… Cansa-me já a mão, mas és tu a
minha única forma de desabafar. Estranho sentimento este que tenho em relação
ao mundo lá fora. Aborrecem-me as pessoas. Aborrece-me a corrida para nenhum
lado, a agitação sem sentido, o ruído de fundo que me perfura o cérebro e me
incomoda. Por força das circunstâncias tenho que sair todos os dias para ir às
aulas e para trabalhar. Não fosse este meu nicho de clausura tão próximo de
tudo e muito provavelmente teria desistido de lutar pelo meu sonho, ou pelo
menos talvez o tivesse adiado.
Dizem que quando somos novos nos
habituamos e tudo e que as adaptações são rápidas. Nem tanto… Claro que partir
com a intenção de conseguir “bagagem” para a realização de um sonho de vida é
motivação mais do que suficiente para nos dispormos e nos expormos ao que vier.
A descoberta de novos horizontes, de
novas culturas e de novas pessoas dá-nos sempre um frenesim que faz aumentar os
nossos níveis de adrenalina. Gosto da fase. Da descoberta, da revelação, da
imaginação. Quando tudo é novo e de tão distante que parecia, percebemos que
afinal o virar da esquina até fica logo ali, e por mais longínquo que seja o
teu paradeiro, o mundo continua a girar, apesar de a paisagem ser outra, de as
casas terem outras configurações, de os monumentos escreverem outras histórias,
ou de as pessoas falarem línguas diferentes. Quando aqui cheguei com duas
mochilas às costas e um saco de mão, foi para mim o descobrir de um novo mundo
e de uma nova realidade que apenas conhecia da televisão, dos jornais e das
revistas que ia comprando sempre que me sobravam uns tostões. Não vinha com
quarto marcado, nem tão pouco conhecia o sistema de transportes. As primeiras
noites passei-as naquilo a que chamamos pensão, numas águas furtadas de um edifício
algo decadente, mas num bairro que me pareceu simpático e com gente gira. O quarto era exíguo, com uma cama de solteiro
e uma cadeira, sendo a casa de banho partilhada entre todos os seis quartos do
piso. Vantagem: o preço incluía um bom pequeno-almoço inglês que já ajudava a
suportar metade do dia. Na manhã
imediata à chegada dirigi-me à Escola para fazer a inscrição, saber horários
e perante eles, aferir da possibilidade
de arranjar trabalho por perto, por forma a conseguir ter uma vida minimamente
equilibrada, não sobrecarregando o orçamento mensal dos meus pais, que embora
me tivessem apoiado na decisão, me fizeram ver que estar fora de casa e do
país, seria um peso acrescido na sua folha de encargos, e que como tal, todos
os gastos teriam que ser milimetricamente
estudados. Descansei-os ao afirmar que não era minha intenção partir em
busca de um sonho e assumir que suportassem a totalidade dos custos inerentes.
Que iria arranjar trabalho, fosse onde fosse. As aulas começavam dentro de dez
dias. A senhora que me acolheu na Escola foi de uma simpatia extrema e fez-me
uma visita guiada que me deslumbrou, apresentando-me a professores que por lá
circulavam, a funcionários, e referindo-se a mim como o promissor Português.
Perguntei-lhe o porquê, ao que disse ter sido ela a analisar a minha
candidatura e desde logo lhe ter chamado a atenção. Não posso dizer que não me
envaideci um pouco… mas rapidamente desci à terra. Seria o meu primeiro ano
numa Escola totalmente diferente, com metodologia, professores, matérias,
colegas, e tudo o mais, diferente do que estava acostumado. Poderia correr bem,
poderia correr menos bem…
Nessa mesma tarde comecei a
procurar trabalho nas redondezas. Nada fácil… se o trabalho me aliciava, os
horários não eram compatíveis; se conseguia encaixar as aulas, eram trabalhos
que não tinham rigorosamente nada a ver comigo… Em simultâneo tentava encontrar
um quarto mais próximo, para não perder muito tempo nos transportes. Nesses
primeiros dias posso afirmar que fiquei a dominar toda aquela zona, tal a
quantidade de vezes que percorri as avenidas e ruas secundárias a pé, a bater
às portas ou a entrar por lojas, restaurantes e escritórios. Consegui um quarto
razoável, aí com uns vinte metros quadrados mas com casa de banho privativa, num
quarto andar sem elevador. Tinha ainda a possibilidade de cozinhar. Tinha boa
luminosidade, a mobília era bastante aceitável,
e embora o preço fosse um pouco mais alto do que tinha orçamentado, o
facto de poder deslocar-me a pé para a Escola, fazia toda a diferença. Além
disso, estava a gostar imenso daquele bairro e poder ter ali o meu dia a dia
agradava-me.
As aulas começaram sem que eu
tivesse arranjado trabalho. Uma preocupação que não me largava. Certo dia
estando eu a folhear a página de empregos de um jornal, fui interpelado pela
senhora que me acolheu na Escola. Ao dizer-lhe que procurava trabalho para
poder fazer face à minha permanência em Londres, mostrou um sorriso largo,
disse-me para a acompanhar e chegados ao seu gabinete fez um telefonema.
Percebi que existia uma vaga no centro de documentação de uma qualquer
entidade. Deu-me um nome e uma morada e disse-me a que horas deveria lá estar.
No regresso, de tão feliz que
estava e não sabendo como agradecer à minha “fada-madrinha”, comprei um enorme
ramo de flores, e entrei Escola adentro como se pisasse algodão. Não era apenas
o facto de me ter arranjado trabalho, era o facto de ser um trabalho “à minha
medida”. Poderia assim complementar a minha formação pessoal com outros
conhecimentos, pesquisas, e trabalhos a que tivesse acesso. Afinal somos um
todo que se completa e complementa nas várias vertentes do saber e do
conhecimento.
Um ano, dois anos, três anos… a
distância do país, da família e dos amigos cada vez me custava mais… Se o
entusiasmo inicial num país diferente foi para mim motivador e fonte de energia
para conciliar tudo, o certo é que o cansaço e algum desalento se foram
instalando. Como foi possível que em três anos o mundo tivesse mudado tanto?
Guerras, injustiças, egoísmo, interesses, tudo a desaguar para um mar de
dificuldades. Resiliência? Persistência? Nem sei o que dizer. Se calhar
chamo-lhe sobrevivência… Nunca pensei que fosse tão difícil sobreviver para
tentar concretizar um sonho, ainda por cima com um início algo facilitado…
Estava farto de noticiários, sempre iguais ou piores, estava farto da correria
das horas, quase sem tempo para mim, estava farto do barulho do trânsito, do
ruído dos cafés e dos restaurantes, e talvez, farto de mim.
Falta de companhia, diziam uns,
“tens que arranjar uma namorada”, diziam outros. O certo é que todos os
relacionamentos que fui tendo não passaram de aventuras passageiras, excepto
uma, que sendo de pouca duração, foi aquela que me “agarrou”.
Cruzámo-nos no corredor da
Escola. Ela nervosa e lacrimejante. Nunca tinha reparado naquela miúda.
Perguntei se precisava de ajuda e ofereci os meus préstimos. Uns olhos verde
cinza agradeceram-me, mas não. Era apenas um momento mau. Convidei-a a tomar
uma água. Acedeu. Após alguns minutos de silêncio, respirou fundo e agradeceu.
Reparei que falava com sotaque, talvez francês. Não me enganei. Marie, assim se
chamava era de Avignon, cidade da Provence. Para quebrar o gelo comecei a
cantar “Sur Le Pont d’Avignon” e ela esboçou um sorriso. Era linda, algo mística.
O nervoso e o choro deveram-se ao facto de ter sido assaltada a cerca de cem
metros da Escola e ter ficado sem documentos de identificação. De novo
ofereci-me para ajudar. Ao fim de três anos já sabia todas as voltas a dar.
Agradeceu-me. Depois da conversa banal
sobre a cidade à beira do Rhône, os monumentos, a beleza dos campos e das
povoações da Provence, fiquei a saber
que Marie tinha ganho uma bolsa de investigação que lhe permitia desenvolver um
trabalho em várias Escolas de vários países, estando agora em Londres. A
conversa fluíu. Era uma miúda extremamente inteligente, com rumo, que sabia o
que queria.
Escusado será dizer que nos fomos
aproximando cada vez mais e sempre que os nossos horários o permitiam
arranjávamos programa, fosse para descobrir recantos daquela cidade intensa,
fosse para simplesmente apanhar sol na relva de Hyde Park, para assistir a
espectáculos, ou apenas para estarmos juntos. Sentia-me bem na sua companhia. A
sua forma de estar era firme e devolvia-me alguma confiança entretanto
perdida. Marie começou a ser o meu chão,
o meu tecto, a minha âncora. Apesar de saber que a sua permanência em Londres
não seria igual à minha, e dentro de meses partiria para um outro país e para
uma outra Escola, evitava a todo o custo fazer futurologia e pensar na angústia
desse inevitável momento.
Percebi que para ela era também
uma espécie de porto de abrigo, embora não se detivesse muito em perguntas
sobre mim ou sobre a minha vida. Afinal ela sabia que estava de passagem.
Gostava que lhe falasse de músicas, de poesia, de cultura em geral e que
cantasse para ela. Disse-me um dia que a minha versão de “Sur Le Pont
d’Avignon” no dia que nos conhecemos, foi para ela sublime e um flash. Banal,
pensei… Da minha boca ouviu jazz, blues, pop, e teimei em dar-lhe a conhecer a
boa música portuguesa do momento. Ao som de Rui Veloso vimos se ainda havia
estrelas no céu, ou ao som dos GNR rebolámos como nas dunas, para logo o Pedro
Abrunhosa nos lembrar de viver o momento e o Jorge Palma em coro comigo pedir
para ela se encostar a mim.
Sempre que Marie não tinha
trabalhos muito específicos para fazer e que requeriam muita concentração,
ocupava comigo os vinte metros quadrados do quarto andar, e juntinhos
partilhávamos a cama, as noites feitas dia e os dias feitos noite, onde nos
amávamos sem destino, sem hora, mas com um querer e um prazer celestiais.
… Não sei se voltarei a rever
Marie. Corrói-me a vontade que tenho dela. A minha vida continua a perder
sentido.
Hoje, morto de saudades, afogo as
minhas angústias existenciais em ti,
caderno, fiel depositário dos meus pensamentos, das minhas paixões, das
minhas desilusões, das minhas raivas e das minhas tristezas. Tu és o guardião daquilo que a vida nos
oferece: num dia em cima, noutro dia em baixo.
Rui e Marie
Rui e Marie
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