quinta-feira, 11 de junho de 2020

Memória Por Companhia


Percorri a muralha do castelo, imponente e altaneiro. É estranho como lá no alto da pequena montanha,  outrora fortificada para protecção do território das sucessivas invasões, a sensação de paz e liberdade se entranha na alma. Certamente que a geografia tem aqui uma forte componente. A imensa paisagem em torno da muralha, erguida a uns oitocentos e cinquenta metros de altitude, dá-nos uma amplitude magistral  sobre um horizonte sem fim, onde ao longe se vislumbram cadeias de montanhas que recortam um cenário perfeito. O silêncio impõe-se ao redor, deixando que a imaginação extravase o horizonte e se inebrie de histórias possíveis ou impossíveis, mas que colocadas ali fazem todo o sentido. Na várzea avistam-se hortas, pequenas quintas, lugarejos povoados por aqueles que resistentes, nunca quiseram partir à procura de melhores condições de vida, nas cidades ou no estrangeiro. Do outro lado, um campo de golfe a anunciar que afinal o tempo não parou por estas bandas, e até há quem goste de desfrutar da qualidade, do sossego e da hospitalidade das gentes puras e genuínas. Mais além adivinham-se vestígios de uma antiga povoação romana, ou não fosse esta zona uma importante via de circulação e de fixação de pessoas nos tempos de Júlio César. Era aqui que passava a estrada romana que ligava Cáceres a Santarém.
Espanha de facto é logo ali. Aqui no alto consegue-se seguir a estrada que conduz a nuestros hermanos, em não mais do que dez minutos de carro. Outrora rota de contrabandistas, o caminho entre La Fontañera, Galegos e Marvão está repleto de histórias de vida daqueles cuja fonte de sustento era o transporte ilegal de bens, sobretudo o café, e assim, a coberto da noite e de muitos perigos,  garantiam não só a sobrevivência das suas famílias, como também da parca economia de toda uma comunidade. Já no topo norte da muralha,  uma outra realidade. A majestosa Serra da Estrela, impõe-se ao fundo, depois de ser possível distinguir terrenos pedregosos e inóspitos, onde em tempos os Lusitanos se esconderam e defenderam a terra Lusa.
Tanta história… tanto património … um encher o peito e respirar por todos os poros …
No meu imaginário e recorrendo-me de todos os conhecimentos que fui adquirindo, das pesquisas e das muitas conversas, consigo pintar estórias que depois quero escrever.  Como precisava fazer este corte com o chamado mundo real, e remeter-me a este espaço de paz e de silêncio, apenas interrompido por um ou outro visitante mais barulhento…
Tenho na minha frente o pôr do sol mais deslumbrante dos últimos anos. Por entre as ameias da muralha, o sol cai lentamente num imenso céu azul laranja, pintando o horizonte de tons verde dourado e cinza alaranjado. Não me canso de fotografar as várias etapas deste fim de dia, sentado que estou no local mais privilegiado para tal. Uma tónica gelada e alguns salgados fazem-me companhia neste terraço de alma, já que outra companhia não tenho, a não ser a memória de quem partiu, mas persiste em ficar, deixando-me o sentimento de que nunca a perdi.
De facto, todas as histórias de amor têm personalidade própria. Têm um início, pelo fascínio, pela admiração, pela descoberta do outro, e a não ser as histórias de amores enraizados e à prova de tudo, todas, um dia terão um fim. Neste cadeirão virado ao pôr do sol, recordo a sua presença, os seus olhos claros, a sua voz pausada, mas também as suas incertezas, a insegurança e o sonho de encontrar a sua outra metade, em alguém que roçasse a sua noção de valentia e segurança. Continuo a sentir-me fascinado por aquele sorriso franco, pela compostura das suas frases, pela sua doce fragilidade quase a implorar que lhe desse a mão e lhe mostrasse o caminho da vida. Uma mulher-menina, que aprendi a amar, a aceitar e cuja separação me provocou uma dor profunda. Conforta-me o facto de sentir que contribuí para o seu crescimento interior, para a sua afirmação enquanto pessoa, e que hoje a mulher-menina que guardo no peito e na memória,  é toda ela mulher. Desgraçado me senti quando percebi que a nossa história tinha acabado. Uma página de vida arrancada ao caderno onde escrevo o rascunho dos meus dias.
Neste refúgio de silêncio, de paz e de natureza, longe do mundo “normal”, procuro aceitar uma separação que não impus, apaziguar esta dor que me corrói e encontrar um novo sentido para a vida.  
E do alto da muralha, entre as ameias onde o sol já teima em esconder-se, percebo que tudo na vida tem um propósito. Escolhi um penhasco com um castelo encarrapitado, não para afogar as minhas mágoas, mas sim para que toda a simbologia e espiritualidade do local, me ajudem a conviver com a realidade, com a força das pedras e dos homens que há muitos séculos atrás, ergueram esta fortificação. O vasto horizonte que vejo mais não é do que o futuro ali, a meus pés, e que apesar dos pedregulhos espalhados pelo caminho, existirá sempre um amanhecer e um por do sol para viver e apreciar. Ainda que a tua memória me acompanhe…
Luís

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