Como me soube bem aquela tarde de Outono… Há imenso tempo que tinha programado a visita, mas as impossibilidades de agenda iam adiando uma conversa já de si atrasada. A nossa amizade é pura como só as amizades de infância o sabem ser. Crescemos a brincar na rua, a jogar ao berlinde, a andar de bicicleta, mais tarde descobrimos o gosto em comum pelas artes, pelas diversas culturas, pelas viagens sem destino marcado, até que as nossas vidas profissionais nos separaram geograficamente e embora perto no coração, a distância física era significativa.
Depois de muito combinarmos e
descombinarmos, chegou enfim o dia em que pudemos tagarelar sem fim, rir,
chorar, mas acima de tudo celebrar o facto de estarmos vivas e de saúde.
A Mané escolheu um local lindo
para tomarmos um chá acompanhado de uns biscoitos caseiros, que faziam a
delícia de qualquer mortal. Uma imensa janela abria-se sobre o jardim em
degraus, deixando entrar o sol que nos aquecia a alma e a conversa. Achei-a
abatida, pálida, com algumas rugas a querer espreitar naquele rosto de pele
clara. Os olhos tinham o brilho de sempre e a mesma expressão sincera. A
gargalhada não tão solta, continuava a ser contagiante. De facto os anos iam
passando por nós e nós pela vida, e era inevitável que as marcas não fossem
visíveis.
- Estou tão feliz, amiga! Que saudades
imensas de estar contigo, de partilhar conversas, da nossa cumplicidade… Sabes
que falarmos ao telefone ou por mensagem não é a mesma coisa. Gosto das tuas
interpelações e de quando me abanas nos assuntos. Tem sido tão difícil superar
esta fase da minha vida…
- Mané, sabes que comigo não há
evasivas. Que a confiança que temos uma na outra não é de ontem e que sempre
estive aqui para te ouvir. De facto, não é de todo a mesma coisa. Gosto de
falar contigo e percebes que te leio os traços, as expressões, os silêncios e
os altos mais nervosos. Sei-te de cor, como canta o Paulo Gonzo. Por isso
estava tão preocupada contigo e com os sucessivos adiamentos do nosso encontro.
Mas pronto, chegou o dia e estou muito contente, apesar de preocupada.
De facto a Mané, estava a passar
um mau bocado. Era uma pessoa com um êxito profissional incrível, fruto de
muito trabalho, mas tinha-se envolvido sentimentalmente com a pessoa errada.
Alguém com uma dualidade doentia, que prosseguia vários caminhos em simultâneo,
acabando por perder-se nos seus próprios labirintos e usando a arrogância e a
prepotência como arma de defesa, para se escudar das mil inseguranças que
tinha. Kevin era um escritor já com algum reconhecimento, bem falante e
charmoso. Aparentemente resolvido, parecia emanar um super à vontade acerca da
vida e de si mesmo. Vivia com
descontracção, embora com muitas regras que se auto impunha, e que a Mané por
vezes não conseguia compreender, por mais que se esforçasse. Os anos foram
correndo, ela na sua vida extremamente ocupada, ele uma pessoa bastante requisitada socialmente. Tentavam
conjugar agendas e momentos com cedências quase sempre da Mané, já que Kevin de
tão obcecado consigo próprio era praticamente inflexível.
- Mas como conseguiste viver
estes anos todos nessa espécie de farça, amiga? Medo de estares sozinha? Falta
de amigos por perto? Mané, tudo o que me tens estado a contar é mau demais…
- Eu sei minha querida Luísa. A
situação só a mim dizia respeito. Aliás, a mim e ao Kevin, mas no momento que percebi
que não era aquele o Kevin que transparecia para o lado de fora, já me tinha
deixado enredar na teia de manipulação que tão bem sabe tecer com todos os que
lhe chegam perto e que de alguma forma lhe despertam algum tipo de interesse,
não enquanto pessoas, mas enquanto veículos para atingir determinados objectivos.
Burra que fui ao pensar que aquele pedaço de homem falava com sinceridade e que
era aquela boa alma que parecia ser.
- O que interessa é que
conseguiste colocar um ponto final na história, machucada, claro está, mas
estás inteira, continuas a ser aquela mulheraça gira, culta e amiga, e aqui
estamos para o que der e vier. Não queria estar na tua pele nem por um
bocadinho (apesar de o Kevin ser assim arraçado de George Clooney, mas tu da
Amal teres apenas parecenças no cabelo…). Pelo que me contas, ele tanto quis
enfatizar a sua pessoa, que se perdeu dele próprio e perdeu também o pé daquilo
que era a sua base de sustentação, ou seja, dos seus leitores e seguidores.
Isso é muito mau… Eu fui percebendo pelas publicações que ele fazia que
existiam imensas incongruências entre o que ele dizia e o que praticava. Era
assim tipo, faz o que eu digo, mas não faças o que eu faço, porque esse patamar
só a mim está reservado. Percebi que o umbigo dele ficou enorme e confesso-te
que houve uma altura em que o bloqueei nas redes, porque imaginava o teu sofrimento e não
conseguia sequer lê-lo. Uma caixinha de surpresas o menino escritor …
- Foi mau Luísa. Muito mau.
Quando percebi que ele estava a caminhar por uma rampa perigosa, de tão
escorregadia, tentei fazer-lhe ver que existe algo mais além do umbigo, e que o
tombo era apenas uma questão de tempo. Correu tão mal, que jurei a mim própria
não voltar ao assunto e guardar para mim o prenúncio de uma realidade que
estava à vista. Daí para cá, é o que sabes. Solidão, cada vez mais perdido de
si no seu casulo de arrogância, e não sei como a vida do Kevin seguirá. Mas
olha, também já nem estou muito preocupada com isso. Guardo na memória bons
momentos, tenho a plena consciência de que tudo fiz para o ajudar a reencontrar
o trilho, e é isto … Se ele um dia tirar as palas dos olhos, e deixar o
deslumbramento de lado, talvez já seja tarde demais. Aliás, eu penso que neste
momento já é tarde…. Ele saberá, ou não …
- Miúda, és uma mulher de fibra!
Torce mas não quebra! Tenho tanto orgulho em ti … Que bom ter-te de volta. Já
pensaste nos programas que vamos ter que fazer durante esta tua estadia por cá?
Sabes que podes sempre contar comigo!
- Sei querida Lu, só a ti posso
contar estas coisas. Ninguém mais me compreenderia, e aliás, não falaria destes
assuntos com mais ninguém. Tardou, mas cheguei! Será que podemos brindar com
chá?
- Porque não? Brinde a nós, à amizade e à vida, que apesar de nos pregar partidas desagradáveis, merece ser vivida! Olha lá para fora amiga! Estás a ver os raios de sol a incidir na janela? É sinal de que há sempre uma nova luz, uma nova oportunidade e um novo dia! Alcança a tua paz interior e vais ver que é tudo menos cinzento na tua cabeça. O Kevin… que faça o trabalho de casa se quiser, e pode ser que ainda reencontre também alguma luz…
Sem comentários:
Enviar um comentário