quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Recorte de Um Tempo Aqui




E assim foi – arrumei a caneta e o caderno,  não sem antes porém, dar mais uma vista de olhos naquele recorte impresso e há tanto tempo guardado, com o papel amarelecido e amarrotado.
E mais uma vez “falámos” entre nós, um diálogo só por nós entendido. Tinha passado algum tempo sobre a última conversa, e tantas coisas tinham acontecido entretanto…. O Mundo, tal como o conhecíamos tinha mudado, a uma velocidade estonteante, e os paradigmas da vida, começaram a mudar também. Vieram atentados, crises económicas e sociais, insegurança, instabilidade, dificuldades várias, sonhos desfeitos, interesses obscuros a estender tentáculos que abraçam a Terra, e um renascer forçado mas necessário para uma grande parte da população mundial.
Fariam agora sentido as nossas primeiras conversas? Tu, recorte, estás impotente para me responder. Mas eu, que contigo falo, e contigo partilho um tempo, creio que sim. Fazem sentido. Afinal, era o tempo da construção, do chamado “futuro”, do encontro, do querer, do amar. A cada vez que te leio, mais tenho a convicção de que tudo está aí. E por isso te guardo, onde só eu sei que existes, num egoísmo puro, mas que me apazigua a ânsia e me devolve a força. Estranho? Chamem-lhe o que quiserem. Para mim és importante. És testemunho de vida, vontades e confidências, que de tão veladas, ninguém iria entender. Sim, um papel amarelecido, com letras impressas, guardado entre as páginas de um caderno…
Sabes, quando naqueles serões à lareira “falávamos” através de quadras soltas, em como a vida era estranha?...E nem adivinhávamos sequer o que viria a acontecer…. E quando “esboçávamos” a perfeição dos sentimentos e dos seres humanos?... Apenas esboço,  de facto… hoje não passa tudo de um esboço. Perguntas-me se isto é desilusão? Talvez não seja. Sabes, afinal nunca coloquei tudo nos meus sonhos. Havia sempre uma parte fria e racional, que me fazia aterrar à força. Por isso, não existindo muita ilusão, não pode haver grande desilusão.  Desencanto, talvez seja esse o termo certo. Sabes, tal como tu te encantas no conteúdo que te preenche o espaço, também eu tive e tenho os meus “encantamentos”. Lugares, objectos, textos, músicas, pinturas… e … as pessoas. O que pertence ao espaço físico, é. O que pertence ao espaço emocional, psicológico e moral, está. Por isso as pessoas não são, estão. E assim todos os esboços que fizemos, não passam de linhas impressas.
Interrompi a “conversa” e pensei para mim: sim, as pessoas fascinam-me. É ambíguo, mas são as pessoas que nos completam e nos dão alegria e felicidade, tanto quanto nos podem destruír e deixar miseravelmente infelizes. O Mundo é o reflexo das pessoas que o povoam -  brancas, negras ou amarelas; ricas, remediadas ou pobres; sinceras, dissimuladas ou falsas; crentes, ateias ou agnósticas; de esquerda, centro ou direita; altos quadros, médios ou sem formação - a falar uma diversidade de línguas, mas cujo denominador comum deveria ser um único – o amor, nas suas múltiplas formas. E assim, me vieram à memória tantos e tantos rostos, tantas e tantas histórias de vida, feitas, desfeitas, refeitas… Realmente, tudo se baseia nas relações pessoais e em torno delas se desenvolve, não obstante a permeabilidade aos interesses, à mentira, ao facilitismo, e a traços de carácter menos eticamente correctos, mas que não são mais do que desejos recalcados, frustrações acumuladas, afectos por preencher, amores esvaziados, e uma certa dose de desfasamento da realidade, quantas vezes alavancada por uma ambição doente e fria. Curioso, como conhecemos tantas pessoas, em tudo diferentes, e em tudo iguais … Será a nossa “passagem” por aqui um acervo bipolar?...
… O tempo passou, e num ângulo de trezentos e sessenta graus, vi, revi, escutei, senti, todas aquelas histórias de que são feitas as pessoas.
Voltei ao meu recorte: A perfeição, não existe. Um esboço pode apagar-se, alterar-se, corrigir-se, sempre. Por isso se chama esboço. É passível de ajustamentos. Tal como o estar das pessoas o é. Tal como a vida o é. Existe a necessidade permanente de “afinar” uma espécie de máquina, comandada pelo cérebro e pelo coração. Essa máquina não é mais do que um conjunto de sentimentos que nos diz o que fazer. Sabes,  aquelas linhas tão nossas que guardas no teu corpo? São essas mesmas linhas, que hoje me fazem sentido e que escrevem tudo o que quero daqui.

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