A autoestrada já me era tão
familiar, que lhe conhecia cada curva, cada sinal, cada saída.
De facto durante os últimos seis
meses era um percurso que fazia com uma frequência que ia muito além do que eu
consideraria razoável. Se há um ano atrás alguém antevisse a quantidade de
vezes seguidas que iria a Lisboa e mo dissesse, eu diria que era loucura.
O carro funcionava quase em
piloto automático, ou dito de outra forma, o piloto automático seria eu, que
qual autómato me fazia ao caminho já sem questionar ou pensar. Apenas tinha que
ir.
Naquela tarde algo me dizia que
tinha que regressar rápido. Não suportava já as avenidas, o trânsito, os hospitais, as salas de espera cheias, o
som do quadro electrónico a chamar o doente seguinte ou o familiar. Tinha
horror às batas brancas, fardas verdes ou azuis. Queria fugir. Fugir para longe
daquele pesadelo que me tinha transformado numa espécie de robot.
Dizia eu que naquela tarde tinha
um pressentimento estranho e uma força maior me fazia regressar sem sequer
comer alguma coisa que me aconchegasse o estômago e me servisse de almoço,
ainda que tardio. A pressa de passar a ponte era demasiada. A ânsia de chegar,
ainda que a um outro hospital, inflamava-me o peito.
As notícias que tinha eram vagas
e o tom de voz da enfermeira deixou-me dúvidas. O carro rolava sem tino.
Durante a hora e meia de viagem vieram-me à memória tantas coisas. Sentimentos
que não conseguia explicar. Uma viagem interior feita à mesma velocidade com
que o carro deslizava pela autoestrada, para concluír que a vida é extremamente
injusta e que para que um dia partamos para um outro lugar, não seria
necessário um sofrimento atroz que nos reduz a um estado miserabilista e
desumano. Era esse o retrato em que aquele que sempre foi a minha âncora e a
minha referência se encontrava há já algumas semanas. Vergado pelas dores que
nem a morfina adormecia, tinha já
perdido todo o brilho do olhar. Nos poucos momentos de lucidez, deixava
transparecer a revolta pelo amputar de uma vida que ainda tinha muito para lhe
dar, para me dar, para nos dar. A cada
dia que percorria o corredor até ao quarto, a incerteza do que ia encontrar
apertava-me o peito. Sabia que melhoras não iam existir, até porque as
metástases daquele horrível tumor ocupavam já quase todos os órgãos vitais.
Restava-me acreditar que no estado de inconsciência o sofrimento era menor e
que alguma forma de minorar a dor lhe era benéfica.
Ao sair do carro respirei fundo,
abrandei o ritmo como que a tentar arranjar força interior para subir. Fui
pelas escadas. Percorri os lances dos seis pisos com um passo cada vez mais
lento, não porque estivesse cansada ou tivesse dificuldade em subir, mas porque
algo me dizia que tinha que manter a calma quando chegasse ao quarto.
Lentamente avancei pelo corredor, despido de gente, a não ser os dois
enfermeiros que estavam na mudança de turno.
“Ainda bem que a menina chegou. O
seu pai tem estado à sua espera.” - Estas palavras proferidas pelo doente da
cama ao lado, ficaram-me gravadas. Ainda
hoje, dezasseis anos passados, as
recordo.
Foram poucos os minutos que nos
restaram, mas não sei explicar como nem porquê, senti que a minha presença o
confortou, tal como me confortou perceber que ele não queria partir sem sentir
que eu estava ali. Talvez quisesse dizer-me para ter força, para encarar os
problemas um de cada vez, e resolvê-los com sabedoria e lucidez, como era seu
hábito, nas conversas que tínhamos Ou
talvez quisesse apenas sentir que eu estava a seu lado e que naqueles minutos
que nos restavam, nos devíamos deter no
que realmente importa: o amor, o carinho, o cuidar.
Anoiteceu, e com a noite
apagou-se uma parte de mim. Um luto que carrego no peito e na alma e que apenas
alivio quando me lembro das palavras trocadas, dos ensinamentos que ainda hoje
professo, da meiguice austera que me ensinou os caminhos e dos seus valores que
fizeram de mim quem sou enquanto pessoa, do abraço, do beijo na testa, do humor
fino nem sempre compreendido e da música, sua grande paixão. Não chorei. Ele não quereria que chorasse.
Detive-me a olhá-lo, sereno na partida e pensei mais uma vez na injustiça da
vida, ou de como ela nos põe à prova sistematicamente. Na sua expressão
acreditei que iria para onde o sofrimento já não tivesse lugar e que estaria a
olhar para nós. Afinal ninguém sabe o
que se passa do outro lado … se é azul ou cinzento, se está calor ou frio, se há sol ou luar, se
há barulho ou silêncio …
Quando a enfermeira chegou e
correu a cortina, percebi que a morte física é um patamar que apenas nos priva
do toque. Tudo o resto está lá, fica e vive connosco.
Helena
Helena
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