quinta-feira, 21 de maio de 2020

Musas, ou talvez não...


- Correu bem a sessão de hoje? - Confrange-me ver a expressão de angústia e ansiedade espelhada no rosto da minha mãe. Sinto-me culpado do seu sofrimento que considero injusto. Ela, que sempre me apoiou, me fez ver os caminhos, me ajudou em todos os momentos difíceis, já para não falar das noites sem dormir, das privações, do colocar-me sempre acima de tudo na sua vida. Se por acaso existirem deusas, então a minha mãe será uma delas.
- Mais ou menos, mamã … correu …. - Nem sei como responder por forma a tornar a sua preocupação e angústia, menores. - Correu bem, sim! Só podia correr bem! - Consegui balbuciar, mais afirmativo e convincente.
- Tens a certeza filho? O Doutor disse mais alguma coisa que te aliviasse?
- Mamã, o Doutor para já tem que me ouvir. Vai falando algumas coisas, mas sabes que estas situações são demoradas… Vai correr tudo bem, vais ver. Dá cá uma beijoca e se quiseres fazer um sumo ao teu filho enquanto ele toma um duche, estás à vontade!  - Em tom de graça, tento distraí-la do assunto. Sei que a acompanhar o sumo virá uma outra qualquer iguaria que às suas mãos, faria as delícias de qualquer mortal e que durante alguns minutos a sua atenção estará concentrada na preparação do miminho.
Sempre soube que os assuntos do foro psicológico são difíceis de ultrapassar, pois não existe medicação química que cure maleitas sentimentais, existenciais ou psicológicas. É preciso que a interacção entre o doente e o médico funcione e que exista empatia e disponibilidade para procurar a cura. O Prof. João tinha-me sido aconselhado por uma amiga da minha mãe, pessoa com grande conhecimento das patologias psicossomáticas. Após ter recusado tratamento por diversas vezes, a conversa com a D. Luísa Almeida numa tarde ensolarada, no terraço de nossa casa, pareceu fazer-me sentido e acedi a procurar ajuda. De facto, eu estava uma sombra de mim, um farrapo humano, enquanto a minha mãe definhava de preocupação e apreensão. Não podia fazer-lhe mal muito mais tempo. Ela não merecia.
Cumpri a terceira sessão com o tal Prof. João, psicoterapeuta, tendo estabelecido de início, com ele,  a condição de nada lhe ocultar, mas em cuja terapêutica não entraria a acção de químicos. Tinha horror a comprimidos, ou outra qualquer forma de medicação. Ele acedeu, não de muito bom grado, mas percebendo a minha determinação. Fiquei-lhe grato. Dizia eu que cumpri hoje a minha terceira sessão de psicoterapia. Ao caminhar para o consultório tentava encontrar uma forma de encaixar as ideias por forma a fluírem quando lá chegasse. Em vão. Uma espécie de maldição tolda-me o raciocínio quando avivo a memória em relação àquela que me prendeu. Sim, porque de uma prisão se trata. Sinto-me preso e refém de um corpo que me enebriou pelo sexo. Perdi o normal sentido das coisas, sabendo apenas que aquela mulher, feiticeira por certo, me tinha lançado a maior das macumbas… Conheci-a num bar numa noite de aventura com amigos. Já bebidos e pouco lúcidos, perdemo-nos nos prazeres carnais com as raparigas contratadas para nos fazerem felizes, a troco de uns cobres e uns copos… Dançava com outras duas colegas de métier num palco meio escurecido, mas que deixava perceber os seus contornos, perfeitos. Estatura mediana, cabelo apanhado de lado e um fato suficientemente ousado para que conseguisse perceber-lhe o peito latejante e as pernas que rodopiavam em torno de um banco. De ficar sem respiração… Lembro-me de ter acordado num quarto em tons lilás, cheio de quadros e espelhos. Perdido e completamente rendido. Ela olhava-me recostada num cadeirão, nua e a desafiar-me. Colocou um cd e começou a dançar na minha frente, depois às voltas pelo quarto, e por fim, em cima da cama. Maldição, sim maldição de mulher que me acorrentou por dentro e durante muitos meses não me deixou pensar em mais nada do que no sexo que fazíamos a qualquer hora, de qualquer forma, fosse qual fosse o nosso estado de espírito. Tudo parava e tudo girava. Comecei a chegar atrasado ao trabalho, acabando por ser despedido. Não querendo que a minha mãe desconfiasse, ia arranjando desculpas para os dias que saía de casa mais tarde. Por fim, acabei por dizer que tinha mudado de emprego e que os horários eram flexíveis. Claro está que mal punha o pé na rua, o caminho era só um. O do quarto lilás, e o do sexo. Sem trabalho, precisava de dinheiro para manter a vida que tinha e para satisfazer caprichos daquela que haveria de quase me levar à loucura. Comecei por vender uma colecção de relógios que o meu avô me tinha dado. Devia ter batido com a cabeça naquele dia… Imperdoável. De seguida, vendi um conjunto de canetas de aparo com banho de ouro que a minha avó me oferecera no dia em que concluí a licenciatura. E por aí adiante, até que a minha mãe começou a dar por falta de coisas e me questionou. Reagi mal, como reagem todos os cobardes que não conseguem assumir os seus erros. Estava cego. Completamente cego por uma fulana que se apoderava da minha alma, do meu corpo e dos meus bens, a troco de prazer. Prazer que me desorientava completamente. Comecei a refugiar-me na bebida para afogar o sentimento de culpa e a incapacidade de varrer aquela mulher da minha vida. Tornei-me uma pessoa diferente. Agressivo, revoltado,  miserável. Um dia ao chegar ao quarto lilás tinha um bilhete: “ Não me procures mais. Foi bom enquanto durou, mas o que quero não é um homem bêbado e sem recursos. A minha vida seguiu outro caminho. Adeus.”
Julguei enlouquecer. Li e reli o bilhete. Não podia ser. Como era possível que a musa dos meus dias e das minhas noites me tivesse deixado? Eu, que só pensava nela, que lhe dei o que tinha e o que não tinha? Eu, que me perdia nas nossas horas de jogos carnais e que sabia satisfazê-la tão bem? Eu… miserável, fraco, obcecado….
Os tempos seguintes foram de tal forma horrorosos que hoje sinto remorsos profundos do sofrimento que causei à minha querida mãe. Ela sim, a verdadeira musa da minha vida. Ela que sofreu em silêncio durante todos aqueles meses, a ver-me afundar, mas pacientemente tentando manter um comando, ainda que remoto, sobre uma situação degradante.
Cumpri hoje a terceira sessão com o Prof. João. Tem sido bom falar, desabafar e procurar não só as causas, mas perceber o efeito e o caminho a seguir. Não me repreende. Não me condena. Não faz juízos. Apenas ajuda. E isso é tanto…
Francisco

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