quinta-feira, 4 de junho de 2020

Guardião da Vida


… Cansa-me já a mão, mas és tu a minha única forma de desabafar. Estranho sentimento este que tenho em relação ao mundo lá fora. Aborrecem-me as pessoas. Aborrece-me a corrida para nenhum lado, a agitação sem sentido, o ruído de fundo que me perfura o cérebro e me incomoda. Por força das circunstâncias tenho que sair todos os dias para ir às aulas e para trabalhar. Não fosse este meu nicho de clausura tão próximo de tudo e muito provavelmente teria desistido de lutar pelo meu sonho, ou pelo menos talvez o tivesse adiado.

Dizem que quando somos novos nos habituamos e tudo e que as adaptações são rápidas. Nem tanto… Claro que partir com a intenção de conseguir “bagagem” para a realização de um sonho de vida é motivação mais do que suficiente para nos dispormos e nos expormos ao que vier. A descoberta de novos  horizontes, de novas culturas e de novas pessoas dá-nos sempre um frenesim que faz aumentar os nossos níveis de adrenalina. Gosto da fase. Da descoberta, da revelação, da imaginação. Quando tudo é novo e de tão distante que parecia, percebemos que afinal o virar da esquina até fica logo ali, e por mais longínquo que seja o teu paradeiro, o mundo continua a girar, apesar de a paisagem ser outra, de as casas terem outras configurações, de os monumentos escreverem outras histórias, ou de as pessoas falarem línguas diferentes. Quando aqui cheguei com duas mochilas às costas e um saco de mão, foi para mim o descobrir de um novo mundo e de uma nova realidade que apenas conhecia da televisão, dos jornais e das revistas que ia comprando sempre que me sobravam uns tostões. Não vinha com quarto marcado, nem tão pouco conhecia o sistema de transportes. As primeiras noites passei-as naquilo a que chamamos pensão, numas águas furtadas de um edifício algo decadente, mas num bairro que me pareceu simpático e com gente gira.  O quarto era exíguo, com uma cama de solteiro e uma cadeira, sendo a casa de banho partilhada entre todos os seis quartos do piso. Vantagem: o preço incluía um bom pequeno-almoço inglês que já ajudava a suportar metade do dia.  Na manhã imediata à chegada dirigi-me à Escola para fazer a inscrição, saber horários e  perante eles, aferir da possibilidade de arranjar trabalho por perto, por forma a conseguir ter uma vida minimamente equilibrada, não sobrecarregando o orçamento mensal dos meus pais, que embora me tivessem apoiado na decisão, me fizeram ver que estar fora de casa e do país, seria um peso acrescido na sua folha de encargos, e que como tal, todos os gastos teriam que ser milimetricamente  estudados. Descansei-os ao afirmar que não era minha intenção partir em busca de um sonho e assumir que suportassem a totalidade dos custos inerentes. Que iria arranjar trabalho, fosse onde fosse. As aulas começavam dentro de dez dias. A senhora que me acolheu na Escola foi de uma simpatia extrema e fez-me uma visita guiada que me deslumbrou, apresentando-me a professores que por lá circulavam, a funcionários, e referindo-se a mim como o promissor Português. Perguntei-lhe o porquê, ao que disse ter sido ela a analisar a minha candidatura e desde logo lhe ter chamado a atenção. Não posso dizer que não me envaideci um pouco… mas rapidamente desci à terra. Seria o meu primeiro ano numa Escola totalmente diferente, com metodologia, professores, matérias, colegas, e tudo o mais, diferente do que estava acostumado. Poderia correr bem, poderia correr menos bem…
Nessa mesma tarde comecei a procurar trabalho nas redondezas. Nada fácil… se o trabalho me aliciava, os horários não eram compatíveis; se conseguia encaixar as aulas, eram trabalhos que não tinham rigorosamente nada a ver comigo… Em simultâneo tentava encontrar um quarto mais próximo, para não perder muito tempo nos transportes. Nesses primeiros dias posso afirmar que fiquei a dominar toda aquela zona, tal a quantidade de vezes que percorri as avenidas e ruas secundárias a pé, a bater às portas ou a entrar por lojas, restaurantes e escritórios. Consegui um quarto razoável, aí com uns vinte metros quadrados mas com casa de banho privativa, num quarto andar sem elevador. Tinha ainda a possibilidade de cozinhar. Tinha boa luminosidade, a mobília era bastante aceitável,  e embora o preço fosse um pouco mais alto do que tinha orçamentado, o facto de poder deslocar-me a pé para a Escola, fazia toda a diferença. Além disso, estava a gostar imenso daquele bairro e poder ter ali o meu dia a dia agradava-me.
As aulas começaram sem que eu tivesse arranjado trabalho. Uma preocupação que não me largava. Certo dia estando eu a folhear a página de empregos de um jornal, fui interpelado pela senhora que me acolheu na Escola. Ao dizer-lhe que procurava trabalho para poder fazer face à minha permanência em Londres, mostrou um sorriso largo, disse-me para a acompanhar e chegados ao seu gabinete fez um telefonema. Percebi que existia uma vaga no centro de documentação de uma qualquer entidade. Deu-me um nome e uma morada e disse-me a que horas deveria lá estar.
No regresso, de tão feliz que estava e não sabendo como agradecer à minha “fada-madrinha”, comprei um enorme ramo de flores, e entrei Escola adentro como se pisasse algodão. Não era apenas o facto de me ter arranjado trabalho, era o facto de ser um trabalho “à minha medida”. Poderia assim complementar a minha formação pessoal com outros conhecimentos, pesquisas, e trabalhos a que tivesse acesso. Afinal somos um todo que se completa e complementa nas várias vertentes do saber e do conhecimento.
Um ano, dois anos, três anos… a distância do país, da família e dos amigos cada vez me custava mais… Se o entusiasmo inicial num país diferente foi para mim motivador e fonte de energia para conciliar tudo, o certo é que o cansaço e algum desalento se foram instalando. Como foi possível que em três anos o mundo tivesse mudado tanto? Guerras, injustiças, egoísmo, interesses, tudo a desaguar para um mar de dificuldades. Resiliência? Persistência? Nem sei o que dizer. Se calhar chamo-lhe sobrevivência… Nunca pensei que fosse tão difícil sobreviver para tentar concretizar um sonho, ainda por cima com um início algo facilitado… Estava farto de noticiários, sempre iguais ou piores, estava farto da correria das horas, quase sem tempo para mim, estava farto do barulho do trânsito, do ruído dos cafés e dos restaurantes, e talvez, farto de mim.
Falta de companhia, diziam uns, “tens que arranjar uma namorada”, diziam outros. O certo é que todos os relacionamentos que fui tendo não passaram de aventuras passageiras, excepto uma, que sendo de pouca duração, foi aquela que me “agarrou”.
Cruzámo-nos no corredor da Escola. Ela nervosa e lacrimejante. Nunca tinha reparado naquela miúda. Perguntei se precisava de ajuda e ofereci os meus préstimos. Uns olhos verde cinza agradeceram-me, mas não. Era apenas um momento mau. Convidei-a a tomar uma água. Acedeu. Após alguns minutos de silêncio, respirou fundo e agradeceu. Reparei que falava com sotaque, talvez francês. Não me enganei. Marie, assim se chamava era de Avignon, cidade da Provence. Para quebrar o gelo comecei a cantar “Sur Le Pont d’Avignon” e ela esboçou um sorriso. Era linda, algo mística. O nervoso e o choro deveram-se ao facto de ter sido assaltada a cerca de cem metros da Escola e ter ficado sem documentos de identificação. De novo ofereci-me para ajudar. Ao fim de três anos já sabia todas as voltas a dar. Agradeceu-me.  Depois da conversa banal sobre a cidade à beira do Rhône, os monumentos, a beleza dos campos e das povoações da Provence,  fiquei a saber que Marie tinha ganho uma bolsa de investigação que lhe permitia desenvolver um trabalho em várias Escolas de vários países, estando agora em Londres. A conversa fluíu. Era uma miúda extremamente inteligente, com rumo, que sabia o que queria.
Escusado será dizer que nos fomos aproximando cada vez mais e sempre que os nossos horários o permitiam arranjávamos programa, fosse para descobrir recantos daquela cidade intensa, fosse para simplesmente apanhar sol na relva de Hyde Park, para assistir a espectáculos, ou apenas para estarmos juntos. Sentia-me bem na sua companhia. A sua forma de estar era firme e devolvia-me alguma confiança entretanto perdida.  Marie começou a ser o meu chão, o meu tecto, a minha âncora. Apesar de saber que a sua permanência em Londres não seria igual à minha, e dentro de meses partiria para um outro país e para uma outra Escola, evitava a todo o custo fazer futurologia e pensar na angústia desse inevitável momento.
Percebi que para ela era também uma espécie de porto de abrigo, embora não se detivesse muito em perguntas sobre mim ou sobre a minha vida. Afinal ela sabia que estava de passagem. Gostava que lhe falasse de músicas, de poesia, de cultura em geral e que cantasse para ela. Disse-me um dia que a minha versão de “Sur Le Pont d’Avignon” no dia que nos conhecemos, foi para ela sublime e um flash. Banal, pensei… Da minha boca ouviu jazz, blues, pop, e teimei em dar-lhe a conhecer a boa música portuguesa do momento. Ao som de Rui Veloso vimos se ainda havia estrelas no céu, ou ao som dos GNR rebolámos como nas dunas, para logo o Pedro Abrunhosa nos lembrar de viver o momento e o Jorge Palma em coro comigo pedir para ela se encostar a mim.
Sempre que Marie não tinha trabalhos muito específicos para fazer e que requeriam muita concentração, ocupava comigo os vinte metros quadrados do quarto andar, e juntinhos partilhávamos a cama, as noites feitas dia e os dias feitos noite, onde nos amávamos sem destino, sem hora, mas com um querer e um prazer celestiais.

… Não sei se voltarei a rever Marie. Corrói-me a vontade que tenho dela. A minha vida continua a perder sentido.
Hoje, morto de saudades, afogo as minhas angústias existenciais em ti,  caderno, fiel depositário dos meus pensamentos, das minhas paixões, das minhas desilusões, das minhas raivas e das minhas tristezas.  Tu és o guardião daquilo que a vida nos oferece: num dia em cima, noutro dia em baixo.
Rui e Marie

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