“Não! Não! Não! - Nada disso! “
- Tem calma… não é necessário
exaltares-te. Senta-te aqui junto a mim.
Estendeu-lhe a mão, trémula.
Toma, bebe um pouco de chá frio. Vai fazer-te bem.
Olhou para o copo. Hesitou. Não
porque não gostasse daquele chá feito com as ervas da quinta que o viu nascer, mas apenas porque não. Era assim
que reagia muitas vezes. Sabia que perdia toda a razão. Sabia que se tornava de
tal forma antipático e estúpido, que era impossível manter uma conversa por
mais de 3 minutos… Era superior a si …genes malvados que se apoderavam do
raciocínio, das emoções e da vontade, que o transformavam numa das piores
pessoas que o habitavam. Sim, porque dentro de si conviviam personagens
diferentes, consoante o humor e a ocasião.
- Bebe, vais ficar melhor. Além
disso, este calor está mesmo a pedir uma bebida fresca. Olha, juntei algumas
ervas frescas para aromatizar. Como tu gostas. Fui apanhá-las de manhã enquanto
vias os mails. Estava uma temperatura agradável, uma ligeira brisa, que não
deixava antever que a temperatura fosse subir tanto. Pensei que uma manhã
destas quisesses ir também. O passeio pela horta é giro. O cheiro dos legumes,
a frescura da água da rega, acompanhar o crescimento dos produtos e apanhá-los
para podermos fazer as nossas delícias… gosto tanto!…E depois dar a volta pelo
pomar antes de vir para cima. Energia redobrada para o dia! - Os olhos
azul-cinzento brilhavam enquanto relatava o passeio que diariamente fazia, com
sol ou com chuva, mas normalmente sozinha, ou na companhia de Dog, o golden
retriever que há tantos anos fazia parte da família.
“Sabes perfeitamente que não
gosto desses passeios rurais. Fico contente que os aprecies e que te dêem a
energia que dizes precisar, mas tens que perceber que a minha vida é outra.
Acedi ao teu pedido de vir morar para a quinta, mas já é tempo de compreenderes
que este não é o meu mundo. Sinto-me sufocar. Preciso de outro ar. Do ar das
cidades. Do ar que outras culturas respiram. Do ar do interior dos comboios ou dos aviões. Não
consigo limitar-me a estar aqui. Não me chega. Não me alimenta a alma,
entendes?”
- Mas aqui tens tido a
oportunidade de falar e conviver com os nossos hóspedes, sejam eles portugueses
ou estrangeiros. E hás-de reconhecer que temos conhecido pessoas muito
interessantes e que nos têm enriquecido interiormente. - Já não sabia como
argumentar com Manuel. Esta conversa começava a ser recorrente e isso
inquietava-a. Fora ela que lhe pedira
para deixarem a cidade e abraçarem uma nova vida na quinta que sempre
pertencera aos Cunha, e que de herança em herança, lhe coubera em testamento. É
verdade que a Quinta do Alto estava muito degradada, que investiu meses a fio
na sua reconstrução, que desenvolveu um projecto turístico e cultural que
começava a dar frutos, e que em parte se sentia bem consigo própria. Porém …
eram já bem claros alguns sinais de
inquietação no seu amor, na sua cara-metade.
Um amor à primeira vista, como nos filmes, mas tão profundo e cúmplice,
que ficava desorientada só de pensar que Manuel um dia poderia partir. Era como
se o melhor dos candeeiros que iluminavam a habitação se partisse em mil
bocadinhos e de repente tudo ficasse escuro. Não! Havia de lutar com todas as
suas forças na reinvenção daquela relação. A sua vida sem Manuel não seria mais
do que um eclipse do sol. Sem luz e sem
sentido. A Quinta do Alto era o seu Forte. Não podia ficar sem o seu Guardião.
O projecto fora traçado, discutido e realizado por ambos, portanto era obrigatório
que ambos continuassem esse caminho de cumplicidade e crescimento.
“ Maria João”, (um estremecimento
interior quando Manuel a trata por Maria João), “somos adultos. Somos cultos,
educados, e temos que ser capazes de falar de coisas menos boas, com
transparência e sinceridade.” Segurou-lhe na mão e fixou-a nos olhos. Maria
João era uma mulher interessante. Quase perfeita. Aliás, quase perfeita demais.
Era uma pessoa esbelta, com um à vontade singular e com a delicadeza e educação
dos Amaral. Empreendedora, procurava sempre o patamar acima. Não por vaidade ou
ostentação, mas simplesmente porque gostava de fazer, fosse o que fosse. “Maria
João, Jojo, sabes como gosto de ti. Sabes a facilidade com que abandonei amigos
e uma vida que me preenchia, para vir contigo viver um sonho que hoje percebo
ser mais teu do que meu. Vejo-te feliz com o projecto, reconheço o quanto te
preocupas comigo, demais, por vezes, mas
para ser correcto e honesto contigo, preciso dizer-te exactamente o que
me vai na alma.” Um esgar de Maria João deixava adivinhar que a conversa não ia
ser fácil. Nada fácil.
Jojo tinha por Manuel uma paixão
sublime. Ele, em conjunto com o projecto da Quinta eram a sua razão de existir.
A eles dedicava os seus dias e as suas noites, parecendo que nada mais lhe
seria necessário para se sentir preenchida. Podia não viajar, não ir a
espectáculos, não fazer uma escapadinha de férias, porque o seu eu bastava-se
com o homem que tinha a seu lado, e com o trabalho. De tão embrenhada que
estava na relação e nas suas tarefas,
esquecia-se muitas vezes da complementaridade e da liberdade necessária
aos casais, baseada no respeito mútuo e na partilha sã. Manuel sentia-se um apêndice. Não duvidava
nem por um minuto do amor de Jojo e da sua dedicação. Mas não era aquela a forma de amor que queria
para a sua vida. Sempre fora uma pessoa mundana, curiosa por natureza,
aventureira e uma boa parte do seu alimento espiritual eram as viagens, o
conhecer culturas, o vaguear pelo mundo. Pensou que a paixão que o uniu a Jojo
fosse suficiente para se reinventar e trilhar um novo caminho. Mas não. Era
mais forte do que ele. Sentia-se amputado de vida naquele cantinho no meio do
nada. Os muros e vedações da Quinta, pareciam-lhe barreiras intransponíveis
para o seu pensamento. O ondular do arvoredo, em dias de vento, mais se lhe
assemelhava a um exército de fantasmas que o desafiava a alistar-se. Da piscina
o único prazer que retirava era o de mergulhar pela manhã na água fria, e, como se quisesse abraçar um oceano, dar 20
minutos de fortes braçadas, deixando por ali a energia negativa acumulada.
Seria tão mais fácil se Maria João o percebesse, e ao menos conseguissem chegar
a um acordo quanto à permanência a tempo inteiro na quinta...pelo menos a sua
permanência …
Olhou-o. Séria. Pensativa, deixou
transparecer um rasgo de revolta. Passados minutos estava aos gritos também.
Transfigurada. Deselegante, até. Dava a sensação de que se pudesse acorrentaria
Manuel com pesos nos pés e nas mãos para que ele dali não saísse. Perfeito
egoísmo. Amar não é prender. Amar é dar-se a liberdade de ser quem se é. Maria João não conseguia
imaginar como o seu comportamento e as suas palavras levariam a um caminho sem
volta…
Olhava-a ao longe a colher ervas
que colocava numa cesta. Dog estava irrequieto, como se pressentisse que alguma
coisa iria passar-se. Tinha que aproveitar o passeio pelo pomar, do lado
oposto, para conseguir colocar os parcos pertences no carro (duas malas de
roupa, três caixas de livros, CDs, o computador portátil e um baú invisível
cheio de recordações).
“ Quero que saibas que continuo a
pertencer-te e que fomos um só. Tenho uma parte de mim que pertence ao Mundo, e
é para lá que preciso voltar. Dizer obrigado não faz sentido, por isso te deixo
um beijo. Manuel”.
Fechou o livro onde há vinte anos
guardou o bilhete, na esperança de voltar a ver Manuel entrar no pátio. Fechou o livro, e arquivou também uma parte
da história da sua vida.
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