- Correu bem a sessão de hoje? -
Confrange-me ver a expressão de angústia e ansiedade espelhada no rosto da
minha mãe. Sinto-me culpado do seu sofrimento que considero injusto. Ela, que
sempre me apoiou, me fez ver os caminhos, me ajudou em todos os momentos
difíceis, já para não falar das noites sem dormir, das privações, do colocar-me
sempre acima de tudo na sua vida. Se por acaso existirem deusas, então a minha
mãe será uma delas.
- Mais ou menos, mamã … correu ….
- Nem sei como responder por forma a tornar a sua preocupação e angústia,
menores. - Correu bem, sim! Só podia correr bem! - Consegui balbuciar, mais
afirmativo e convincente.
- Tens a certeza filho? O Doutor
disse mais alguma coisa que te aliviasse?
- Mamã, o Doutor para já tem que
me ouvir. Vai falando algumas coisas, mas sabes que estas situações são
demoradas… Vai correr tudo bem, vais ver. Dá cá uma beijoca e se quiseres fazer
um sumo ao teu filho enquanto ele toma um duche, estás à vontade! - Em tom de graça, tento distraí-la do
assunto. Sei que a acompanhar o sumo virá uma outra qualquer iguaria que às
suas mãos, faria as delícias de qualquer mortal e que durante alguns minutos a
sua atenção estará concentrada na preparação do miminho.
Sempre soube que os assuntos do
foro psicológico são difíceis de ultrapassar, pois não existe medicação química
que cure maleitas sentimentais, existenciais ou psicológicas. É preciso que a
interacção entre o doente e o médico funcione e que exista empatia e
disponibilidade para procurar a cura. O Prof. João tinha-me sido aconselhado
por uma amiga da minha mãe, pessoa com grande conhecimento das patologias
psicossomáticas. Após ter recusado tratamento por diversas vezes, a conversa
com a D. Luísa Almeida numa tarde ensolarada, no terraço de nossa casa, pareceu
fazer-me sentido e acedi a procurar ajuda. De facto, eu estava uma sombra de
mim, um farrapo humano, enquanto a minha mãe definhava de preocupação e
apreensão. Não podia fazer-lhe mal muito mais tempo. Ela não merecia.
Cumpri a terceira sessão com o
tal Prof. João, psicoterapeuta, tendo estabelecido de início, com ele, a condição de nada lhe ocultar, mas em cuja
terapêutica não entraria a acção de químicos. Tinha horror a comprimidos, ou
outra qualquer forma de medicação. Ele acedeu, não de muito bom grado, mas
percebendo a minha determinação. Fiquei-lhe grato. Dizia eu que cumpri hoje a
minha terceira sessão de psicoterapia. Ao caminhar para o consultório tentava
encontrar uma forma de encaixar as ideias por forma a fluírem quando lá
chegasse. Em vão. Uma espécie de maldição tolda-me o raciocínio quando avivo a
memória em relação àquela que me prendeu. Sim, porque de uma prisão se trata.
Sinto-me preso e refém de um corpo que me enebriou pelo sexo. Perdi o normal
sentido das coisas, sabendo apenas que aquela mulher, feiticeira por certo, me
tinha lançado a maior das macumbas… Conheci-a num bar numa noite de aventura
com amigos. Já bebidos e pouco lúcidos, perdemo-nos nos prazeres carnais com as
raparigas contratadas para nos fazerem felizes, a troco de uns cobres e uns
copos… Dançava com outras duas colegas de métier num palco meio escurecido, mas
que deixava perceber os seus contornos, perfeitos. Estatura mediana, cabelo
apanhado de lado e um fato suficientemente ousado para que conseguisse
perceber-lhe o peito latejante e as pernas que rodopiavam em torno de um banco.
De ficar sem respiração… Lembro-me de ter acordado num quarto em tons lilás,
cheio de quadros e espelhos. Perdido e completamente rendido. Ela olhava-me
recostada num cadeirão, nua e a desafiar-me. Colocou um cd e começou a dançar
na minha frente, depois às voltas pelo quarto, e por fim, em cima da cama.
Maldição, sim maldição de mulher que me acorrentou por dentro e durante muitos
meses não me deixou pensar em mais nada do que no sexo que fazíamos a qualquer
hora, de qualquer forma, fosse qual fosse o nosso estado de espírito. Tudo
parava e tudo girava. Comecei a chegar atrasado ao trabalho, acabando por ser
despedido. Não querendo que a minha mãe desconfiasse, ia arranjando desculpas
para os dias que saía de casa mais tarde. Por fim, acabei por dizer que tinha
mudado de emprego e que os horários eram flexíveis. Claro está que mal punha o
pé na rua, o caminho era só um. O do quarto lilás, e o do sexo. Sem trabalho,
precisava de dinheiro para manter a vida que tinha e para satisfazer caprichos
daquela que haveria de quase me levar à loucura. Comecei por vender uma
colecção de relógios que o meu avô me tinha dado. Devia ter batido com a cabeça
naquele dia… Imperdoável. De seguida, vendi um conjunto de canetas de aparo com
banho de ouro que a minha avó me oferecera no dia em que concluí a
licenciatura. E por aí adiante, até que a minha mãe começou a dar por falta de
coisas e me questionou. Reagi mal, como reagem todos os cobardes que não
conseguem assumir os seus erros. Estava cego. Completamente cego por uma fulana
que se apoderava da minha alma, do meu corpo e dos meus bens, a troco de
prazer. Prazer que me desorientava completamente. Comecei a refugiar-me na
bebida para afogar o sentimento de culpa e a incapacidade de varrer aquela
mulher da minha vida. Tornei-me uma pessoa diferente. Agressivo,
revoltado, miserável. Um dia ao chegar
ao quarto lilás tinha um bilhete: “ Não me procures mais. Foi bom enquanto
durou, mas o que quero não é um homem bêbado e sem recursos. A minha vida
seguiu outro caminho. Adeus.”
Julguei enlouquecer. Li e reli o
bilhete. Não podia ser. Como era possível que a musa dos meus dias e das minhas
noites me tivesse deixado? Eu, que só pensava nela, que lhe dei o que tinha e o
que não tinha? Eu, que me perdia nas nossas horas de jogos carnais e que sabia
satisfazê-la tão bem? Eu… miserável, fraco, obcecado….
Os tempos seguintes foram de tal
forma horrorosos que hoje sinto remorsos profundos do sofrimento que causei à
minha querida mãe. Ela sim, a verdadeira musa da minha vida. Ela que sofreu em
silêncio durante todos aqueles meses, a ver-me afundar, mas pacientemente
tentando manter um comando, ainda que remoto, sobre uma situação degradante.
Cumpri hoje a terceira sessão com
o Prof. João. Tem sido bom falar, desabafar e procurar não só as causas, mas
perceber o efeito e o caminho a seguir. Não me repreende. Não me condena. Não
faz juízos. Apenas ajuda. E isso é tanto…
Francisco
Francisco
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