quinta-feira, 14 de maio de 2020

Nem Tudo São Farrapos


Um raio de sol espreitava por entre a persiana meio aberta, deixando adivinhar a manhã. Ao sentir a brisa vinda da janela enrolei-me no lençol e dei meia-volta na cama, com a intenção de dormitar mais algum tempo. Gosto de estar deitada e sentir o fresco afagar-me o rosto. Relaxa-me.
Dei voltas e voltas, mas o sono parecia não querer regressar. Coloquei os phones e seleccionei um dos dos CDs que normalmente me  tranquilizam e numa espécie de embalo, conseguem que “desligue” o pensamento e permaneça naquela letargia de dormir acordada. Quando olhei ao relógio tinham passado duas horas. Nada mau, pensei. Já “queimei” mais algum tempo  desta preguiça vazia que preenche uma grande parte dos meus dias.   Sem coragem para me levantar, ia arranjando desculpas,tão sem sentido, como a de ouvir a faixa seguinte,  na crença de descobrir um novo sentido nas palavras,  ou um novo acorde que me desafiassem o sentido e a imaginação. De facto eram as palavras e a música a minha companhia diária, infalível e fiel.
Há algum tempo que tinha perdido o gosto por quase tudo. Nada me fazia sentido. Ter que sair do meu casulo tinha-se tornado um fardo demasiado pesado. Não tinha paciência para as pessoas. Não conseguia lidar com uma sociedade de aparências, fria, calculista e onde os valores relacionais, aos meus olhos, se tinham perdido. Amizades, trabalho,   tudo tinha deixado de me fazer sentido. Queria apenas e só estar quieta com as minhas músicas, os meus livros, as minhas telas e as minhas recordações de um tempo em que tinha sido feliz.  Gostava de ir ao quintal de manhã cedo, quando ainda ninguém na vizinhança dava sinal de vida, ou ao serão, onde na espreguiçadeira me entretinha a olhar as estrelas, ou na sua ausência, as sombras dos ramos das árvores. Aquele silêncio era o meu conforto e a minha companhia.
Estou consciente que alguns anos atrás  caminhei a passos largos para uma depressão que quase me levou ao extremo? Sim, e não. Se por um lado tinha então, perdido a alegria de viver e toda a actividade do meu dia a dia era feita com um esforço desmesurado, como se eu fosse um autómato desprovido de cérebro, por outro lado, mais do que nunca naquela altura, como agora, os sentimentos estavam à flor da pele, hipervalorizando o que de bom ou mau acontecia, obrigando-me a procurar um ponto de equilíbrio que não conseguia. A lágrima fácil convivia com a revolta, e de repente uma força hercúlea vinda sabe-se lá de onde, apoderava-se de mim e numa espécie de transe, obrigava-me a tomar decisões, a ser racional e a afugentar os fantasmas que comigo viviam.
De facto, durante muitos anos fui obrigada a “apagar demasiados fogos” e a combater “em várias frentes”. Sozinha com o mundo às costas, como me sentia, consegui ter força para lutar e nunca falhar nas minhas obrigações familiares e profissionais, tão difíceis, como complicadas de gerir.  Estive sempre presente na vida dos meus filhos, dos meus pais, nos dois casamentos (falhados), no trabalho, esquecendo-me, porém, que eu também existia… Os meus gostos e os meus sonhos tinham ficado lá para trás, preocupada que estava em acorrer a todos e tentar que todos se sentissem felizes, confortáveis e sem faltas. Durante vinte anos vivi uma vida maratona, onde a corrida e as preocupações  não me deixavam espaço para mim própria, e muito sinceramente, “eu” existir ou não, era já uma questão esquecida no caminho da sobrevivência ao dia a dia.
Lentamente o cansaço foi-se instalando, a indiferença perante a vida ganhando espaço, o desprazer, o cinzento e o vazio, caminhavam a meu lado já de tal forma, que se “entranharam” nos meus poros. Afinal, desistir de tudo não me parecia de todo descabido. Quem era eu? O que restava de mim? Ninguém. Zero.
Ante a escolha  do vazio ou  de um possível amanhã, apanhei os farrapos, procurei o pavio ressequido de uma luz distante,  e munida de uma força emanada pela natureza, resolvi que no meu caderno amarelecido e guardado numa caixa no sotão, iria fazer os rabiscos e o rascunho de uma nova vida, reencontrando-me, talvez não na plenitude, mas no possível.
Agora a “ressacar” dessa viagem, penosa, solitária mas conseguida, dou-me o prazer de estar comigo, de desfrutar da minha própria companhia, sem dramas. Voltei a gostar. Readquiri a capacidade de apreciar o belo. Consigo arrepiar-me com o que me toca os sentidos. Já atendo o telefone e devolvo mensagens. As pessoas já não são para mim um fardo, mas consigo ser educadamente selectiva e reservada. Só entra quem eu permito.
 O sol já ia alto e o calor adivinhava-se pela persiana meio aberta. A preguiça vazia começava a aborrecer-me. Sim, já me sentia suficientemente segura para abraçar novos desafios. O meu sozinhismo tinha-me trazido uma nova perspectiva e uma nova luz, que a seu tempo me permitiam raciocinar de uma forma mais “light” sobre aquilo que consideramos difícil e contornar essas mesmas dificuldades.
“Veio-me à memória uma frase batida: hoje é o primeiro dia do resto da minha vida”.
Assim foi.
- Muito obrigada a todos os presentes, já que sem o vosso apoio e a vossa amizade esta conversa e este livro não teriam sido possíveis. Obrigada à minha família, por me permitir continuar a picar-lhe os miolos. Obrigada ao “eu”  reencontrado e a todas as forças que ajudaram a acordá-lo. A lágrima não é sinal de fraqueza, mas sim de descoberta que um novo caminho é possível. Cada pessoa tem uma luz interior que deve seguir, mesmo nas noites mais escuras. Desfrutem!
Isabel

Sem comentários:

Enviar um comentário