Sentei-me no chão e abri a caixa
coberta de pó. Discos de vinyl, emblemas, bases de copos dos vários bares que
frequentávamos, revistas, recortes de jornais, fotografias, isqueiros,
cassetes, até cordas de guitarras e baquetas de bateria. Lentamente fui pegando
nos objectos e recordando os locais, os cheiros, os momentos, as pessoas…
Detive-me numa fotografia e foi como se recuasse no tempo. A minha grande
paixão estava ali, na palma da minha mão. Não foi a primeira, mas foi a que
mais me marcou. A mais desafiante, poderosa e enigmática. A que me fez sentir
tanto o mais desgraçado dos seres, como a pessoa mais desejada ao cimo da
terra. Foi intensa a nossa história.
Via-a com alguma regularidade na
Rua de Santa Catarina. Achei que residia por ali e um dia segui-a à distância.
Entrou num prédio de esquina, três andares e águas furtadas. Moraria ali? Sorte
a minha se conseguisse vê-la entrar ou sair mais vezes. Seria certo que ali
morava. Durante um mês fiz o mesmo percurso em hora aproximada e nada… nem
sinal dela. O certo é que o seu andar e o seu rosto não me deixavam sossegar.
Como era um assunto meu que não queria partilhar com os amigos, comecei a
pensar numa estratégia para descobrir quem era aquela sereia em terra e se
naquele edifício de Santa Catarina seria a sua residência. Não me dando a
conhecer, podia telefonar para todos os apartamentos daquele prédio e perguntar
por ela. Com um pouco de sorte até seria ela a atender o telefone… Decidido, depois de ensaiar o meu discurso de
“tanga” para as informações, liguei e pedi à operadora se poderia fazer o
especial favor de me facultar todos os números de telefone das residências do
prédio 166 da Rua de Santa Catarina. Não foi fácil… Improvisei uma história
sobre uma pessoa de família a necessitar de cuidados, e por fim lá a convenci.
Yes! Eufórico pelo meu feito, comecei a ensaiar a abordagem telefónica. Não
tinha a mínima noção de quem iria encontrar do outro lado da linha. Novos,
velhos, homens, mulheres, ela...ou não … Nervoso mas com determinação lá
comecei o meu périplo telefónico. Nenhuma chamada teve sucesso até que uma
senhora com voz de 80 anos, muito possivelmente a viver sozinha, mas
perfeitamente lúcida, após a minha interpelação e algumas trocas de palavras me
perguntou directamente se procurava alguém em particular. Balbuciei algumas
frases e ao perceber que ela não desistia abri o jogo: disse quem procurava,
mas desconhecia o nome e se de facto residiria naquele prédio. Fiquei a saber
que sim. Que habitava no terceiro andar há menos de um ano, e que era uma rapariga muito educada e
moderna. Daquelas que fumavam, ouviam música alta, fazia festas com os amigos
em casa e por vezes chegava muito tarde. Tinha um carro que só tirava do
estacionamento quando saía acompanhada. Uau… tanta informação… comecei a
imaginá-la no tipo de vivência que a vizinha “cusca” me descrevia… curioso …
agradeci à senhora as informações, e por exclusão de partes, seria o penúltimo
número que tinha apontado. Como reagiria ela? Que iria dizer-lhe ao certo? Corria
sérios riscos de ser gozado, desprezado, de fazer papel de parvo, mas já era
impossível parar. Voz rouca mas
decidida interpelou-me do outro lado. Quem era eu, como tinha conseguido o
número, o que queria dela, que sim, acedia a tomar um café, talvez ali mesmo no
Magestic, ou se preferisse junto ao mar, na Foz… A minha cabeça ferveu, o meu
peito saltava, o suor corria. Sim, tinha conseguido falar com a minha musa e
ela tinha aceite tomar um café… Não estava nada mal… Encontrámo-nos no Magestic,
pela proximidade. Seria a primeira de muitas vezes que por ali passávamos ou permanecíamos a conversar sem
nos darmos conta do tempo passar. Era alta, elegante e o seu corpo serpenteava
na rua. Vi-a caminhar enquanto já sentado bebia uma água, e achei-a uma mulher
fascinante, algo misteriosa, algo determinada, mas daquelas que nos enebriam os
sentidos e nos toldam o raciocínio. Levantei-me para me dar a conhecer e a
cumprimentar. Fitou-me com uns olhos verdes penetrantes, e de repente senti-me completamente indefeso. Como se
tivesse entrado no meu corpo e no meu
espírito. Consegui não perder a compostura e ajeitei a cadeira para que se
sentasse. Apressadamente disse-me que afinal preferia tomar o café junto ao
mar. Que iríamos no seu carro, estacionado ali próximo. O dia estava bonito, o
sol brilhava num céu azul e o mar é sempre uma paisagem tranquilizante e
inspiradora. Não poderia recusar. A minha curiosidade aumentava
proporcionalmente ao meu fascínio. Que pedaço de mulher! Desenvolta, bonita,
com presença, a saber conversar. Parecia-me um sonho. Com os vidros do carro
abertos, o cabelo esvoaçava e não posso dizer que não me provocava um bocadinho
de excitação. Fixava-lhe os gestos, bebia-lhe as palavras. Estava literalmente
nas mãos dela. Foi um dia alucinante e determinante na minha vida. Daí em
diante só conseguia pensar nela. Só queria estar com ela, mas os nossos
encontros eram cadenciados. Dizia viajar muito, gostar de conhecer culturas,
pessoas, lugares, e no relato das suas viagens conseguia transpor-me para essas
paragens que também me fascinavam. Ia e vinha sem aviso prévio. É certo que não
existiam telemóveis, e que estar a ligar de cabines era um risco, pois ou havia
hora marcada para que um de nós estivesse em casa, ou nos desencontrávamos.
Também era certo que a nossa relação apesar de intensa era descomprometida,
sobretudo para ela. Amava tanto a liberdade, como eu a amava a ela. Era assim
uma espécie de supremo. Não me atrevia sequer a questionar as suas decisões com
medo de a perder. Ela era já parte de mim. Nada a fazer. Não posso dizer que
estas deambulações e inconstâncias não me provocavam sofrimento. Sofria,
calado, quieto no meu mundo, sozinho no meio das multidões na rua, nas
discotecas, nos bares. Num desses dias, sem esperar dei de caras com ela a
fitar-me com aquele olhar penetrante que me deixava perfeitamente perturbado.
Que vontade de a agarrar, fugir dali e
entregar-mo-nos como se fossemos um só, numa paixão avassaladora, quase
animalesca. Foi ela a dar o sinal. Tirou-me o copo, pousou-o no balcão, deu-me
a mão e corremos até ao carro, que qual etapa de rally, rolava pela marginal,
para parar justamente ao lado do nr 166 da Rua de Santa Catarina. Foi nessa
madrugada que acreditámos verdadeiramente na nossa paixão e naquilo que nos unia,
física, cultural e intelectualmente.
Esta mulher tinha-me transformado, tinha-me conquistado como nenhuma
antes, e sim, era com ela que queria estar, para o que a vida nos reservasse.
- As caixas que estavam na sala
já estão todas carregadas. Podemos começar a levar algumas daqui lá para baixo?
Credo. Estava de tal forma
absorto nos pensamentos e nas recordações, que a viagem pela minha paixão fez
com que me esquecesse que a empresa de mudanças estava a arrumar as caixas já
embaladas, e os móveis que iria levar para a aldeia.
Coloquei a caixa no banco do
pendura, e ajeitei a foto no tampo.
Seria a minha companhia nos sessenta minutos de caminho até à aldeia.
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