quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Sem Limite


“Não! Não! Não! - Nada disso! “
- Tem calma… não é necessário exaltares-te. Senta-te aqui junto a mim.
Estendeu-lhe a mão, trémula. Toma, bebe um pouco de chá frio. Vai fazer-te bem.
Olhou para o copo. Hesitou. Não porque não gostasse daquele chá feito com as ervas da quinta que  o viu nascer, mas apenas porque não. Era assim que reagia muitas vezes. Sabia que perdia toda a razão. Sabia que se tornava de tal forma antipático e estúpido, que era impossível manter uma conversa por mais de 3 minutos… Era superior a si …genes malvados que se apoderavam do raciocínio, das emoções e da vontade, que o transformavam numa das piores pessoas que o habitavam. Sim, porque dentro de si conviviam personagens diferentes, consoante o humor e a ocasião.
- Bebe, vais ficar melhor. Além disso, este calor está mesmo a pedir uma bebida fresca. Olha, juntei algumas ervas frescas para aromatizar. Como tu gostas. Fui apanhá-las de manhã enquanto vias os mails. Estava uma temperatura agradável, uma ligeira brisa, que não deixava antever que a temperatura fosse subir tanto. Pensei que uma manhã destas quisesses ir também. O passeio pela horta é giro. O cheiro dos legumes, a frescura da água da rega, acompanhar o crescimento dos produtos e apanhá-los para podermos fazer as nossas delícias… gosto tanto!…E depois dar a volta pelo pomar antes de vir para cima. Energia redobrada para o dia! - Os olhos azul-cinzento brilhavam enquanto relatava o passeio que diariamente fazia, com sol ou com chuva, mas normalmente sozinha, ou na companhia de Dog, o golden retriever que há tantos anos fazia parte da família.
“Sabes perfeitamente que não gosto desses passeios rurais. Fico contente que os aprecies e que te dêem a energia que dizes precisar, mas tens que perceber que a minha vida é outra. Acedi ao teu pedido de vir morar para a quinta, mas já é tempo de compreenderes que este não é o meu mundo. Sinto-me sufocar. Preciso de outro ar. Do ar das cidades. Do ar que outras culturas respiram. Do ar  do interior dos comboios ou dos aviões. Não consigo limitar-me a estar aqui. Não me chega. Não me alimenta a alma, entendes?”
- Mas aqui tens tido a oportunidade de falar e conviver com os nossos hóspedes, sejam eles portugueses ou estrangeiros. E hás-de reconhecer que temos conhecido pessoas muito interessantes e que nos têm enriquecido interiormente. - Já não sabia como argumentar com Manuel. Esta conversa começava a ser recorrente e isso inquietava-a.  Fora ela que lhe pedira para deixarem a cidade e abraçarem uma nova vida na quinta que sempre pertencera aos Cunha, e que de herança em herança, lhe coubera em testamento. É verdade que a Quinta do Alto estava muito degradada, que investiu meses a fio na sua reconstrução, que desenvolveu um projecto turístico e cultural que começava a dar frutos, e que em parte se sentia bem consigo própria. Porém … eram já bem claros  alguns sinais de inquietação no seu amor, na sua cara-metade.  Um amor à primeira vista, como nos filmes, mas tão profundo e cúmplice, que ficava desorientada só de pensar que Manuel um dia poderia partir. Era como se o melhor dos candeeiros que iluminavam a habitação se partisse em mil bocadinhos e de repente tudo ficasse escuro. Não! Havia de lutar com todas as suas forças na reinvenção daquela relação. A sua vida sem Manuel não seria mais do que um eclipse do sol.  Sem luz e sem sentido. A Quinta do Alto era o seu Forte. Não podia ficar sem o seu Guardião. O projecto fora traçado, discutido e realizado por ambos, portanto era obrigatório que ambos continuassem esse caminho de cumplicidade e crescimento.
“ Maria João”, (um estremecimento interior quando Manuel a trata por Maria João), “somos adultos. Somos cultos, educados, e temos que ser capazes de falar de coisas menos boas, com transparência e sinceridade.”  Segurou-lhe na mão e fixou-a nos olhos. Maria João era uma mulher interessante. Quase perfeita. Aliás, quase perfeita demais. Era uma pessoa esbelta, com um à vontade singular e com a delicadeza e educação dos Amaral. Empreendedora, procurava sempre o patamar acima. Não por vaidade ou ostentação, mas simplesmente porque gostava de fazer, fosse o que fosse. “Maria João, Jojo, sabes como gosto de ti. Sabes a facilidade com que abandonei amigos e uma vida que me preenchia, para vir contigo viver um sonho que hoje percebo ser mais teu do que meu. Vejo-te feliz com o projecto, reconheço o quanto te preocupas comigo, demais, por vezes, mas   para ser correcto e honesto contigo, preciso dizer-te exactamente o que me vai na alma.” Um esgar de Maria João deixava adivinhar que a conversa não ia ser fácil. Nada fácil.
Jojo tinha por Manuel uma paixão sublime. Ele, em conjunto com o projecto da Quinta eram a sua razão de existir. A eles dedicava os seus dias e as suas noites, parecendo que nada mais lhe seria necessário para se sentir preenchida. Podia não viajar, não ir a espectáculos, não fazer uma escapadinha de férias, porque o seu eu bastava-se com o homem que tinha a seu lado, e com o trabalho. De tão embrenhada que estava na relação e nas suas tarefas,  esquecia-se muitas vezes da complementaridade e da liberdade necessária aos casais, baseada no respeito mútuo e na partilha sã.  Manuel sentia-se um apêndice. Não duvidava nem por um minuto do amor de Jojo e da sua dedicação.  Mas não era aquela a forma de amor que queria para a sua vida. Sempre fora uma pessoa mundana, curiosa por natureza, aventureira e uma boa parte do seu alimento espiritual eram as viagens, o conhecer culturas, o vaguear pelo mundo. Pensou que a paixão que o uniu a Jojo fosse suficiente para se reinventar e trilhar um novo caminho. Mas não. Era mais forte do que ele. Sentia-se amputado de vida naquele cantinho no meio do nada. Os muros e vedações da Quinta, pareciam-lhe barreiras intransponíveis para o seu pensamento. O ondular do arvoredo, em dias de vento, mais se lhe assemelhava a um exército de fantasmas que o desafiava a alistar-se. Da piscina o único prazer que retirava era o de mergulhar pela manhã na água fria, e,  como se quisesse abraçar um oceano, dar 20 minutos de fortes braçadas, deixando por ali a energia negativa acumulada. Seria tão mais fácil se Maria João o percebesse, e ao menos conseguissem chegar a um acordo quanto à permanência a tempo inteiro na quinta...pelo menos a sua permanência …
Olhou-o. Séria. Pensativa, deixou transparecer um rasgo de revolta. Passados minutos estava aos gritos também. Transfigurada. Deselegante, até. Dava a sensação de que se pudesse acorrentaria Manuel com pesos nos pés e nas mãos para que ele dali não saísse. Perfeito egoísmo. Amar não é prender. Amar é dar-se a liberdade de  ser quem se é. Maria João não conseguia imaginar como o seu comportamento e as suas palavras levariam a um caminho sem volta…
Olhava-a ao longe a colher ervas que colocava numa cesta. Dog estava irrequieto, como se pressentisse que alguma coisa iria passar-se. Tinha que aproveitar o passeio pelo pomar, do lado oposto, para conseguir colocar os parcos pertences no carro (duas malas de roupa, três caixas de livros, CDs, o computador portátil e um baú invisível cheio de recordações).
“ Quero que saibas que continuo a pertencer-te e que fomos um só. Tenho uma parte de mim que pertence ao Mundo, e é para lá que preciso voltar. Dizer obrigado não faz sentido, por isso te deixo um beijo. Manuel”.
Fechou o livro onde há vinte anos guardou o bilhete, na esperança de voltar a ver Manuel entrar no pátio.  Fechou o livro, e arquivou também uma parte da história da sua vida.

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