quinta-feira, 19 de março de 2020

A Estrada e o Seu Sentido

Imaginei-me a escrever um guião, tipo diário,  que pudesse relatar o tempo sabático que decidi dar-me o direito após a conclusão da Faculdade. Tarefa inglória. A minha desorganização mental não me permitia momentos de pausa com tranquilidade para colocar por escrito tudo aquilo que experienciava e vivia. Ia fazendo rabiscos em folhas soltas que guardava numa capa cartonada, onde ia acumulando também alguns dos meus “troféus” de viagem. Talvez um dia mais tarde conseguisse organizá-los e dar-lhes uma sequência lógica.

De facto tinha terminado aqueles cinco anos completamente esgotado. Queria afastar-me do peso das sebentas, das matérias que os professores debitavam nas aulas, da pressão das frequências e dos exames. Cumpri o que havia prometido aos meus pais: fazer o curso de uma assentada, sem reprovações, sem cadeiras em atraso e com uma média que me permitisse entrar com um certo à vontade no mercado de trabalho. Era a forma que tinha de lhes agradecer e reconhecer todo o esforço financeiro que fizeram para que no seu entender, me tornasse um homem, formado, culto e habilitado para a vida. Não eram tempos fáceis e a minha família, classe média, quatro filhos, deparava-se com dificuldades acrescidas fruto da instabilidade governamental e orçamental do país.  Enquanto filho mais velho senti a responsabilidade de corresponder às expectativas, não prejudicando os meus irmãos mais novos, que seguiriam para a Faculdade com uma cadência de 3 anos cada.  No penúltimo ano arranjei um trabalho em part-time numa Fundação ligada à cultura e por lá permaneci até ao final do curso. Confesso que este trabalho teve em mim uma influência enorme. No que realmente gostava, no que gostaria de conhecer, e no abrir de horizontes. Sentia-me bem a desempenhar o meu trabalho e tinha a grande vantagem de conjugar conhecimento com um ordenado que não sendo chorudo, me permitia algumas poupanças para o tal tempo sabático que começava a delinear-se no horizonte.
Mal podia esperar pelo resultado dos dois últimos exames e telefonar para casa a informar que tinha concluído com sucesso a minha formação académica. Sentia-me cansado da rotina que eu próprio criara. Casa, Faculdade, Biblioteca, Fundação, Biblioteca, casa. Quase sem tempo para conviver com os colegas, ir ao cinema, a um bar, ou simplesmente sentar-me numa esplanada sem fazer nada. Sendo perfeccionista, levei ao extremo quer o meu dever de filho, quer o de aluno, ou o de funcionário.
Acordei com fortes batidas na porta do quarto. Ainda meio atordoado levantei-me e fui ver o que se passava. As pautas dos exames já estavam afixadas. Alguém tinha telefonado para casa a avisar e os meus companheiros de apartamento davam largas à alegria. Todos tínhamos, naquela manhã, escrito mais um capítulo das nossas vidas. Uma enorme sensação de alívio, uma felicidade imensa e uma vontade de gritar ao mundo! Escusado será dizer que passámos o resto do dia a festejar das mais variadas formas, com tudo a que tínhamos direito – almoço, bebida, praia, bares, miúdas. Os meus pais emocionaram-se tanto, que por entre as felicitações conseguia percebê-los lacrimejantes. Os meus irmãos apareceram de surpresa, vindos no expresso e juntaram-se à festa.
No final do dia seguinte arrumei duas malas no carro comprado num stand de usados, mas em estado muito razoável e rumei a casa, levando comigo os meus irmãos que mal se tinham acomodado para descansar umas horas no apartamento que dividia com os meus colegas. Foi tão bom este regresso a casa… o calor da família, do lar, o cheiro da vila, as cores dos campos, os monumentos que antes me eram indiferentes. Nos dias subsequentes, dei por mim com uma enorme vontade de viajar. A Faculdade já não me prendia, e podia pedir um tempo de licença na Fundação. Afinal, todo o conhecimento e contactos que fui adquirindo no trabalho despertaram-me para outras realidades, outras culturas e outros países. Nada me prendia. Nem namorada tinha no momento, e estava ainda a ressacar de uma desilusão amorosa que me tirou muitas noites de sono. As poupanças que tinha feito suportariam os meus gastos durante um bom tempo e se fosse necessário trabalharia pontualmente em troca de alojamento ou comida.
Ao volante do meu carro em segunda mão sentia-me livre. Precisava dessa liberdade para respirar, para tentar encontrar-me e para comigo falar. Era nessa liberdade que iria decidir o meu caminho futuro. Enquanto esperei pela emissão do passaporte, fui-me organizando e comprando o que considerei mais útil -  mapas de estradas de vários países da Europa, um caderno, uma geleira tamanho xxl, um fogão camping gaz, uma lanterna, uma tenda e um saco cama. Uff… já tinha a bagageira cheia. Sorte viajar sozinho e poder aproveitar o banco de trás ou rebatê-lo.
A manhã estava soalheira e a temperatura amena. Era um bom prenúncio para começar o meu périplo. Em três horas estava em Espanha. Sem horas marcadas e sem rumo definido, deixei-me levar ao sabor da estrada.
Indescritíveis os dias, as experiências, as pessoas, os lugares. Formas de vida tão díspares, culturas tão diversas e tão enraizadas. Cruzei países e cidades diferentes, trabalhei em restaurantes e cafés, visitei os locais mais incríveis e mais recônditos, deixei-me enebriar por luzes e néons, matei a solidão em bares, amei em várias línguas,  saltei refeições, mas apesar de algumas dificuldades,   a cada dia desafiava-me mais. Quando telefonava para casa para dar e saber notícias, os meus pais perguntavam se estava quase a regressar. Respondia sempre com evasivas. Que não sabia ainda. A verdade é que queria ir sempre mais longe numa espécie de fuga ou na ânsia da descoberta. Era como se a estrada não tivesse fim, como se não existissem fronteiras e levado pelo desafio, se me abrisse o privilégio de um novo caminho. Tinha já explorado toda a Europa ocidental e teimava em perceber o que se passava no leste. Com alguma dificuldade, mas com uma conversa que já fluía em mim e um à vontade evidente, lá fui conseguindo transpor várias fronteiras. Era de facto um mundo diferente. Mais fechado mas onde saltava aos olhos uma cultura extremamente enraizada e defendida por todos. Olhos desconfiados observavam os estrangeiros, analisando-lhes cada movimento. Se por um lado a minha liberdade de ser, de estar e de pensar estava bem presente em mim, por outro lado, senti-me em parte amputado dessa mesma liberdade ao vivenciar aquelas paragens. Não ficaria por lá senão o tempo suficiente para conhecer e perceber.
Tinham já passado oito meses. Como me sentia outra pessoa … A solidão faz-nos reflectir e crescer. As dificuldades fazem-nos relativizar tantas outras coisas e valorizar as que realmente o merecem. Conhecer outros povos dá-nos uma perspectiva global da nossa pequenez individual, e torna-nos mais solidários. Conviver com séculos de culturas diferentes abre-nos o caminho para o pensamento, para a tolerância e para valorizarmos a história e as estórias dos nossos antepassados e convivermos melhor com o presente, porque o conseguimos dissecar e em parte compreender, o que não significa, contudo, que o aceitemos passivamente.
Fosse na Polónia, na Hungria, em Itália, França ou Inglaterra, o denominador comum são as pessoas, enquanto fazedoras das sociedades e dos valores que as regem.
Determinado,  regressei outra pessoa, deixando por lá os fantasmas e as inseguranças do passado. As minhas indecisões esvaíram-se num  qualquer vento norte. Nos motéis ficaram noites de prazer fugaz depois de uns copos bebidos nos bares mais diversos onde a música oscilava entre o  rock e o pop, e onde à força do fumo dos cigarros ou dos charros, mal conseguia distinguir as feições daquela que nessa noite seria a minha deusa.

Hoje, ao entrar na Biblioteca da Fundação, não posso esconder um misto de alegria e de orgulho. Finalmente consegui colocar em livro e numa sequência lógica e com sentido, todo o conteúdo difuso e rabiscado nas folhas de papel que guardava na capa cartonada. A sala já estava composta. Familiares, amigos, colegas de trabalho e alguns rostos para mim desconhecidos. Ia começar a sessão de apresentação do meu primeiro livro “A Estrada e o Seu Sentido”

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