quinta-feira, 28 de maio de 2020

A Máquina do Tempo


- É engraçado como os ciclos da vida nos remetem para os mesmos lugares e muitas vezes para as mesmas pessoas e circunstâncias. Lembras-te da primeira vez que almoçámos neste sítio maravilhoso?
- Sim, lembro-me bem. Estava um dia de sol de inverno, frio, mas com uma luminosidade incrível. O rio estava calmo, debruado pelos choupos, imponentes e verdejantes e nas margens começavam a despontar as mesmas plantas selvagens que estamos a ver, pintalgando o terreno. A mesa era exactamente esta. Apenas as louças e a toalha mudaram. A decoração interior e exterior permanece a mesma. Curioso, dá a ideia de que o tempo não passou por aqui. Apenas passou por nós.
- Tens razão. Depois de cinco anos, a paisagem e o ambiente são os mesmos. Espero que a cozinheira também. Era tão bom o arroz de garoupa… recordas-te?
- Ahahah, se me recordo! Foi por causa do arroz de garoupa e do vinho que pediste que me levaste à certa…
- Não foi nada! Estás a insinuar o quê?
- Não estou a insinuar nada. Apenas que o vinho branco que escolheste tinha demasiada graduação… e que, portanto, perdi um pouco o controle. Mas tudo bem. Com vinho ou sem vinho ia acontecer… e o que aconteceu foi bom. Tive saudades tuas quando partiste. Tantas … passei um mau bocado até perceber que tinha que te “libertar”. De facto, pensando à distância, apenas a inexperiência e o desconhecimento me poderiam ter convencido de que tinha encontrado a tal relação para toda a vida, de que a minha mãe e a minha avó falavam. Tretas ….
- Eu sei Madalena. Sei que não fui correcto contigo. Sei que te fiz sofrer. Sei que não mereço sequer o privilégio de podermos estar hoje de novo neste lugar que faz parte da história das nossas vidas. Sei que tinhas o direito de não me ter atendido o telefone. Sei que podias ter-me insultado e chamado todos os nomes que te viessem à cabeça. Sei inclusivamente que se algum pingo de amizade ou respeito restou entre nós, podia ter-se perdido irremediavelmente. Sei tudo isso, minha querida. Estás coberta de razão.
- Eu não quero ter razão, Manel. Mas de facto não foi nada fácil. A nossa relação não durou mais do que um ano, mas foi tão bonita, tão intensa, e tão cheia de coisas boas, que eu nunca quis ver a tua outra parte. Para mim eras o homem, o amigo, o companheiro, o professor, o padre até… sei lá… eras a minha metade que ajudou a crescer a outra metade e a dar-lhe vida. Hoje percebo-te. A tua necessidade de liberdade, de te desafiares, de sonhar e de fazer, não se coadunam com a relação que construímos. Sei que fui possessiva, desconfiada, mas era porque gostava de ti e me sentia insegura. Afinal não passava de uma miúda apaixonada pelo grande ser, tipo todo-o-mundo-pela-frente-para-fazer-acontecer-desbravar.
- Ouve Madalena, penso que em tempo algum duvidaste do bem que me fizeste, da paz que me deste, dos bons momentos que passámos juntos. Eu não me esqueço. E se entretanto corri mundo e a minha vida foi toda outra, quero que saibas que nunca me esqueci de ti. Prova disso? Estarmos aqui, agora.
Sabes que por vezes só damos valor a determinadas coisas quando estamos privados delas e depois de vivermos experiências que nos fazem pensar, reflectir, equacionar e re-equacionar.  Posso dizer-te com toda a certeza que estes anos para mim também não foram fáceis. Se por um lado cresci e me enriqueci interiormente, por outro lado, a constante necessidade de fuga provocou-me uma espécie de desequilíbio emocional que só com ajuda consegui superar e perceber porque e do que fugia, não me permitindo estabilizar num local ou numa relação. Mas esta conversa tê-la-emos mais tarde, se mo permitires. Agora prefiro falar de coisas mais agradáveis.
- Estás à vontade Manel. Não és obrigado a falar de nada que não queiras. De qualquer forma tens que perceber que só exorcizando o que nos faz mal, poderemos libertar-nos e dar-nos a oportunidade de sermos nós próprios e sermos felizes. Foi o teu mau estar que te levou a fugir sistematicamente. Fugiste de mim, de ti, da vida. Que trazes na bagagem? Experiência, sofrimento, talvez uma pessoa diferente e mais madura, acredito. Respeito-te e respeito os teus pontos de vista, mas acredita, que enquanto não fizeres o trabalho de casa todo, nunca irás ter a paz que desejas. Ou será, que por outro lado, precisas de não ter essa paz para te alimentares e alimentares os desafios que te colocas?
- Estou a gostar de te ouvir. Estás outra, apesar da expressão e do sorriso matreiro serem os mesmos. Esse teu sorriso sempre me desconcertou. Tão sincero, tão simples, tão teu…
- Manel, se tu engordaste a tua bagagem, eu também tratei da minha. Sabes que apesar de me teres deixado nitidamente na merda, consegui superar, muito pela via do pensamento, da reflexão e do colocar-me no lugar do outro. Acho que consegui fazer o tpc bem feito. Daí estar com esta tranquilidade e abertura a falar contigo. Sem remorsos. Sem dor.
- És uma querida. Acreditas que nos confins do mundo por onde andei, imaginava-te como minha companhia? Falava contigo em silêncio, ria e sofria a teu lado, e até ousei escrever páginas onde em linhas intercaladas, as minhas palavras cruzavam as tuas …. Só que depois vinha a realidade, a revolta, a frustração, a culpa, e logo em seguida a fuga.
- Ah… afinal andei por aí em viagem sem saber! Olha que bem! Tens que me dizer por onde andámos, para pelo menos enriquecer a minha cultura geral.
- Queres mesmo saber? Olha que alguns sítios não vais gostar de todo…, mas ok….
- Achas que não? Ui, então começo a ficar com medo…
- Não fiques. Estou tão feliz por estar aqui contigo. Vamos escolher a comida? A carta está excelente, mas atrevia-me a sugerir ….
- Arroz de garoupa!
- Como adivinhaste?
- Intuição meu caro…
- Ummm… e para beber …
- Vinho branco Crasto!
- Bem, a menina está a marcar pontos! Se tu o dizes… assim seja.
- Manel, é uma questão de lógica: passados cinco anos o mesmo local, a mesma mesa, a mesma paisagem, nós… apesar de mais velhitos … logo, depois de toda esta conversa existencial, e para termos fôlego para mais, só pode ser o mesmo prato e o mesmo vinho.
- Deixas-me sem palavras. Claro que sim.
Olha, não quero tornar o nosso almoço aborrecido, mas preciso tanto, tanto de continuar a falar contigo. Sinto tanto a tua falta … mas não quero invadir a tua paz. Sempre me questionei acerca do momento do nosso reencontro e confesso que para mim está a revelar-se muito melhor do que imaginei. Se me pedisses para ficar, ficaria. Feliz. Resolvido. Sem fugas.
- Manel, meu querido Manel, aprendi a gerir a minha paz, como lhe chamas. Se tivesse algum receio de que a fosses invadir ou perturbar, podes estar certo de que não estaria aqui contigo, a minutos de degustar um arroz de garoupa e a correr o risco de ficar de novo “leve” ao sabor do Crasto branco. Tal como dizes, estou outra. Cresci e a minha capacidade para lidar com certas situações mudou também. Relativizo muitas coisas, para poder enfatizar aquelas que realmente gosto e me dão prazer, e nesse equilíbrio consigo descobrir e alcançar a tal paz tão necessária na gestão dos nossos dias e das nossas vidas. Se eu conseguir ter a capacidade para te transmitir essa paz, fico feliz. Cheers!

 - Os senhores pretendem escolher alguma coisa para jantar?
- Jantar? Que horas são? Não pode ser! Estivemos aqui toda a tarde e não nos mandaram embora? Peço imensa desculpa… Madalena, queres jantar ou saímos?
- Por mim, podemos ficar e comer uma coisa leve se quiseres. Olha, talvez uma salada de camarão e frutos…
- Parece que essa salada me faz lembrar qualquer coisa… deixa ver …
- Pensa!
- Ummm …. foi essa a salada que jantámos na nossa primeira vinda aqui, pois tal como hoje, ficámos toda a tarde a falar como se a máquina do tempo se tivesse avariado…
- Exactamente! Afinal apesar de tudo ainda tens boa memória.
- Às vezes, minha querida. Às vezes…
Neste momento penso que se a máquina do tempo trocasse os fios e pudesse replicar tudo o que aconteceu há cinco anos, eu não iria ficar aborrecido…
Que é isto? Ficámos às escuras?
- Não, meu amor, é a máquina o tempo que está a reiniciar …
Manuel e Madalena

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