quinta-feira, 27 de agosto de 2020

Simplicidade


Foi uma tarde fantástica aquela passada no quintal da avó. Saudades imensas daquelas conversas por baixo da glicínia que perfumava todo o espaço. Ali tinha sido imensamente feliz na infância e na adolescência. As férias e os fins de semana passados na casa da avó Maria eram capítulos inesquecíveis da minha vida. Aprendi tantas coisas sobre a vida, sobre os costumes, sobre a história da nossa família, umas vezes fechada a sete chaves, outras vezes com pontas soltas que eu teimava em alinhar… A avó era uma pessoa dócil, sábia, exigente e com um encanto especial. Com a morte precoce do avô, foi ela que ficou no controle dos negócios. Como admirava aquela figura de estatura baixa, olhos verdes a sobressair num rosto emoldurado pelo cabelo grisalho, e um sorriso sempre afável. Era multifacetada, a minha avó. Ora a comandar os negócios, ora dona de casa exemplar e dedicada, fazendo tudo com a maior das perfeições, com o maior gosto. Nunca lhe ouvi uma queixa. Gostava de ter a família reunida e frequentemente a mesa era posta para quinze ou dezasseis pessoas, entre adultos e crianças. Com ela aprendi as artes e os segredos da cozinha, as regras de etiqueta ao pôr a mesa, a forma de me sentar e comportar em público. Aprendi a costurar, a fazer crochet e tricot, enfim, todas aquelas coisas que uma menina na altura tinha forçosamente que saber fazer.
Não me aborrecia. A disciplina era rigorosa, com horários para as várias actividades, mas se sabia que durante a manhã tinha que fazer determinada tarefa, também sabia que de tarde a brincadeira chamava por mim no quintal. Normalmente lanchávamos na enorme mesa de pedra por baixo da glicínia e aí prolongávamos o tempo até serem horas de fazer o jantar. Todos os dias a avó tinha uma história diferente para nos contar, a mim e aos primos, que eram os meus companheiros de férias.
- Hoje vou falar-vos sobre a mudança dos tempos. Vocês sabem que nem sempre tudo foi  como conhecem. Nem a forma de viver, nem as condições, e muito menos a liberdade. Quando eu tinha a vossa idade, era tudo muito fechado, as pessoas falavam pouco umas com as outras e as senhoras não tinham certos direitos que entretanto conseguiram. Quando se falava em casamento, muitas vezes era um problema grande, porque os nossos pais não nos deixavam casar com quem queríamos, mas sim com quem eles escolhiam. Não foi o meu caso.   Casei com o vosso avô porque foi a pessoa por quem me apaixonei e os meus pais respeitaram a minha vontade, embora houvesse um certo distanciamento social. O facto de os casais serem felizes era uma questão que não se colocava, nem o marido de sonho era suposto ousar-se imaginar …  Era assim e pronto!
Que confusão me fez sempre esta história… e a avó continuava:
- Então, muitas senhoras, infelizes mas em silêncio, tentavam ultrapassar esse facto, reunindo-se em chás em casa umas das outras, para poderem falar entre si e encontrarem formas de atenuar o sofrimento. Só que aos olhos da sociedade estas reuniões apenas eram bem vistas se tivessem como motivo acções de caridade, que não têm nada a ver com as acções de solidariedade que vocês conhecem hoje e nas quais participam com os vossos pais. Antes era tudo muito restrito e basicamente todas estas acções eram desenvolvidas em conjunto com o padre e as beatas da igreja, já que não podia haver grupos isolados. Era uma afronta e uma vergonha. Existiam basicamente três classes sociais: a dos ricos, a dos menos ricos e a dos pobres. Os ricos eram os donos das terras, das grandes herdades, os médicos, os advogados. Os menos ricos eram os professores e mais algumas pessoas que viviam de negócios próprios, e os pobres, esses coitados, não tinham direito a nada, e trabalhavam de sol a sol nos campos ou nas casas dos ricos, elas como empregadas domésticas, amas, lavadeiras, cozinheiras, costureiras, e eles nos mais variados serviços. Desta forma, existia um grande fosso a separar uns e outros, e se uns era como se fossem os donos de tudo,  os outros coitados, miseráveis, passavam fome e viviam muitas vezes em situações degradantes. A escola não era para todos e portanto também só os mais endinheirados estudavam, enquanto as crianças pobres tinham que trabalhar e ajudar as famílias a sobreviver.
Confesso que estava boquiaberta. Não conseguia imaginar … olhava em volta e aquilo que era a disciplina que a avó nos impunha, se comparado com o que nos estava a contar, era perfeita liberdade.
- Entretanto o pensamento das pessoas foi-se alterando, foi-se ajustando a ideias que começaram a vir de fora, e o descontentamento que existia, e que era muito, deu origem a movimentos de revolta que fizeram com que o 25 de Abril acontecesse. Essa história já vos contei há uns dias, quando fomos apanhar cravos para colocar nas jarras, lembram-se? Até vos ensinei a cantar a Grândola Vila Morena …
A um aceno de cabeça de todos nós, continuou:
- Desde então têm acontecido muitas coisas e a vida transformou-se muito e com grande velocidade. Numas coisas para melhor. Noutras para pior. Começou a existir muita ganância, muitos interesses económicos, muita falta de respeito pelo planeta e todos acharam que podiam tudo. Mas a liberdade não é isso. A liberdade é ser-se responsável e respeitar os outros e o espaço individual de cada um. Só assim, sem atropelos, a sociedade pode funcionar como deve ser. Por outro lado, os interesses económicos para crescerem começaram a incentivar as pessoas a comprar de tudo e mais alguma coisa, tanto o que precisam como o que não precisam, e em vez de as pessoas serem vistas pelos seus valores pessoais, começaram a ser vistas e educadas através dos valores materiais trazidos pelo consumo excessivo. Assim, a sociedade que cresceu tão depressa, vai-se degradando, porque as pessoas apenas se focam no que podem e querem ter, e não naquilo que são dentro delas, percebem? Há acesso ao estudo para todos, mas o estudo é visto mais como uma meta para atingir fins, do que para pensar, aprender e perceber qual o melhor caminho. Existe a internet onde há acesso a tudo, mas se não existir a capacidade para fazer um filtro, pode ser um caminho muito mau, embora moderno e útil. Existe a televisão com variados canais e parece que de repente todas as pessoas querem ser “famosas”. Não há qualidade nos programas, nem são interessantes, porque contabilizam as audiências, que se traduzem em dinheiro, sejam quais forem os “famosos” que por lá aparecem.
Existe ainda um outro perigo que é o das drogas, de que já falámos também há tempos. Tudo o que de mau elas podem trazer. Muitas das pessoas que querem o sucesso rápido e que parecem ter uma energia inesgotável, consomem drogas para se manterem sempre activas e bem dispostas. O que acontece é que não sabem que aos poucos se estão a matar, a colocar em risco a saúde, a vida pessoal, familiar e profissional. Consomem pelo impulso do momento, e chega uma altura que já não podem passar sem elas, e o que vem a seguir é mau demais…
Ficámos calados por momentos, a pensar em tudo o que a avó Maria tinha acabado de dizer. Ela sabia tantas coisas… Éramos uns privilegiados por termos uma avó que falava estes assuntos connosco e nos ensinava a pensar, a questionar e a descobrir caminhos. Por isso gostávamos tanto de estar em casa dela. Os nossos pais, andavam naquele frenesim profissional que a avó referiu, e de facto não tinham tempo nem paciência para falarem connosco sobre estes assuntos  da mesma forma simples que a avó falava.
Hoje, recordei cada recanto, cada brincadeira e cada conversa. A avó está velhinha, mas continua com o mesmo ar meigo, o sorriso generoso e a acariciar-me o cabelo como sempre fez. À sombra da glicínia conversámos durante horas, por entre o bolo de mel que teimou em fazer, por ser o meu preferido, e cujo segredo da receita só nós duas sabemos, o arroz doce queimado que só ela sabe confeccionar, os mini pães com linguiça que passaram a ser a minha especialidade, e umas canecas de café com leite como antigamente bebíamos. 
De repente, já no carro e de regresso, dei por mim a pensar que as coisas simples, são as que mais aprecio. Não é o meu gabinete  de trabalho num edifício chique que me faz brilhar os olhos, nem tão pouco o potente carro que a empresa me colocou à disposição. Muito menos as roupas que sou forçada a usar no meu papel de executiva. Estou cansada desse estatuto. Lembrei-me das palavras da avó no dia em que nos falou sobre a mudança da sociedade e sobre os bens materiais. Fez-me tanto sentido. Inverti a marcha.
“Avó! Voltei para trás, só para lhe dar mais um abraço e um beijo e agradecer por tudo o que me ensinou, principalmente, ter-me ensinado a pensar. Dentro de dias regresso para lhe dar uma novidade. Entretanto peça por favor à Manuela para arrumar o meu quarto para uma estadia mais prolongada. Não se preocupe com mais nada.  Eu depois conto.  Quero voltar à vida de verdade, simples e autêntica!”
Mila e Avó Maria

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