado, instalei-me na casa da aldeia, e apenas fugazmente visitava a minha casa de família. Estava fria e vazia de vida. Os móveis e todo o recheio permaneciam intocáveis desde o falecimento dos meus pais. Era doloroso regressar àquela casa onde cada recanto era para mim uma agradável recordação. Procrastinava as decisões a tomar em relação ao meu verdadeiro lar, mas sabia que o dia iria chegar. Precipitou-se quando tive que optar entre a casa da aldeia e a casa da cidade. Era impossível manter duas casas. Se por um lado a tranquilidade e qualidade de vida da aldeia faziam já parte de mim, por outro lado, equacionar a venda da casa que me viu nascer, era como se fosse amputado de uma parte do meu ser. Surgiu-me então uma oportunidade de negócio, não pela venda, mas pela reabilitação e arrendamento do imóvel. Pareceu-me interessante, embora toda a logística relativamente ao recheio fosse para mim uma tarefa do outro mundo. Deixei o sótão para o fim. O meu sótão, o meu canto.
Sentei-me no chão e abri a caixa coberta de pó. Discos de vinyl, emblemas, bases de copos dos vários bares que frequentávamos, revistas, recortes de jornais, fotografias, isqueiros, cassetes, até cordas de guitarras e baquetas de bateria. Lentamente fui pegando nos objectos e recordando os locais, os cheiros, os momentos, as pessoas… Detive-me numa fotografia e foi como se recuasse no tempo. A minha grande paixão estava ali, na palma da minha mão. Não foi a primeira, mas foi a que mais me marcou. A mais desafiante, poderosa e enigmática. A que me fez sentir tanto o mais desgraçado dos seres, como a pessoa mais desejada ao cimo da terra. Foi intensa a nossa história.
Via-a com alguma regularidade na Rua de Santa Catarina. Achei que residia por ali e um dia segui-a à distância. Entrou num prédio de esquina, três andares e águas furtadas. Moraria ali? Sorte a minha se conseguisse vê-la entrar ou sair mais vezes. Seria certo que ali morava. Durante um mês fiz o mesmo percurso em hora aproximada e nada… nem sinal dela. O certo é que o seu andar e o seu rosto não me deixavam sossegar. Como era um assunto meu que não queria partilhar com os amigos, comecei a pensar numa estratégia para descobrir quem era aquela sereia em terra e se naquele edifício de Santa Catarina seria a sua residência. Não me dando a conhecer, podia telefonar para todos os apartamentos daquele prédio e perguntar por ela. Com um pouco de sorte até seria ela a atender o telefone…  Decidido, depois de ensaiar o meu discurso de “tanga” para as informações, liguei e pedi à operadora se poderia fazer o especial favor de me facultar todos os números de telefone das residências do prédio 166 da Rua de Santa Catarina. Não foi fácil… Improvisei uma história sobre uma pessoa de família a necessitar de cuidados, e por fim lá a convenci. Yes! Eufórico pelo meu feito, comecei a ensaiar a abordagem telefónica. Não tinha a mínima noção de quem iria encontrar do outro lado da linha. Novos, velhos, homens, mulheres, ela...ou não … Nervoso mas com determinação lá comecei o meu périplo telefónico. Nenhuma chamada teve sucesso até que uma senhora com voz de 80 anos, muito possivelmente a viver sozinha, mas perfeitamente lúcida, após a minha interpelação e algumas trocas de palavras me perguntou directamente se procurava alguém em particular. Balbuciei algumas frases e ao perceber que ela não desistia abri o jogo: disse quem procurava, mas desconhecia o nome e se de facto residiria naquele prédio. Fiquei a saber que sim. Que habitava no terceiro andar há menos de um ano,  e que era uma rapariga muito educada e moderna. Daquelas que fumavam, ouviam música alta, fazia festas com os amigos em casa e por vezes chegava muito tarde. Tinha um carro que só tirava do estacionamento quando saía acompanhada. Uau… tanta informação… comecei a imaginá-la no tipo de vivência que a vizinha “cusca” me descrevia… curioso … agradeci à senhora as informações, e por exclusão de partes, seria o penúltimo número que tinha apontado. Como reagiria ela? Que iria dizer-lhe ao certo? Corria sérios riscos de ser gozado, desprezado, de fazer papel de parvo, mas já era impossível parar.     Voz rouca mas decidida interpelou-me do outro lado. Quem era eu, como tinha conseguido o número, o que queria dela, que sim, acedia a tomar um café, talvez ali mesmo no Magestic, ou se preferisse junto ao mar, na Foz… A minha cabeça ferveu, o meu peito saltava, o suor corria. Sim, tinha conseguido falar com a minha musa e ela tinha aceite tomar um café… Não estava nada mal… Encontrámo-nos no Magestic, pela proximidade. Seria a primeira de muitas vezes que por ali  passávamos ou permanecíamos a conversar sem nos darmos conta do tempo passar. Era alta, elegante e o seu corpo serpenteava na rua. Vi-a caminhar enquanto já sentado bebia uma água, e achei-a uma mulher fascinante, algo misteriosa, algo determinada, mas daquelas que nos enebriam os sentidos e nos toldam o raciocínio. Levantei-me para me dar a conhecer e a cumprimentar. Fitou-me com uns olhos verdes penetrantes, e de repente  senti-me completamente indefeso. Como se tivesse entrado  no meu corpo e no meu espírito. Consegui não perder a compostura e ajeitei a cadeira para que se sentasse. Apressadamente disse-me que afinal preferia tomar o café junto ao mar. Que iríamos no seu carro, estacionado ali próximo. O dia estava bonito, o sol brilhava num céu azul e o mar é sempre uma paisagem tranquilizante e inspiradora. Não poderia recusar. A minha curiosidade aumentava proporcionalmente ao meu fascínio. Que pedaço de mulher! Desenvolta, bonita, com presença, a saber conversar. Parecia-me um sonho. Com os vidros do carro abertos, o cabelo esvoaçava e não posso dizer que não me provocava um bocadinho de excitação. Fixava-lhe os gestos, bebia-lhe as palavras. Estava literalmente nas mãos dela. Foi um dia alucinante e determinante na minha vida. Daí em diante só conseguia pensar nela. Só queria estar com ela, mas os nossos encontros eram cadenciados. Dizia viajar muito, gostar de conhecer culturas, pessoas, lugares, e no relato das suas viagens conseguia transpor-me para essas paragens que também me fascinavam. Ia e vinha sem aviso prévio. É certo que não existiam telemóveis, e que estar a ligar de cabines era um risco, pois ou havia hora marcada para que um de nós estivesse em casa, ou nos desencontrávamos. Também era certo que a nossa relação apesar de intensa era descomprometida, sobretudo para ela. Amava tanto a liberdade, como eu a amava a ela. Era assim uma espécie de supremo. Não me atrevia sequer a questionar as suas decisões com medo de a perder. Ela era já parte de mim. Nada a fazer. Não posso dizer que estas deambulações e inconstâncias não me provocavam sofrimento. Sofria, calado, quieto no meu mundo, sozinho no meio das multidões na rua, nas discotecas, nos bares. Num desses dias, sem esperar dei de caras com ela a fitar-me com aquele olhar penetrante que me deixava perfeitamente perturbado. Que vontade de a agarrar,  fugir dali e entregar-mo-nos como se fossemos um só, numa paixão avassaladora, quase animalesca. Foi ela a dar o sinal. Tirou-me o copo, pousou-o no balcão, deu-me a mão e corremos até ao carro, que qual etapa de rally, rolava pela marginal, para parar justamente ao lado do nr 166 da Rua de Santa Catarina. Foi nessa madrugada que acreditámos verdadeiramente na nossa paixão e naquilo que nos unia, física, cultural e intelectualmente.  Esta mulher tinha-me transformado, tinha-me conquistado como nenhuma antes, e sim, era com ela que queria estar, para o que a vida nos reservasse.
- As caixas que estavam na sala já estão todas carregadas. Podemos começar a levar algumas daqui lá para baixo?
Credo. Estava de tal forma absorto nos pensamentos e nas recordações, que a viagem pela minha paixão fez com que me esquecesse que a empresa de mudanças estava a arrumar as caixas já embaladas, e os móveis que iria levar para a aldeia.

Coloquei a caixa no banco do pendura, e ajeitei a foto no tampo.  Seria a minha companhia nos sessenta minutos de caminho até à aldeia.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Dor do Passado

- Vou lá fora buscar lenha para colocar na lareira.  Queres que te arranje um chá ou alguma coisa para comer? Não jantaste nada de jeito.
Levantou os olhos do livro e olhou para Joana. “Não me apetece comer, mas se não te der muito trabalho aceito o chá. Desculpa ...” Desculpa era a palavra que com mais facilidade pronunciava nos últimos meses. Um sentimento que o deitava por terra tinha-o invadido há três anos ao sair do consultório do seu amigo Luís. Afinal, aquela teimosa alergia ou quiçá constipação, tinha contornos muito mais complicados do que tinha suposto. Não fora a inquestionável confiança que depositava em Luís, e a sua revolta teria emergido ali mesmo, sentado frente a uma mesa cheia de livros e de revistas médicas, que teve vontade de derrubar. Foi como se o mundo desabasse em cima de si. “Luís, tens a certeza do que me estás a dizer? Viste bem as análises? Não há nenhuma hipótese de os resultados estarem enganados? Não pode ser!!” Completamente desalinhado, esbracejava, gritava, transpirava. Joana tentava em vão acalmá-lo, também ela desfeita pela notícia, mas a manter algum sangue frio.
- Ouve Tó, sei quanto é difícil esta conversa, tanto para ti, como para mim. Não queria ser eu a dar-te esta notícia. És a última pessoa no mundo a quem eu queria falar sobre o resultado dos exames. Acredita. No entanto, enquanto médico e enquanto teu amigo, tenho a obrigação de nada te esconder, pois apenas a verdade sobre a tua doença e os tempos que aí vêm, poderá ajudar-te. Quero que saibas que estou contigo para o que necessitares e serei sempre a primeira pessoa a chegar perto de ti, mas tens que ter consciência que a vida para ti vai mudar, pois ficarás condicionado em alguns aspectos que falaremos depois.  Hoje apenas te peço que tentes manter a calma. Vou falar com dois colegas meus do hospital e amanhã passo em tua casa para conversarmos. Joana, sei que para ti também não é fácil e serás a pessoa mais próxima do Tó, mas também a que mais irá sofrer a vários níveis. Vocês têm uma relação linda e forte, e têm que se agarrar a ela com todas as vossas forças para irem superando as sucessivas etapas.  Sabes que estou convosco, contigo, sempre que necessites. Amanhã depois de conversar com o Tó, na tua presença, quero falar contigo a sós para te dar algumas orientações. Agora vão para casa e tentem descansar. Vamos arranjar a melhor forma para tratar a situação.
Tó não se conformava. Culpava-se pela irresponsabilidade de numa fase de “desencontro” emocional consigo próprio ter ido pelo caminho mais fácil, não se questionando, não se pondo sequer em causa, e não procurando ajuda. Aliás, acabada a Faculdade e tendo saído de casa dos pais após ter encontrado o seu primeiro emprego, deslumbrou-se com a “magia” de uma certa liberdade que não soube usar nem aproveitar, e que lhe granjeou dissabores. Trocou de emprego meses a fio, ora por atrasos sucessivos, ora por inadaptação, ora por rebeldia. Trocou de casa vezes sem conta, tendo sido “acolhido” por um antigo colega de Faculdade que o encontrou sentado numa praça e que nem queria acreditar que aquele Tó emagrecido, de olhar ausente e de poucas palavras, era o mesmo Tó simpático, sorridente, prestável, que com ele tinha estudado.
Foi muito difícil largar as drogas. Era a seringa que lhe apaziguava a ansiedade. Era a agulha a entrar pela veia que lhe dava o prazer de “viver” alucinadamente “feliz”.
João Carlos teve na recuperação de Tó um papel preponderante. Acolheu-o, ouviu-o, ajudou-o a refazer uma vida quase em retalhos. Com a ajuda de Luís, jovem médico com quem dividia o mesmo apartamento, conseguiu ajuda psicológica e tratamento para Tó. Em seguida, trabalho, não na sua área de formação, mas como voluntário numa associação. Foi um caminho penoso. Ante o medo do retrocesso e do fracasso, João Carlos e Luís auto-proclamaram-se uma espécie de tutores de Tó, e este deixava que eles lhe conduzissem o destino. Conseguia já discernir com alguma clareza o caminho “escuro” por onde andou perdido, e mostrava sinais de arrependimento e força de vontade para mudar. Um dia telefonou aos pais (não que estes não estivessem a par do que se passava, já que Luís os visitou e fez questão de os informar de toda a situação). Combinaram almoçar, mas não em casa. Tó não se sentia ainda digno de entrar na casa de família. O almoço havia de acontecer num pequeno restaurante próximo do jardim onde brincou em pequeno. Tinha necessidade de se “revisitar”, de fazer as pazes com um passado que o acarinhou mas que quase renegou. 

- Está aqui o chá. Queres que adoce? Trouxe-te um biscoito daqueles que a vizinha Ana nos deu. Vá lá, come…
Joana pousava a cesta da lenha no chão. A sensualidade dos seus movimentos desorientavam-no. Tinha vontade de a agarrar, de a sufocar com beijos, de fazer amor sofregamente, como tantas vezes se entregaram. Foram felizes. Muito felizes. Por vezes pensava o quão injusta era aquela situação para Joana. Não para ele, pois sentia-se irremediavelmente culpado pelo seu passado de drogas, de seringas trocadas,  da inevitabilidade da Sida, que o conduziram ao débil estado em que se encontrava. Amava-a cada vez mais. Os cuidados que tinha com ele, os sacrifícios para o assistir na doença, com todos os riscos inerentes, o distanciamento físico forçado. Joana era uma mulher, bela, sensual, e certamente teria sonhado com uma vida diferente aos quarenta anos. Por isso não se cansava de lhe pedir desculpa.
O lume voltou a crepitar. Joana aconchegou-lhe a manta e passou-lhe a mão pela testa, alinhando a madeixa de cabelo que pendia. “Amo-te meu anjo. Não mereces nada disto. Desculpa, desculpa...”
Joana sabia que Tó ia começar a ficar agitado. Era sempre assim.
- Respira fundo meu amor. Vou buscar o teu comprimido. Tem calma.
Tó transpirava, a respiração acelerou, parecia perder os sentidos. Estes episódios repetiam-se com mais frequência nos últimos dias. Luís tinha falado com Joana sobre o quadro clínico actual. Não havia muito mais a fazer. O organismo é que mandava. Não os paliativos.

Pareceu-lhe que Tó sorria, aquele sorriso franco, bonito, que a cativou no primeiro encontro. A cadência respiratória foi baixando. Ligou a Luís a pedir que viesse. Deu a mão a Tó, e assim se despediram.