sábado, 19 de agosto de 2023

Talvez a Voz do Anjo …

Parou em frente à porta, indeciso. Do lado de cá uma vida que o olha de soslaio. Do outro lado, o ângulo recto que indica o  lado certo. Tinha-se-lhe entranhado nos poros aquela crença de não pertença, de contestação perpétua, de enfant terrible.

Uma vida em carrossel, a fugir do establishment, mas que o mantinha no mesmo lugar sempre que acabava a corrida.

Colocou a mão na maçaneta, deteve-se, retirou-a. Afinal, se a rodasse, se a porta se abrisse, teria que mandar parar o carrossel e saltar para o caminho que o ângulo recto formara do outro lado.  Impossível.

Se ao menos uma voz lhe desse um sinal … se lhe aparecesse uma espécie de anjo que  varresse os demónios que com ele permaneciam… se houvesse uma mão que conseguisse sustê-lo e fazê-lo acreditar que do outro lado da porta a vida é mais fácil e os dias mais luminosos …

Ferviam-lhe os pensamentos. Não podia nem queria fraquejar. Qual mar revolto, ondas de vai e vem, mergulhava e vinha à tona, enrolado nas correntes que criava com o seu próprio corpo, rebolava na areia e rapidamente retornava à água fria para de novo a desafiar.

A olhar para a porta, trémulo e transpirado, com a cabeça a latejar, recuou no tempo. Ah, como gostaria de o ter feito parar e ter tido disponibilidade para perceber muitos dos porquês. Nunca quis. Não quis ouvir, não quis pensar, não quis falar. Vivia uma realidade só sua. Paralela. Onde não havia espaço para assuntos sérios nem para a reflexão. Apenas o fácil. Apenas o que lhe interessava em cada momento. Lembra-se que tudo podia ter sido diferente. Ah, se tivesse dado ouvidos às várias vozes de anjo, que dizia, o atormentavam … que não lhe davam sossego … afinal, nas vozes existiam luzes. Luzes que teimavam em mostrar-lhe o caminho certo. Preferiu não ouvir. Não ver. O breu.

Sentia os pés pregados no chão. Imóveis. Reparou que estava estático num grande quadrado de mármore cinzento. As arestas eram perfeitas. As juntas que o ligavam aos outros quadrados, embora desgastadas, harmonizavam o chão. Não sabia se seria das solas dos sapatos ou de um bocado de mau polimento no mármore, pareceu-lhe que não conseguia deslizar daquele preciso bocado de chão, para outro mais brilhante e mais polido. “Que raio!... Mais parece que estou colado neste quadrado!...” E estava. Não com cola verdadeira, mas com aquela espécie de cola que torna tudo estático, sem evolução, sem horizonte, sem verdade. Apenas ali. Dentro dos quatro lados.

Com a mão cada vez mais trémula e as pernas a fraquejar, a camisa ensopada pela transpiração e o cabelo em desalinho, olhou de novo para a porta. Um barulho ao fundo lembrou-lhe o mar. Não podia ser. Estava a quilómetros do oceano. Olhou para trás. Nada, a não ser o corredor envolto na penumbra, tranquilo.  Seria música? Não. Embora o carrossel da sua vida girasse insistentemente em torno de si próprio, o que ouvia não era a sua banda sonora. Um tremor de terra? O chão parecia fugir-lhe por baixo das solas pregadas no chão, sem resvalarem um milímetro. Também não.

Uma aragem. A porta entreabriu-se. Ainda que não tenha tido coragem para rodar a maçaneta, uma extrema curiosidade tomou-o de assalto. Cada vez mais nervoso e transpirado perguntou-se quem? Como? … A luz entrou como um flash que aos poucos deixou de o ofuscar e permitiu que visse que do outro lado as linhas rectas do ângulo conviviam em harmonia, debruadas por campos de flores multicor, onde não havia lugar a ervas daninhas e onde por entre os espinhos que invariavelmente cresciam aqui ou ali, existia sempre a capacidade de prosseguir caminho a bem e com bom senso. O mar também tinha ondas, mas os mergulhos nas correntes eram ponderados, para evitar que alguém se magoasse. O carrossel, esse não girava em torno de si próprio, mas era um longo comboio que conduzia a imensos lugares, efectuando paragens sempre que alguém queria entrar e iniciar a tal viagem que conduz além do quadrado de mármore mal polido.

Ficou imóvel. Nem um passo para cá. Nem um passo para lá. Ali. No entre portas.

“Olá, sou a tua voz de anjo. Chamaste por mim?”…


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