quinta-feira, 7 de maio de 2020

Olhar solitário


O tão desejado fim de semana tinha chegado. Qual adolescente, andou toda a semana ansiosa e pensativa. Nada poderia falhar nos planos que Ana e Carlos tinham feito. Programado, estudado ao milímetro, seria a primeiro fim de semana do resto das suas vidas. Pelo menos assim pensavam.
Quando Ana estacionou o carro no parque do hotel, já Carlos havia chegado há algum tempo e tinha pedido na recepção que lhes servissem o jantar no quarto. Carlos era detentor de um bom gosto extremo, experiente e uma pessoa tão doce quanto misteriosa. Talvez tivesse sido esse ar de mistério que desafiou e atraíu Ana.  Licenciada em psicologia social, adorava estudar as pessoas, perceber o seu lado não visível e esse trabalho que inconsciente e involuntariamente desenvolvia, transpunha-o para papel,  criando as personagens que davam vida às histórias que semanalmente publicava no jornal da terra. 
Conheceram-se numa apresentação literária. Carlos, fora convidado para participar. Ana acompanhava uma amiga, prima do autor. “Gosto da forma como aquele sujeito fala acerca do livro do teu primo”.  - É o Carlos. Amigo de infância e uma pessoa com uma cultura acima da média. Ouvi-lo é um prazer. Consegue fazer fluír o discurso e prende-nos a atenção a cada detalhe. No final apresento-to.
Mal sabia Ana o desfecho daquela tarde… Após a cerimónia de apresentação, feitos os cumprimentos e dados os autógrafos da praxe, houve direito a brinde e uma pequena celebração, onde Ana e Carlos foram apresentados.  Se mais palavras tivessem sido inventadas, mais eles teriam falado. Uma cumplicidade que mais fazia pensar que se conheciam de uma vida inteira, apesar do ar sempre  reservado de Carlos. Era um homem charmoso, com uma voz doce e pausada, mas algo distante.  Era do tipo que não deixava transparecer tudo no primeiro encontro.  Ana ficou curiosa. Uma pessoa absolutamente interessante.
- Meninas, combinei jantar com o Carlos para comemorarmos o lançamento do livro que mais luta me deu a escrever. Acompanham-nos? -  Ana e a amiga entreolharam-se. Ainda tinham que fazer a viagem de regresso a casa, e a noite estava chuvosa. Umas duas horas de caminho. - Primo, não leves a mal, mas temos que voltar hoje para casa. Não programámos ficar cá e além disso amanhã tenho que dar explicações a uns meninos que vão ter teste.
- A sério que estás a dizer que não nos vão dar o prazer da vossa companhia? Carlos, uma nega destas é inadmissível, ainda por cima num dia como o de hoje, não achas? - Concordo contigo. Deixa ver se os meus dotes de persuasão funcionam: embora sabendo que estas simpáticas jovens ainda têm que percorrer muitos quilómetros para que descansem no conforto dos seus quartos, estes dois seres menos jovens, mas apreciadores da vossa companhia e da vossa conversa, teriam o enorme prazer de as convidar para jantar num local que possa simbolizar o início de uma nova amizade e assim em conjunto celebrarmos o extraordinário trabalho hoje publicamente apresentado pelo meu querido amigo António, primo de V.Exa.
Gargalhadas.  - Obviamente que ficamos para jantar!
No regresso, já de madrugada, Ana sentia uma explosão. Não era do vinho que tinha bebido ao jantar, nem do Gin de frutos vermelhos que tomou no bar junto ao rio. Era um misto de excitação, agitação e uma sensação leve e boa que lhe fazia borbulhar o cérebro. Era o chamado efeito Carlos.
Daí para a frente os telefonemas sucederam-se, escreveram mails, quais cartas do tempo dos seus pais, encontraram-se sempre que se proporcionou uma deslocação ou um evento, e a sua proximidade era cada vez maior, embora duas horas de distância os separassem. Ana, como a maior parte das mulheres, lidava com a situação de forma muito mais clean do que Carlos, já que tinha uma vida extremamente ocupada profissionalmente, e colaborava como voluntária em alguns projectos culturais desenvolvidos por agentes da terra. Na sua rotina diária não lhe sobravam mais do que duas ou três horas livres. Já Carlos, menos conformista, muito senhor de si, insistia para que Ana aliviasse as tarefas por forma a que pudessem usufruir de mais tempo juntos.
- Bem vinda! Não imaginas o quanto estou feliz por teres conseguido organizar-te e teres vindo. - Enquanto Carlos a obsequiava com as boas vindas, Ana olhava em redor, sem palavras. A suite espaçosa, abria-se ao mar através de uma enorme janela e de um terraço adjacente. As suas flores preferidas numa jarra (lírios do campo). Pétalas variadas populavam sobre os dois sofás, sobre a cama e sobre a bancada da casa de banho. A luz intermitente era de velas, espalhadas por toda a suite e pelo terraço. Numa mesa um frappé com champanhe e frutos. Jamais tinha vivido um momento assim. Carlos adivinhava-lhe o pensamento e antes que Ana pudesse dizer algo, agarrou-a e com a sua boca colada na dela, não deixou que saísse uma única palavra.
- Shhhh…. Não precisas dizer nada. É por ti e para ti. A vida não pode ser só trabalho e luta. Tu mereces mais. Mereces viver e usufruír os bons momentos que a vida te possa proporcionar.
Ana deixou-se transportar, levemente, para um mundo que não tinha ainda conhecido. Entregou-se de corpo e alma àquela pessoa sensível, misteriosa, que lhe desafiava o sentimento mais escondido e a fazia sentir amada e mulher de verdade. Não queria pensar se tudo não iria passar de uma aventura, se  a ânsia de liberdade de Carlos lhe iria trazer dissabores, se, se, se…. Para ela o que contava era aquele momento.
O jantar extremamente bem confeccionado acompanhado por um vinho frisante gelado, convidou a um passeio ao ar livre. Caminharam pela praia já noite alta. Excepcionalmente o mar da Ericeira estava calmo, embora frio. Na noite apenas se ouvia o seu murmúrio e a respiração de Ana e Carlos. Que paz, que tranquilidade. Vontade de fazer o tempo parar e abraçar o mundo.
Na manhã seguinte Ana custou a despertar. Sentia-se bem naquele lazer entrelaçado e preguiçoso, onde os seus corpos dormiam e acordavam para se amarem de forma tão profunda quão irracional.
- O teu telefone está a tocar. Não atendes? - Já atendo. Prefiro olhar-te do que atender o telefone. Este nosso momento é único. O teu olhar e o teu cheiro são únicos.  O telefone não fica rouco… que se lixe o telefone.
Carlos tinha um olhar estranhamente fixo em Ana. Parecia querer reter todos os pormenores do seu corpo, qual pintor ou escultor, a memorizar o seu modelo. Com um toque suave percorreu-a por inteiro, excitando-a e  fazendo-a transbordar de prazer.
Novamente o telefone a quebrar a languidez. Um beijo profundo antes de atender.
… - Está certo. Dento de duas horas estarei na redacção e vamos juntos para o aeroporto. Até logo. - Assim terminou o telefonema. Carlos tinha que partir em trabalho. Fora chamado para fazer a cobertura dos atentados dessa noite. Ele sabia-o. Por isso deixou o telefone tocar sem que atendesse…
Ana permaneceu no quarto até ao por do sol. Recordou cada momento vivido. Percebeu o mistério que envolvia a vida de Carlos e percebeu que uma relação mais séria seria difícil de manter. A vida profissional dele tinha que ser livre de compromissos terceiros. A vida pessoal era evidentemente um reflexo da profissional. Sem sítio certo, a correr o mundo atrás das notícias, a dar a conhecer a sua imensa experiência em palestras e apresentações literárias, a fazer da sua vida um mundo visto aos seus olhos.
Arrumou as coisas e depois de um passeio sozinha na praia, regressou a casa. Amada, mas não conformada. Na área de serviços da autoestrada, enquanto comia uma sopa, reconheceu uma voz. Olhou para a TV, e lá estava Carlos, despenteado, mal dormido, mas com um extremo profissionalismo. “És um tipo demasiado bom para seres verdade”, pensou.  “Como gostaria de ver o mundo com os teus olhos...  “. Entrou no carro e ao seleccionar o CD para ouvir recordou-se da frase:
 “Amo/ amas a liberdade, por isso deixo/ deixas as coisas que amo/ amas, livres. Se voltarem, foi porque as conquistei/conquistaste.” - John Lennon
Ana e Carlos

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