quinta-feira, 12 de março de 2020

Retrato de uma Paixão

Não fora a mudança de casa e  não teria sequer encontrado aquele pedaço da minha vida, de tão encafuado que estava nas pilhas de caixas em prateleiras que tinha no sótão. Ah… se este sótão falasse teria histórias imensas para contar, talvez até matéria para uma mini-série. Teimosamente fui guardando tudo o que achei que sempre me iria ligar à vida, naqueles quase cem metros quadrados que eram o fascínio do meu grupo de amigos. Era por assim dizer o nosso refúgio. Lá passávamos horas a fio, a conversar, a compor, a escrever, a tocar, a jogar, ou em clima de maior intimidade, a namorar. Muitos foram os que por lá passaram, e muitos lá deixaram recordações que fui apaixonadamente coleccionando e arrumando, até a vida se encarregar de me fazer passar uns tempos fora do país. Regressado, instalei-me na casa da aldeia, e apenas fugazmente visitava a minha casa de família. Estava fria e vazia de vida. Os móveis e todo o recheio permaneciam intocáveis desde o falecimento dos meus pais. Era doloroso regressar àquela casa onde cada recanto era para mim uma agradável recordação. Procrastinava as decisões a tomar em relação ao meu verdadeiro lar, mas sabia que o dia iria chegar. Precipitou-se quando tive que optar entre a casa da aldeia e a casa da cidade. Era impossível manter duas casas. Se por um lado a tranquilidade e qualidade de vida da aldeia faziam já parte de mim, por outro lado, equacionar a venda da casa que me viu nascer, era como se fosse amputado de uma parte do meu ser. Surgiu-me então uma oportunidade de negócio, não pela venda, mas pela reabilitação e arrendamento do imóvel. Pareceu-me interessante, embora toda a logística relativamente ao recheio fosse para mim uma tarefa do outro mundo. Deixei o sótão para o fim. O meu sótão, o meu canto.
Sentei-me no chão e abri a caixa coberta de pó. Discos de vinyl, emblemas, bases de copos dos vários bares que frequentávamos, revistas, recortes de jornais, fotografias, isqueiros, cassetes, até cordas de guitarras e baquetas de bateria. Lentamente fui pegando nos objectos e recordando os locais, os cheiros, os momentos, as pessoas… Detive-me numa fotografia e foi como se recuasse no tempo. A minha grande paixão estava ali, na palma da minha mão. Não foi a primeira, mas foi a que mais me marcou. A mais desafiante, poderosa e enigmática. A que me fez sentir tanto o mais desgraçado dos seres, como a pessoa mais desejada ao cimo da terra. Foi intensa a nossa história.
Via-a com alguma regularidade na Rua de Santa Catarina. Achei que residia por ali e um dia segui-a à distância. Entrou num prédio de esquina, três andares e águas furtadas. Moraria ali? Sorte a minha se conseguisse vê-la entrar ou sair mais vezes. Seria certo que ali morava. Durante um mês fiz o mesmo percurso em hora aproximada e nada… nem sinal dela. O certo é que o seu andar e o seu rosto não me deixavam sossegar. Como era um assunto meu que não queria partilhar com os amigos, comecei a pensar numa estratégia para descobrir quem era aquela sereia em terra e se naquele edifício de Santa Catarina seria a sua residência. Não me dando a conhecer, podia telefonar para todos os apartamentos daquele prédio e perguntar por ela. Com um pouco de sorte até seria ela a atender o telefone…  Decidido, depois de ensaiar o meu discurso de “tanga” para as informações, liguei e pedi à operadora se poderia fazer o especial favor de me facultar todos os números de telefone das residências do prédio 166 da Rua de Santa Catarina. Não foi fácil… Improvisei uma história sobre uma pessoa de família a necessitar de cuidados, e por fim lá a convenci. Yes! Eufórico pelo meu feito, comecei a ensaiar a abordagem telefónica. Não tinha a mínima noção de quem iria encontrar do outro lado da linha. Novos, velhos, homens, mulheres, ela...ou não … Nervoso mas com determinação lá comecei o meu périplo telefónico. Nenhuma chamada teve sucesso até que uma senhora com voz de 80 anos, muito possivelmente a viver sozinha, mas perfeitamente lúcida, após a minha interpelação e algumas trocas de palavras me perguntou directamente se procurava alguém em particular. Balbuciei algumas frases e ao perceber que ela não desistia abri o jogo: disse quem procurava, mas desconhecia o nome e se de facto residiria naquele prédio. Fiquei a saber que sim. Que habitava no terceiro andar há menos de um ano,  e que era uma rapariga muito educada e moderna. Daquelas que fumavam, ouviam música alta, fazia festas com os amigos em casa e por vezes chegava muito tarde. Tinha um carro que só tirava do estacionamento quando saía acompanhada. Uau… tanta informação… comecei a imaginá-la no tipo de vivência que a vizinha “cusca” me descrevia… curioso … agradeci à senhora as informações, e por exclusão de partes, seria o penúltimo número que tinha apontado. Como reagiria ela? Que iria dizer-lhe ao certo? Corria sérios riscos de ser gozado, desprezado, de fazer papel de parvo, mas já era impossível parar.     Voz rouca mas decidida interpelou-me do outro lado. Quem era eu, como tinha conseguido o número, o que queria dela, que sim, acedia a tomar um café, talvez ali mesmo no Magestic, ou se preferisse junto ao mar, na Foz… A minha cabeça ferveu, o meu peito saltava, o suor corria. Sim, tinha conseguido falar com a minha musa e ela tinha aceite tomar um café… Não estava nada mal… Encontrámo-nos no Magestic, pela proximidade. Seria a primeira de muitas vezes que por ali  passávamos ou permanecíamos a conversar sem nos darmos conta do tempo passar. Era alta, elegante e o seu corpo serpenteava na rua. Vi-a caminhar enquanto já sentado bebia uma água, e achei-a uma mulher fascinante, algo misteriosa, algo determinada, mas daquelas que nos enebriam os sentidos e nos toldam o raciocínio. Levantei-me para me dar a conhecer e a cumprimentar. Fitou-me com uns olhos verdes penetrantes, e de repente  senti-me completamente indefeso. Como se tivesse entrado  no meu corpo e no meu espírito. Consegui não perder a compostura e ajeitei a cadeira para que se sentasse. Apressadamente disse-me que afinal preferia tomar o café junto ao mar. Que iríamos no seu carro, estacionado ali próximo. O dia estava bonito, o sol brilhava num céu azul e o mar é sempre uma paisagem tranquilizante e inspiradora. Não poderia recusar. A minha curiosidade aumentava proporcionalmente ao meu fascínio. Que pedaço de mulher! Desenvolta, bonita, com presença, a saber conversar. Parecia-me um sonho. Com os vidros do carro abertos, o cabelo esvoaçava e não posso dizer que não me provocava um bocadinho de excitação. Fixava-lhe os gestos, bebia-lhe as palavras. Estava literalmente nas mãos dela. Foi um dia alucinante e determinante na minha vida. Daí em diante só conseguia pensar nela. Só queria estar com ela, mas os nossos encontros eram cadenciados. Dizia viajar muito, gostar de conhecer culturas, pessoas, lugares, e no relato das suas viagens conseguia transpor-me para essas paragens que também me fascinavam. Ia e vinha sem aviso prévio. É certo que não existiam telemóveis, e que estar a ligar de cabines era um risco, pois ou havia hora marcada para que um de nós estivesse em casa, ou nos desencontrávamos. Também era certo que a nossa relação apesar de intensa era descomprometida, sobretudo para ela. Amava tanto a liberdade, como eu a amava a ela. Era assim uma espécie de supremo. Não me atrevia sequer a questionar as suas decisões com medo de a perder. Ela era já parte de mim. Nada a fazer. Não posso dizer que estas deambulações e inconstâncias não me provocavam sofrimento. Sofria, calado, quieto no meu mundo, sozinho no meio das multidões na rua, nas discotecas, nos bares. Num desses dias, sem esperar dei de caras com ela a fitar-me com aquele olhar penetrante que me deixava perfeitamente perturbado. Que vontade de a agarrar,  fugir dali e entregar-mo-nos como se fossemos um só, numa paixão avassaladora, quase animalesca. Foi ela a dar o sinal. Tirou-me o copo, pousou-o no balcão, deu-me a mão e corremos até ao carro, que qual etapa de rally, rolava pela marginal, para parar justamente ao lado do nr 166 da Rua de Santa Catarina. Foi nessa madrugada que acreditámos verdadeiramente na nossa paixão e naquilo que nos unia, física, cultural e intelectualmente.  Esta mulher tinha-me transformado, tinha-me conquistado como nenhuma antes, e sim, era com ela que queria estar, para o que a vida nos reservasse.
- As caixas que estavam na sala já estão todas carregadas. Podemos começar a levar algumas daqui lá para baixo?
Credo. Estava de tal forma absorto nos pensamentos e nas recordações, que a viagem pela minha paixão fez com que me esquecesse que a empresa de mudanças estava a arrumar as caixas já embaladas, e os móveis que iria levar para a aldeia.

Coloquei a caixa no banco do pendura, e ajeitei a foto no tampo.  Seria a minha companhia nos sessenta minutos de caminho até à aldeia.

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