quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

Como Se Não Houvesse Amanhã

O sol estava particularmente quente naquela tarde de final de Julho, apesar da ligeira brisa provocada pela deslocação do barco. As encostas verdes em socalcos, erguiam-se majestosamente de ambos os lados, impondo-se, sobranceiras.  Aqui e ali edificações que o transportam para um imaginário longínquo.
Sentia-se calmo, mas simultaneamente inquieto. O verde da paisagem, a natureza, o correr tranquilo do rio por onde deslizava, revigoravam-lhe a alma carente de silêncio e daquela paz que só alguns entendem.
Olhava em redor, tentava adivinhar pela expressão o que estariam a pensar aquelas pessoas que consigo embarcaram, ilustres desconhecidos, mas de uma simpatia extrema,  que consigo comungavam desta viagem pela natureza. Durante o seu “estudo visual”, deteve-se num olhar que o fixava. Já tinha sentido aquele “frisson” em tons de castanho escuro enquanto esperava pelo embarque. Por meia dúzia de vezes ficou inquieto ao sentir-se fixamente observado. Quis abstraír-se, concentrar o pensamento na contemplação daquela paisagem enebriante, tão cheia e mística, mas a irrequietude superava-o.
Deveria ter cerca de 25 anos, estatura mediana, cabelo solto, meio selvagem, deixando adivinhar uma personalidade forte. Os olhos, grandes, pareciam querer pedir permissão para entrar no seu canto mais escondido e que tanto preservava. Se fumasse, poderia acender um cigarro e assim ganhar tempo para pensar, entre uma “passa” e outra. Poderia fingir não querer que o fumo incomodasse os demais, e deslocar-se para outro lugar no convés sem denotar que aquele nervoso miudinho estava a consumi-lo.
Deixou-se levar pelo pensamento, deslizando em ritmo sincopado com o navegar.  O seu olhar perdeu-se não sabe se nos vinhedos, se na tranquilidade das águas do Douro, onde as sombras pareciam querer transmitir alguma mensagem a quem estivesse mais atento.
“Olá! Estás a gostar do passeio?”
Estremeceu… virou-se. Aturdido, balbuciou algumas palavras engasgadas e sumidas… que coisa… sempre fora uma pessoa bem resolvida quanto ao sexo oposto, e agora a transpirar, mal conseguia articular as palavras mais banais… “ Olá! Sim… estou. E tu?”
“ Acho maravilhoso. Sabes, há imenso tempo que sonhava em fazer a descida do Douro. Moro longe e nem sempre é possível conciliar tempos e agendas. Vim sozinha e estou a adorar. É uma viagem tão tranquila e inspiradora, que acho que vou repetir mais tarde. Pena estar tanto calor e não podermos estar sempre a descoberto para que a brisa nos afague o rosto e o cabelo. Também estás sozinho? Ah, já agora chamo-me Maria. E tu?”
Despachada a miúda, pensou. Tentou ganhar fôlego e disfarçar o turbilhão de pensamentos que o assolavam, bebendo um golo de água fresca e ajeitando o cap que o protegia do sol. Em simultâneo olhava-a. Tinha uma beleza muito própria, onde o cabelo rivalizava com o brilho e a força do olhar. Via-se que era uma pessoa determinada, resolvida mas acima de tudo de um sorriso fácil e de uma simpatia sem par. Impossível desviar o olhar daquele rosto que o interrogava e que ao mesmo tempo lhe fazia crescer um sufocante desejo.
“Desculpa, queres um pouco de água? Um sumo? Apesar da deslocação do ar, está imenso calor. Queres ir para um local mais resguardado do sol?”
“Estou bem aqui, obrigada. Já vamos tomar uma bebida fresca mais tarde se quiseres. Queres falar-me de ti?
“De mim?… Olha, Maria, também vim sozinho  fazer a descida do rio. Não é a primeira vez, mas neste tipo de passeio sim. Gosto de viajar sozinho. De conhecer lugares e pessoas. Aliás, uma grande parte da minha vida é passada a viajar. Ah, e o meu nome é João Pedro, mas podes tratar-me apenas por João”. Uf…. Tinha conseguido pronunciar algumas frases com sentido, de uma assentada… Definitivamente a irrequietude e a ânsia estavam a dominá-lo. Mas queria saber mais, muito mais, acerca daquela Maria com quem sentia já uma cumplicidade feroz. “ E vens de onde? O que fazes? Viajas sozinha por alguma razão especial?”
Ficou a saber que Maria era da região de Lisboa, que tinha acabado a licenciatura há uma semana, e que se deu de presente a si própria, o privilégio de viajar pelo País durante 3 semanas, conhecendo, explorando, testando alguns limites, mas acima de tudo para se encontrar, longe da confusão e da correria da cidade, já que durante 4 anos não teve férias e conciliou o curso de arquitectura paisagistica com um trabalho a tempo inteiro num escritório de contabilidade. Vivia uma vida que não lhe fazia sentido, entre facturas, telefonemas, repartições de finanças, e a paixão por uma actividade que lhe permitia a libertação através da criatividade e da pureza daquilo que a terra mãe tem para oferecer e desfrutar, com cuidados e sustentabilidade. De si, falou apenas o essencial, absorvendo cada palavra, cada gesto, cada esgar de Maria. Considerava-a uma pessoa inteligente, culta, algo mística, mas que já o tinha cativado. Aliás, já se tinha “apossado” dele.
O tempo ali era lento, tão lento quanto a velocidade a que o barco deslizava no Douro, sem um balanço, num perfeito equilíbrio entre paisagem e estados de alma. De facto, parecia que nem João nem Maria queriam que a viagem terminasse. Ela, absorta na explicação que João lhe dava sobre a história e as estórias das várias quintas por onde passavam, cruzando com a história do próprio vinho do Porto, e por outro lado, fazendo menção aos escritores, músicos, pintores, que por ali nasceram e ali se inspiraram. Ele, encantado com o à vontade de Maria, com o despretensiosismo, com a forma simples e directa com que falava, e com um crescente fascínio por aquela personalidade meio citadina, meio selvagem, que o aturdia. Ao fim de algumas horas, era como se o seu conhecimento viesse de longe, talvez dos ingénuos tempos de escola, tal o à vontade com que a conversa fluía, por entre risos, espantos, quimeras, sonhos trocados, desejos silenciados.
Gaia marcava o fim da viagem. Uma dúvida: e agora? Ambos se olharam em silêncio, mas com um pensamento comum. Saíram do barco, ficaram parados a contemplar a Ribeira, a Muralha Fernandina e o casario dos Guindais, o vai e vem de pessoas na Ponte D.Luís, a tranquilidade do rio a correr ao encontro do mar, as gaivotas, os últimos passeantes da tarde… Caminharam silenciosos mas cúmplices até à Estação de S.Bento. Maria deveria regressar ao Pinhão de comboio. João, estava na sua cidade e muito próximo de casa.
“Tens programa para hoje aqui no Porto?” Foi como se a pergunta de Maria o despertasse daquele sufoco. “Eu? Nada de especial”. “Vem comigo então, até ao Pinhão.” Os olhos de Maria penetravam-no no seu eu mais profundo. Sentia-se “despido” e indefeso mas bem. Talvez aquela frase de Maria fosse tudo o que queria ouvir no momento. “Posso levar o carro”… “Não, João, não há necessidade. Vamos de comboio e continuas a falar-me acerca desta região pela qual já me apaixonei.” Um largo sorriso acedeu. Há muito que não tinha aquela sensação, se alguma vez a tinha tido, apesar das muitas mulheres que tinham já passado pela sua vida.
Um raio de sol matinal incidia nos seus rostos. Ao longe o ladrar dos cães na quinta anunciava o início do dia de trabalho. Por cima das suas cabeças, esvoaçavam pássaros cujo canto compunha a banda sonora das suas vidas naquele momento. Olharam-se. Perceberam então que a noite tinha sido passada na relva junto à piscina, onde se amaram e se entregaram como se não houvesse amanhã. 
Maria e João Pedro

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