quinta-feira, 5 de março de 2020

Dor do Passado

- Vou lá fora buscar lenha para colocar na lareira.  Queres que te arranje um chá ou alguma coisa para comer? Não jantaste nada de jeito.
Levantou os olhos do livro e olhou para Joana. “Não me apetece comer, mas se não te der muito trabalho aceito o chá. Desculpa ...” Desculpa era a palavra que com mais facilidade pronunciava nos últimos meses. Um sentimento que o deitava por terra tinha-o invadido há três anos ao sair do consultório do seu amigo Luís. Afinal, aquela teimosa alergia ou quiçá constipação, tinha contornos muito mais complicados do que tinha suposto. Não fora a inquestionável confiança que depositava em Luís, e a sua revolta teria emergido ali mesmo, sentado frente a uma mesa cheia de livros e de revistas médicas, que teve vontade de derrubar. Foi como se o mundo desabasse em cima de si. “Luís, tens a certeza do que me estás a dizer? Viste bem as análises? Não há nenhuma hipótese de os resultados estarem enganados? Não pode ser!!” Completamente desalinhado, esbracejava, gritava, transpirava. Joana tentava em vão acalmá-lo, também ela desfeita pela notícia, mas a manter algum sangue frio.
- Ouve Tó, sei quanto é difícil esta conversa, tanto para ti, como para mim. Não queria ser eu a dar-te esta notícia. És a última pessoa no mundo a quem eu queria falar sobre o resultado dos exames. Acredita. No entanto, enquanto médico e enquanto teu amigo, tenho a obrigação de nada te esconder, pois apenas a verdade sobre a tua doença e os tempos que aí vêm, poderá ajudar-te. Quero que saibas que estou contigo para o que necessitares e serei sempre a primeira pessoa a chegar perto de ti, mas tens que ter consciência que a vida para ti vai mudar, pois ficarás condicionado em alguns aspectos que falaremos depois.  Hoje apenas te peço que tentes manter a calma. Vou falar com dois colegas meus do hospital e amanhã passo em tua casa para conversarmos. Joana, sei que para ti também não é fácil e serás a pessoa mais próxima do Tó, mas também a que mais irá sofrer a vários níveis. Vocês têm uma relação linda e forte, e têm que se agarrar a ela com todas as vossas forças para irem superando as sucessivas etapas.  Sabes que estou convosco, contigo, sempre que necessites. Amanhã depois de conversar com o Tó, na tua presença, quero falar contigo a sós para te dar algumas orientações. Agora vão para casa e tentem descansar. Vamos arranjar a melhor forma para tratar a situação.
Tó não se conformava. Culpava-se pela irresponsabilidade de numa fase de “desencontro” emocional consigo próprio ter ido pelo caminho mais fácil, não se questionando, não se pondo sequer em causa, e não procurando ajuda. Aliás, acabada a Faculdade e tendo saído de casa dos pais após ter encontrado o seu primeiro emprego, deslumbrou-se com a “magia” de uma certa liberdade que não soube usar nem aproveitar, e que lhe granjeou dissabores. Trocou de emprego meses a fio, ora por atrasos sucessivos, ora por inadaptação, ora por rebeldia. Trocou de casa vezes sem conta, tendo sido “acolhido” por um antigo colega de Faculdade que o encontrou sentado numa praça e que nem queria acreditar que aquele Tó emagrecido, de olhar ausente e de poucas palavras, era o mesmo Tó simpático, sorridente, prestável, que com ele tinha estudado.
Foi muito difícil largar as drogas. Era a seringa que lhe apaziguava a ansiedade. Era a agulha a entrar pela veia que lhe dava o prazer de “viver” alucinadamente “feliz”.
João Carlos teve na recuperação de Tó um papel preponderante. Acolheu-o, ouviu-o, ajudou-o a refazer uma vida quase em retalhos. Com a ajuda de Luís, jovem médico com quem dividia o mesmo apartamento, conseguiu ajuda psicológica e tratamento para Tó. Em seguida, trabalho, não na sua área de formação, mas como voluntário numa associação. Foi um caminho penoso. Ante o medo do retrocesso e do fracasso, João Carlos e Luís auto-proclamaram-se uma espécie de tutores de Tó, e este deixava que eles lhe conduzissem o destino. Conseguia já discernir com alguma clareza o caminho “escuro” por onde andou perdido, e mostrava sinais de arrependimento e força de vontade para mudar. Um dia telefonou aos pais (não que estes não estivessem a par do que se passava, já que Luís os visitou e fez questão de os informar de toda a situação). Combinaram almoçar, mas não em casa. Tó não se sentia ainda digno de entrar na casa de família. O almoço havia de acontecer num pequeno restaurante próximo do jardim onde brincou em pequeno. Tinha necessidade de se “revisitar”, de fazer as pazes com um passado que o acarinhou mas que quase renegou. 

- Está aqui o chá. Queres que adoce? Trouxe-te um biscoito daqueles que a vizinha Ana nos deu. Vá lá, come…
Joana pousava a cesta da lenha no chão. A sensualidade dos seus movimentos desorientavam-no. Tinha vontade de a agarrar, de a sufocar com beijos, de fazer amor sofregamente, como tantas vezes se entregaram. Foram felizes. Muito felizes. Por vezes pensava o quão injusta era aquela situação para Joana. Não para ele, pois sentia-se irremediavelmente culpado pelo seu passado de drogas, de seringas trocadas,  da inevitabilidade da Sida, que o conduziram ao débil estado em que se encontrava. Amava-a cada vez mais. Os cuidados que tinha com ele, os sacrifícios para o assistir na doença, com todos os riscos inerentes, o distanciamento físico forçado. Joana era uma mulher, bela, sensual, e certamente teria sonhado com uma vida diferente aos quarenta anos. Por isso não se cansava de lhe pedir desculpa.
O lume voltou a crepitar. Joana aconchegou-lhe a manta e passou-lhe a mão pela testa, alinhando a madeixa de cabelo que pendia. “Amo-te meu anjo. Não mereces nada disto. Desculpa, desculpa...”
Joana sabia que Tó ia começar a ficar agitado. Era sempre assim.
- Respira fundo meu amor. Vou buscar o teu comprimido. Tem calma.
Tó transpirava, a respiração acelerou, parecia perder os sentidos. Estes episódios repetiam-se com mais frequência nos últimos dias. Luís tinha falado com Joana sobre o quadro clínico actual. Não havia muito mais a fazer. O organismo é que mandava. Não os paliativos.

Pareceu-lhe que Tó sorria, aquele sorriso franco, bonito, que a cativou no primeiro encontro. A cadência respiratória foi baixando. Ligou a Luís a pedir que viesse. Deu a mão a Tó, e assim se despediram.

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