Eram oito da manhã e o meu desejo
era que a noite caísse e os ponteiros indicassem que já eram horas de me
deitar. Mais uma noite mal dormida, angustiante, num reboliço de lençóis e
almofadas, onde a cabeça latejava.
Tinha já perdido a conta dos dias
e das noites deste estar. Uma amargura o amanhecer, em dias que se sucediam,
como os degraus que conduziam ao meu apartamento, encarrapitado num loft sem
elevador. Não via esperança, nem tão pouco o sol nascente que entrava pela
enorme janela do terraço, tinha o condão de me animar. Muito pelo contrário.
Ante o vazio dos dias, suspirava pela noite, pelo breu e pelo momento em que
julgava que tudo tinha parado do outro lado do meu mundo. Não conseguia
motivar-me para saír de casa, e como qualquer pessoa comum, procurar a vida.
Tinham sido três anos duros, de mudanças sistemáticas, de frustrações, de
revolta e injustiça. Lido mal com a injustiça e com a falsidade. Talvez exagere
na minha entrega e o meu grau de ingenuidade seja elevado. O certo é que
acredito nas pessoas, na sua “aparente” disponibilidade e bondade, e acabo
sempre por me desiludir.
Arranjei um copo com leite gelado
e sentei-me no terraço. Em frente, o rio corria tranquilo, numa imagem de espelho, azulado, saudável e intimista.
Privilégio meu poder desfrutar a vista, sem que nada se interpusesse. Ao longe
ouviam-se vozes. O dia tinha há muito começado a dar sinais de vida. Fui
bebericando o leite, sem qualquer vontade e consegui enganar dois biscoitos que
jaziam na caixa que a Marta me tinha trazido há quinze dias. A cabeça
continuava pesada, de tal forma que os olhos me doiam por dentro. Recostei-me
na espreguiçadeira e semi cerrei-os, numa tentativa de alívio. Um apito
despertou-me daquele meio torpor. Era um navio a entrar na barra. Parecia
querer cumprimentar a cidade. Detive-me a olhá-lo e a imaginar quem seriam os
passageiros e ao que viriam. Turistas, curiosos, meros viajantes, solitários ou
famílias, tudo era possível… Nunca tinha feito um cruzeiro, nem sequer era
coisa que me fascinasse - já que era muita gente num mesmo espaço durante
demasiado tempo, num convívio obrigatório - mas dei comigo a pensar que nesta minha
privação de um mundo exterior por opção própria, me começavam a faltar os
rostos. Gosto de olhar para os rostos, estudá-los, percebê-los para além do
visível. Talvez pelas decepções que fui apanhando, comecei a ter uma atitude
mais radiológica em relação aos outros.
Dez horas… e ainda faltam tantas
para anoitecer … Preciso saír de casa, pensei. Tenho que me libertar desta
prisão de mim mesmo, a que me reduzi nos últimos tempos.
Tomei um duche, agarrei numa
pequena mochila e desci os seis lances de escadas que separavam o meu refúgio
do mundo real. Há seis meses que tinha ali “aterrado” e há quatro que não ia à
rua. Fazia as compras on line e trabalhava à distância. Duas vezes por mês a
minha prima Marta visitava-me e levava-me uns mimos. Era a única pessoa a quem
dava acesso ao meu espaço físico e interior. Gostava de falar com ela. Ouvia-me,
nas minhas palavras e nos meus silêncios, e respeitava-os. Tinha uma vida
demasiado preenchida e muitas vezes me falou sobre a necessidade de abrandar, e
no equilíbrio, na tentativa de me fazer pensar que a solução está sempre no bom
senso, nos pratos da balança, que não devem pender em demasia para nenhum dos
lados.
Senti-me uma espécie de zombie.
Fiquei atordoado com o barulho dos carros. Caminhei um pouco e depois de
comprar o jornal, sentei-me numa esplanada para tomar um café e uma água. Como
gostei do cheiro do papel de jornal… parecia ter vindo de outra época… passei
os olhos pelas “gordas, guardei-o na mochila e voltei a caminhar, não sem antes
me ter rendido novamente ao comprimido que me atenuava as dores de cabeça
persistentes. Efeito psicológico ou placebo, era já um vício, apesar de saber
que a toma contínua era prejudicial.
Dei comigo a entrar para o barco
que fazia a ligação entre as duas margens. Talvez tivesse sido o apito matinal
do navio a conduzir-me. Sentei-me no convés superior, a descoberto do sol.
Soube-me bem o sol no rosto e na pele, e
a brisa que me afagava, com meiguice. Durante os vinte minutos de travessia
fui-me detendo nos rostos, nos traços das minhas companhias de “viagem”.
Curioso como num planeta tão povoado, todas as fisionomias e feições são
diferentes. Jovens, menos jovens, gente de trabalho, apaixonados, solitários,
escritores, pintores, todos cabiam
naquele barco, que mais não era do que uma amostra de mundo. Rostos cansados,
sofridos, outros radiantes e alguns pensativos ou observadores. Tentei
adivinhar ao que iam e na minha cabeça criei histórias para cada um daqueles
que me despertou a atenção.
Já na outra margem telefonei a
Marta. Talvez estivesse em casa e aceitasse almoçar.
No regresso senti-me cansado. A
cabeça continuava a doer-me, mas o meu olhar e o meu ânimo eram diferentes. A
Marta ficou contente por me ver e depois do almoço enquanto os miúdos se
entretinham a atirar pedras para o leito do rio e a contar os barcos ancorados
na marina, conversámos longamente sobre as minhas angústias existenciais e
sobre a necessidade de saír da reclusão, encarar a vida e as pessoas e ter a
coragem de abraçar o mundo tal como ele é, mas não perdendo nunca de vista os
meus princípios e os meus propósitos. Dei-lhe razão. Fechar-me em mim trouxe-me
não só solidão, como um alhear do que me rodeia, já que propositadamente cortei
a ligação da tv e os gigas da net que tenho disponíveis, chegam apenas para
trabalhar. O telefone há muito que está em modo avião e quase me serve apenas
de relógio. De facto, existem momentos em que necessitamos ficar a sós connosco
próprios, para percebermos qual o nosso lugar e o nosso papel no caminho da
vida.
Anoiteceu. Não me entreguei à
cama na ânsia de fechar os olhos, dormir e fazer que não existia. No terraço
percebi que tinha um lugar único sobre a vida que se sentia lá fora. Sobre o
rio que trazia consigo a boa energia das marés. A lua quase explodia de luz.
Fiquei a olhá-la como nunca a tinha olhado. Quis que fosse cúmplice dos meus
pensamentos e decisões. Já não me doía a cabeça e nem me lembrei dos
comprimidos.
São oito da manhã… acordei leve e
bem disposto. Está sol. O navio apitou
de novo. Vai de saída. Se descer as escadas rápido ainda consigo vê-lo saír da
barra…
Nuno
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