O tão desejado fim de semana
tinha chegado. Qual adolescente, andou toda a semana ansiosa e pensativa. Nada
poderia falhar nos planos que Ana e Carlos tinham feito. Programado, estudado
ao milímetro, seria a primeiro fim de semana do resto das suas vidas. Pelo
menos assim pensavam.
Quando Ana estacionou o carro no
parque do hotel, já Carlos havia chegado há algum tempo e tinha pedido na
recepção que lhes servissem o jantar no quarto. Carlos era detentor de um bom
gosto extremo, experiente e uma pessoa tão doce quanto misteriosa. Talvez
tivesse sido esse ar de mistério que desafiou e atraíu Ana. Licenciada em psicologia social, adorava
estudar as pessoas, perceber o seu lado não visível e esse trabalho que
inconsciente e involuntariamente desenvolvia, transpunha-o para papel, criando as personagens que davam vida às
histórias que semanalmente publicava no jornal da terra.
Conheceram-se numa apresentação
literária. Carlos, fora convidado para participar. Ana acompanhava uma amiga,
prima do autor. “Gosto da forma como aquele sujeito fala acerca do livro do teu
primo”. - É o Carlos. Amigo de infância
e uma pessoa com uma cultura acima da média. Ouvi-lo é um prazer. Consegue
fazer fluír o discurso e prende-nos a atenção a cada detalhe. No final
apresento-to.
Mal sabia Ana o desfecho daquela
tarde… Após a cerimónia de apresentação, feitos os cumprimentos e dados os
autógrafos da praxe, houve direito a brinde e uma pequena celebração, onde Ana
e Carlos foram apresentados. Se mais
palavras tivessem sido inventadas, mais eles teriam falado. Uma cumplicidade
que mais fazia pensar que se conheciam de uma vida inteira, apesar do ar
sempre reservado de Carlos. Era um homem
charmoso, com uma voz doce e pausada, mas algo distante. Era do tipo que não deixava transparecer tudo
no primeiro encontro. Ana ficou curiosa.
Uma pessoa absolutamente interessante.
- Meninas, combinei jantar com o
Carlos para comemorarmos o lançamento do livro que mais luta me deu a escrever.
Acompanham-nos? - Ana e a amiga
entreolharam-se. Ainda tinham que fazer a viagem de regresso a casa, e a noite
estava chuvosa. Umas duas horas de caminho. - Primo, não leves a mal, mas temos
que voltar hoje para casa. Não programámos ficar cá e além disso amanhã tenho
que dar explicações a uns meninos que vão ter teste.
- A sério que estás a dizer que
não nos vão dar o prazer da vossa companhia? Carlos, uma nega destas é
inadmissível, ainda por cima num dia como o de hoje, não achas? - Concordo
contigo. Deixa ver se os meus dotes de persuasão funcionam: embora sabendo que
estas simpáticas jovens ainda têm que percorrer muitos quilómetros para que
descansem no conforto dos seus quartos, estes dois seres menos jovens, mas
apreciadores da vossa companhia e da vossa conversa, teriam o enorme prazer de
as convidar para jantar num local que possa simbolizar o início de uma nova
amizade e assim em conjunto celebrarmos o extraordinário trabalho hoje
publicamente apresentado pelo meu querido amigo António, primo de V.Exa.
Gargalhadas. - Obviamente que ficamos para jantar!
No regresso, já de madrugada, Ana
sentia uma explosão. Não era do vinho que tinha bebido ao jantar, nem do Gin de
frutos vermelhos que tomou no bar junto ao rio. Era um misto de excitação,
agitação e uma sensação leve e boa que lhe fazia borbulhar o cérebro. Era o
chamado efeito Carlos.
Daí para a frente os telefonemas
sucederam-se, escreveram mails, quais cartas do tempo dos seus pais,
encontraram-se sempre que se proporcionou uma deslocação ou um evento, e a sua
proximidade era cada vez maior, embora duas horas de distância os separassem.
Ana, como a maior parte das mulheres, lidava com a situação de forma muito mais
clean do que Carlos, já que tinha uma vida extremamente ocupada
profissionalmente, e colaborava como voluntária em alguns projectos culturais
desenvolvidos por agentes da terra. Na sua rotina diária não lhe sobravam mais
do que duas ou três horas livres. Já Carlos, menos conformista, muito senhor de
si, insistia para que Ana aliviasse as tarefas por forma a que pudessem
usufruir de mais tempo juntos.
- Bem vinda! Não imaginas o
quanto estou feliz por teres conseguido organizar-te e teres vindo. - Enquanto
Carlos a obsequiava com as boas vindas, Ana olhava em redor, sem palavras. A
suite espaçosa, abria-se ao mar através de uma enorme janela e de um terraço
adjacente. As suas flores preferidas numa jarra (lírios do campo). Pétalas
variadas populavam sobre os dois sofás, sobre a cama e sobre a bancada da casa
de banho. A luz intermitente era de velas, espalhadas por toda a suite e pelo
terraço. Numa mesa um frappé com champanhe e frutos. Jamais tinha vivido um
momento assim. Carlos adivinhava-lhe o pensamento e antes que Ana pudesse dizer
algo, agarrou-a e com a sua boca colada na dela, não deixou que saísse uma
única palavra.
- Shhhh…. Não precisas dizer
nada. É por ti e para ti. A vida não pode ser só trabalho e luta. Tu mereces
mais. Mereces viver e usufruír os bons momentos que a vida te possa
proporcionar.
Ana deixou-se transportar,
levemente, para um mundo que não tinha ainda conhecido. Entregou-se de corpo e
alma àquela pessoa sensível, misteriosa, que lhe desafiava o sentimento mais
escondido e a fazia sentir amada e mulher de verdade. Não queria pensar se tudo
não iria passar de uma aventura, se a
ânsia de liberdade de Carlos lhe iria trazer dissabores, se, se, se…. Para ela
o que contava era aquele momento.
O jantar extremamente bem
confeccionado acompanhado por um vinho frisante gelado, convidou a um passeio
ao ar livre. Caminharam pela praia já noite alta. Excepcionalmente o mar da
Ericeira estava calmo, embora frio. Na noite apenas se ouvia o seu murmúrio e a
respiração de Ana e Carlos. Que paz, que tranquilidade. Vontade de fazer o
tempo parar e abraçar o mundo.
Na manhã seguinte Ana custou a
despertar. Sentia-se bem naquele lazer entrelaçado e preguiçoso, onde os seus
corpos dormiam e acordavam para se amarem de forma tão profunda quão
irracional.
- O teu telefone está a tocar.
Não atendes? - Já atendo. Prefiro olhar-te do que atender o telefone. Este
nosso momento é único. O teu olhar e o teu cheiro são únicos. O telefone não fica rouco… que se lixe o
telefone.
Carlos tinha um olhar
estranhamente fixo em Ana. Parecia querer reter todos os pormenores do seu
corpo, qual pintor ou escultor, a memorizar o seu modelo. Com um toque suave
percorreu-a por inteiro, excitando-a e
fazendo-a transbordar de prazer.
Novamente o telefone a quebrar a
languidez. Um beijo profundo antes de atender.
… - Está certo. Dento de duas
horas estarei na redacção e vamos juntos para o aeroporto. Até logo. - Assim
terminou o telefonema. Carlos tinha que partir em trabalho. Fora chamado para
fazer a cobertura dos atentados dessa noite. Ele sabia-o. Por isso deixou o
telefone tocar sem que atendesse…
Ana permaneceu no quarto até ao
por do sol. Recordou cada momento vivido. Percebeu o mistério que envolvia a
vida de Carlos e percebeu que uma relação mais séria seria difícil de manter. A
vida profissional dele tinha que ser livre de compromissos terceiros. A vida
pessoal era evidentemente um reflexo da profissional. Sem sítio certo, a correr
o mundo atrás das notícias, a dar a conhecer a sua imensa experiência em
palestras e apresentações literárias, a fazer da sua vida um mundo visto aos
seus olhos.
Arrumou as coisas e depois de um
passeio sozinha na praia, regressou a casa. Amada, mas não conformada. Na área
de serviços da autoestrada, enquanto comia uma sopa, reconheceu uma voz. Olhou
para a TV, e lá estava Carlos, despenteado, mal dormido, mas com um extremo
profissionalismo. “És um tipo demasiado bom para seres verdade”, pensou. “Como gostaria de ver o mundo com os teus
olhos... “. Entrou no carro e ao
seleccionar o CD para ouvir recordou-se da frase:
“Amo/ amas a liberdade, por isso deixo/ deixas
as coisas que amo/ amas, livres. Se voltarem, foi porque as
conquistei/conquistaste.” - John Lennon
Ana e Carlos
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