Um raio de sol espreitava por
entre a persiana meio aberta, deixando adivinhar a manhã. Ao sentir a brisa
vinda da janela enrolei-me no lençol e dei meia-volta na cama, com a intenção
de dormitar mais algum tempo. Gosto de estar deitada e sentir o fresco
afagar-me o rosto. Relaxa-me.
Dei voltas e voltas, mas o sono
parecia não querer regressar. Coloquei os phones e seleccionei um dos dos CDs
que normalmente me tranquilizam e numa
espécie de embalo, conseguem que “desligue” o pensamento e permaneça naquela
letargia de dormir acordada. Quando olhei ao relógio tinham passado duas horas.
Nada mau, pensei. Já “queimei” mais algum tempo
desta preguiça vazia que preenche uma grande parte dos meus dias. Sem coragem para me levantar, ia arranjando
desculpas,tão sem sentido, como a de ouvir a faixa seguinte, na crença de descobrir um novo sentido nas
palavras, ou um novo acorde que me
desafiassem o sentido e a imaginação. De facto eram as palavras e a música a
minha companhia diária, infalível e fiel.
Há algum tempo que tinha perdido
o gosto por quase tudo. Nada me fazia sentido. Ter que sair do meu casulo
tinha-se tornado um fardo demasiado pesado. Não tinha paciência para as
pessoas. Não conseguia lidar com uma sociedade de aparências, fria, calculista
e onde os valores relacionais, aos meus olhos, se tinham perdido. Amizades,
trabalho, tudo tinha deixado de me
fazer sentido. Queria apenas e só estar quieta com as minhas músicas, os meus
livros, as minhas telas e as minhas recordações de um tempo em que tinha sido
feliz. Gostava de ir ao quintal de manhã
cedo, quando ainda ninguém na vizinhança dava sinal de vida, ou ao serão, onde
na espreguiçadeira me entretinha a olhar as estrelas, ou na sua ausência, as
sombras dos ramos das árvores. Aquele silêncio era o meu conforto e a minha
companhia.
Estou consciente que alguns anos
atrás caminhei a passos largos para uma
depressão que quase me levou ao extremo? Sim, e não. Se por um lado tinha
então, perdido a alegria de viver e toda a actividade do meu dia a dia era
feita com um esforço desmesurado, como se eu fosse um autómato desprovido de
cérebro, por outro lado, mais do que nunca naquela altura, como agora, os
sentimentos estavam à flor da pele, hipervalorizando o que de bom ou mau acontecia,
obrigando-me a procurar um ponto de equilíbrio que não conseguia. A lágrima
fácil convivia com a revolta, e de repente uma força hercúlea vinda sabe-se lá
de onde, apoderava-se de mim e numa espécie de transe, obrigava-me a tomar
decisões, a ser racional e a afugentar os fantasmas que comigo viviam.
De facto, durante muitos anos fui
obrigada a “apagar demasiados fogos” e a combater “em várias frentes”. Sozinha
com o mundo às costas, como me sentia, consegui ter força para lutar e nunca
falhar nas minhas obrigações familiares e profissionais, tão difíceis, como
complicadas de gerir. Estive sempre
presente na vida dos meus filhos, dos meus pais, nos dois casamentos
(falhados), no trabalho, esquecendo-me, porém, que eu também existia… Os meus
gostos e os meus sonhos tinham ficado lá para trás, preocupada que estava em
acorrer a todos e tentar que todos se sentissem felizes, confortáveis e sem
faltas. Durante vinte anos vivi uma vida maratona, onde a corrida e as
preocupações não me deixavam espaço para
mim própria, e muito sinceramente, “eu” existir ou não, era já uma questão
esquecida no caminho da sobrevivência ao dia a dia.
Lentamente o cansaço foi-se
instalando, a indiferença perante a vida ganhando espaço, o desprazer, o
cinzento e o vazio, caminhavam a meu lado já de tal forma, que se “entranharam”
nos meus poros. Afinal, desistir de tudo não me parecia de todo descabido. Quem
era eu? O que restava de mim? Ninguém. Zero.
Ante a escolha do vazio ou
de um possível amanhã, apanhei os farrapos, procurei o pavio ressequido
de uma luz distante, e munida de uma
força emanada pela natureza, resolvi que no meu caderno amarelecido e guardado
numa caixa no sotão, iria fazer os rabiscos e o rascunho de uma nova vida,
reencontrando-me, talvez não na plenitude, mas no possível.
Agora a “ressacar” dessa viagem,
penosa, solitária mas conseguida, dou-me o prazer de estar comigo, de desfrutar
da minha própria companhia, sem dramas. Voltei a gostar. Readquiri a capacidade
de apreciar o belo. Consigo arrepiar-me com o que me toca os sentidos. Já
atendo o telefone e devolvo mensagens. As pessoas já não são para mim um fardo,
mas consigo ser educadamente selectiva e reservada. Só entra quem eu permito.
O sol já ia alto e o calor adivinhava-se pela
persiana meio aberta. A preguiça vazia começava a aborrecer-me. Sim, já me
sentia suficientemente segura para abraçar novos desafios. O meu sozinhismo
tinha-me trazido uma nova perspectiva e uma nova luz, que a seu tempo me
permitiam raciocinar de uma forma mais “light” sobre aquilo que consideramos
difícil e contornar essas mesmas dificuldades.
“Veio-me à memória uma frase
batida: hoje é o primeiro dia do resto da minha vida”.
Assim foi.
- Muito obrigada a todos os
presentes, já que sem o vosso apoio e a vossa amizade esta conversa e este
livro não teriam sido possíveis. Obrigada à minha família, por me permitir
continuar a picar-lhe os miolos. Obrigada ao “eu” reencontrado e a todas as forças que ajudaram
a acordá-lo. A lágrima não é sinal de fraqueza, mas sim de descoberta que um
novo caminho é possível. Cada pessoa tem uma luz interior que deve seguir,
mesmo nas noites mais escuras. Desfrutem!
Isabel
Isabel
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