Levantou os olhos do livro e
olhou para Joana. “Não me apetece comer, mas se não te der muito trabalho
aceito o chá. Desculpa ...” Desculpa era a palavra que com mais facilidade
pronunciava nos últimos meses. Um sentimento que o deitava por terra tinha-o invadido
há três anos ao sair do consultório do seu amigo Luís. Afinal, aquela teimosa
alergia ou quiçá constipação, tinha contornos muito mais complicados do que
tinha suposto. Não fora a inquestionável confiança que depositava em Luís, e a
sua revolta teria emergido ali mesmo, sentado frente a uma mesa cheia de livros
e de revistas médicas, que teve vontade de derrubar. Foi como se o mundo
desabasse em cima de si. “Luís, tens a certeza do que me estás a dizer? Viste
bem as análises? Não há nenhuma hipótese de os resultados estarem enganados?
Não pode ser!!” Completamente desalinhado, esbracejava, gritava, transpirava.
Joana tentava em vão acalmá-lo, também ela desfeita pela notícia, mas a manter
algum sangue frio.
- Ouve Tó, sei quanto é difícil
esta conversa, tanto para ti, como para mim. Não queria ser eu a dar-te esta
notícia. És a última pessoa no mundo a quem eu queria falar sobre o resultado
dos exames. Acredita. No entanto, enquanto médico e enquanto teu amigo, tenho a
obrigação de nada te esconder, pois apenas a verdade sobre a tua doença e os
tempos que aí vêm, poderá ajudar-te. Quero que saibas que estou contigo para o
que necessitares e serei sempre a primeira pessoa a chegar perto de ti, mas
tens que ter consciência que a vida para ti vai mudar, pois ficarás
condicionado em alguns aspectos que falaremos depois. Hoje apenas te peço que tentes manter a
calma. Vou falar com dois colegas meus do hospital e amanhã passo em tua casa
para conversarmos. Joana, sei que para ti também não é fácil e serás a pessoa
mais próxima do Tó, mas também a que mais irá sofrer a vários níveis. Vocês têm
uma relação linda e forte, e têm que se agarrar a ela com todas as vossas
forças para irem superando as sucessivas etapas. Sabes que estou convosco, contigo, sempre que
necessites. Amanhã depois de conversar com o Tó, na tua presença, quero falar
contigo a sós para te dar algumas orientações. Agora vão para casa e tentem
descansar. Vamos arranjar a melhor forma para tratar a situação.
Tó não se conformava. Culpava-se
pela irresponsabilidade de numa fase de “desencontro” emocional consigo próprio
ter ido pelo caminho mais fácil, não se questionando, não se pondo sequer em
causa, e não procurando ajuda. Aliás, acabada a Faculdade e tendo saído de casa
dos pais após ter encontrado o seu primeiro emprego, deslumbrou-se com a
“magia” de uma certa liberdade que não soube usar nem aproveitar, e que lhe
granjeou dissabores. Trocou de emprego meses a fio, ora por atrasos sucessivos,
ora por inadaptação, ora por rebeldia. Trocou de casa vezes sem conta, tendo
sido “acolhido” por um antigo colega de Faculdade que o encontrou sentado numa
praça e que nem queria acreditar que aquele Tó emagrecido, de olhar ausente e
de poucas palavras, era o mesmo Tó simpático, sorridente, prestável, que com
ele tinha estudado.
Foi muito difícil largar as
drogas. Era a seringa que lhe apaziguava a ansiedade. Era a agulha a entrar
pela veia que lhe dava o prazer de “viver” alucinadamente “feliz”.
João Carlos teve na recuperação
de Tó um papel preponderante. Acolheu-o, ouviu-o, ajudou-o a refazer uma vida
quase em retalhos. Com a ajuda de Luís, jovem médico com quem dividia o mesmo
apartamento, conseguiu ajuda psicológica e tratamento para Tó. Em seguida,
trabalho, não na sua área de formação, mas como voluntário numa associação. Foi
um caminho penoso. Ante o medo do retrocesso e do fracasso, João Carlos e Luís
auto-proclamaram-se uma espécie de tutores de Tó, e este deixava que eles lhe
conduzissem o destino. Conseguia já discernir com alguma clareza o caminho
“escuro” por onde andou perdido, e mostrava sinais de arrependimento e força de
vontade para mudar. Um dia telefonou aos pais (não que estes não estivessem a
par do que se passava, já que Luís os visitou e fez questão de os informar de
toda a situação). Combinaram almoçar, mas não em casa. Tó não se sentia ainda
digno de entrar na casa de família. O almoço havia de acontecer num pequeno
restaurante próximo do jardim onde brincou em pequeno. Tinha necessidade de se
“revisitar”, de fazer as pazes com um passado que o acarinhou mas que quase
renegou.
- Está aqui o chá. Queres que
adoce? Trouxe-te um biscoito daqueles que a vizinha Ana nos deu. Vá lá, come…
Joana pousava a cesta da lenha no
chão. A sensualidade dos seus movimentos desorientavam-no. Tinha vontade de a
agarrar, de a sufocar com beijos, de fazer amor sofregamente, como tantas vezes
se entregaram. Foram felizes. Muito felizes. Por vezes pensava o quão injusta
era aquela situação para Joana. Não para ele, pois sentia-se irremediavelmente
culpado pelo seu passado de drogas, de seringas trocadas, da inevitabilidade da Sida, que o conduziram
ao débil estado em que se encontrava. Amava-a cada vez mais. Os cuidados que
tinha com ele, os sacrifícios para o assistir na doença, com todos os riscos inerentes,
o distanciamento físico forçado. Joana era uma mulher, bela, sensual, e certamente
teria sonhado com uma vida diferente aos quarenta anos. Por isso não se cansava
de lhe pedir desculpa.
O lume voltou a crepitar. Joana
aconchegou-lhe a manta e passou-lhe a mão pela testa, alinhando a madeixa de
cabelo que pendia. “Amo-te meu anjo. Não mereces nada disto. Desculpa,
desculpa...”
Joana sabia que Tó ia começar a
ficar agitado. Era sempre assim.
- Respira fundo meu amor. Vou
buscar o teu comprimido. Tem calma.
Tó transpirava, a respiração
acelerou, parecia perder os sentidos. Estes episódios repetiam-se com mais
frequência nos últimos dias. Luís tinha falado com Joana sobre o quadro clínico
actual. Não havia muito mais a fazer. O organismo é que mandava. Não os
paliativos.
Pareceu-lhe que Tó sorria, aquele
sorriso franco, bonito, que a cativou no primeiro encontro. A cadência
respiratória foi baixando. Ligou a Luís a pedir que viesse. Deu a mão a Tó, e
assim se despediram.
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