De facto tinha terminado aqueles
cinco anos completamente esgotado. Queria afastar-me do peso das sebentas, das
matérias que os professores debitavam nas aulas, da pressão das frequências e
dos exames. Cumpri o que havia prometido aos meus pais: fazer o curso de uma
assentada, sem reprovações, sem cadeiras em atraso e com uma média que me
permitisse entrar com um certo à vontade no mercado de trabalho. Era a forma
que tinha de lhes agradecer e reconhecer todo o esforço financeiro que fizeram
para que no seu entender, me tornasse um homem, formado, culto e habilitado
para a vida. Não eram tempos fáceis e a minha família, classe média, quatro
filhos, deparava-se com dificuldades acrescidas fruto da instabilidade governamental
e orçamental do país. Enquanto filho
mais velho senti a responsabilidade de corresponder às expectativas, não
prejudicando os meus irmãos mais novos, que seguiriam para a Faculdade com uma
cadência de 3 anos cada. No penúltimo
ano arranjei um trabalho em part-time numa Fundação ligada à cultura e por lá
permaneci até ao final do curso. Confesso que este trabalho teve em mim uma influência
enorme. No que realmente gostava, no que gostaria de conhecer, e no abrir de
horizontes. Sentia-me bem a desempenhar o meu trabalho e tinha a grande
vantagem de conjugar conhecimento com um ordenado que não sendo chorudo, me
permitia algumas poupanças para o tal tempo sabático que começava a delinear-se
no horizonte.
Mal podia esperar pelo resultado
dos dois últimos exames e telefonar para casa a informar que tinha concluído
com sucesso a minha formação académica. Sentia-me cansado da rotina que eu
próprio criara. Casa, Faculdade, Biblioteca, Fundação, Biblioteca, casa. Quase
sem tempo para conviver com os colegas, ir ao cinema, a um bar, ou simplesmente
sentar-me numa esplanada sem fazer nada. Sendo perfeccionista, levei ao extremo
quer o meu dever de filho, quer o de aluno, ou o de funcionário.
Acordei com fortes batidas na
porta do quarto. Ainda meio atordoado levantei-me e fui ver o que se passava.
As pautas dos exames já estavam afixadas. Alguém tinha telefonado para casa a
avisar e os meus companheiros de apartamento davam largas à alegria. Todos
tínhamos, naquela manhã, escrito mais um capítulo das nossas vidas. Uma enorme
sensação de alívio, uma felicidade imensa e uma vontade de gritar ao mundo!
Escusado será dizer que passámos o resto do dia a festejar das mais variadas
formas, com tudo a que tínhamos direito – almoço, bebida, praia, bares, miúdas.
Os meus pais emocionaram-se tanto, que por entre as felicitações conseguia
percebê-los lacrimejantes. Os meus irmãos apareceram de surpresa, vindos no
expresso e juntaram-se à festa.
No final do dia seguinte arrumei
duas malas no carro comprado num stand de usados, mas em estado muito razoável
e rumei a casa, levando comigo os meus irmãos que mal se tinham acomodado para
descansar umas horas no apartamento que dividia com os meus colegas. Foi tão
bom este regresso a casa… o calor da família, do lar, o cheiro da vila, as
cores dos campos, os monumentos que antes me eram indiferentes. Nos dias
subsequentes, dei por mim com uma enorme vontade de viajar. A Faculdade já não
me prendia, e podia pedir um tempo de licença na Fundação. Afinal, todo o
conhecimento e contactos que fui adquirindo no trabalho despertaram-me para
outras realidades, outras culturas e outros países. Nada me prendia. Nem
namorada tinha no momento, e estava ainda a ressacar de uma desilusão amorosa
que me tirou muitas noites de sono. As poupanças que tinha feito suportariam os
meus gastos durante um bom tempo e se fosse necessário trabalharia pontualmente
em troca de alojamento ou comida.
Ao volante do meu carro em
segunda mão sentia-me livre. Precisava dessa liberdade para respirar, para
tentar encontrar-me e para comigo falar. Era nessa liberdade que iria decidir o
meu caminho futuro. Enquanto esperei pela emissão do passaporte, fui-me
organizando e comprando o que considerei mais útil - mapas de estradas de vários países da Europa,
um caderno, uma geleira tamanho xxl, um fogão camping gaz, uma lanterna, uma
tenda e um saco cama. Uff… já tinha a bagageira cheia. Sorte viajar sozinho e
poder aproveitar o banco de trás ou rebatê-lo.
A manhã estava soalheira e a
temperatura amena. Era um bom prenúncio para começar o meu périplo. Em três
horas estava em Espanha. Sem horas marcadas e sem rumo definido, deixei-me
levar ao sabor da estrada.
Indescritíveis os dias, as
experiências, as pessoas, os lugares. Formas de vida tão díspares, culturas tão
diversas e tão enraizadas. Cruzei países e cidades diferentes, trabalhei em
restaurantes e cafés, visitei os locais mais incríveis e mais recônditos,
deixei-me enebriar por luzes e néons, matei a solidão em bares, amei em várias
línguas, saltei refeições, mas apesar de
algumas dificuldades, a cada dia
desafiava-me mais. Quando telefonava para casa para dar e saber notícias, os
meus pais perguntavam se estava quase a regressar. Respondia sempre com
evasivas. Que não sabia ainda. A verdade é que queria ir sempre mais longe numa
espécie de fuga ou na ânsia da descoberta. Era como se a estrada não tivesse
fim, como se não existissem fronteiras e levado pelo desafio, se me abrisse o
privilégio de um novo caminho. Tinha já explorado toda a Europa ocidental e
teimava em perceber o que se passava no leste. Com alguma dificuldade, mas com
uma conversa que já fluía em mim e um à vontade evidente, lá fui conseguindo
transpor várias fronteiras. Era de facto um mundo diferente. Mais fechado mas
onde saltava aos olhos uma cultura extremamente enraizada e defendida por
todos. Olhos desconfiados observavam os estrangeiros, analisando-lhes cada
movimento. Se por um lado a minha liberdade de ser, de estar e de pensar estava
bem presente em mim, por outro lado, senti-me em parte amputado dessa mesma
liberdade ao vivenciar aquelas paragens. Não ficaria por lá senão o tempo
suficiente para conhecer e perceber.
Tinham já passado oito meses.
Como me sentia outra pessoa … A solidão faz-nos reflectir e crescer. As
dificuldades fazem-nos relativizar tantas outras coisas e valorizar as que
realmente o merecem. Conhecer outros povos dá-nos uma perspectiva global da
nossa pequenez individual, e torna-nos mais solidários. Conviver com séculos de
culturas diferentes abre-nos o caminho para o pensamento, para a tolerância e
para valorizarmos a história e as estórias dos nossos antepassados e
convivermos melhor com o presente, porque o conseguimos dissecar e em parte
compreender, o que não significa, contudo, que o aceitemos passivamente.
Fosse na Polónia, na Hungria, em
Itália, França ou Inglaterra, o denominador comum são as pessoas, enquanto
fazedoras das sociedades e dos valores que as regem.
Determinado, regressei outra pessoa, deixando por lá os
fantasmas e as inseguranças do passado. As minhas indecisões esvaíram-se
num qualquer vento norte. Nos motéis
ficaram noites de prazer fugaz depois de uns copos bebidos nos bares mais
diversos onde a música oscilava entre o rock
e o pop, e onde à força do fumo dos cigarros ou dos charros, mal conseguia
distinguir as feições daquela que nessa noite seria a minha deusa.
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