quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Uma Ilha Dentro Da Ilha


O horizonte era infinito. O azul do mar parecia querer beijar o céu já meio alaranjado de final de dia. Apenas alguns navios de maior porte rasgavam essa linha que teimava em fundir-se. O mar estava estranhamente calmo, mais parecendo um espelho.
No cimo da falésia respirava a liberdade que as gaivotas em redor cantavam. Sentia tanta falta daquele mar, daquele pôr-do-sol, daquele silêncio de vida… Tinham sido cinco anos distantes e sombrios.
-Estás bem?
- Estou. Estou muito bem. Não se nota?
- Estás com uma expressão diferente e reparei numa lágrima a brilhar aí ao canto do olho …
- Lágrima de emoção. Daquele aperto no peito que este lugar me despertou. Uma lágrima boa. Estou bem, sim. Não te preocupes. Sabes, esta é a vitamina de que preciso. É revigorante, estar aqui. Se soubesses o que vai dentro de mim … Posso pedir uma coisa? Não quero melindrar-te, mas ficar aqui sozinha era tudo o que precisava… Não te importas?
- Claro que não! Tens a certeza que ficas bem? Não precisas de nada? Queres que te deixe uma água? Talvez uma peça de fruta…
- Não, João, obrigada. Eu fico bem e não preciso de nada. Só de estar comigo. Apareço ao jantar. Não te preocupes.
João era o irmão que nunca tinha tido. Amigo, protector, conselheiro, cúmplice, uma pessoa com um coração tamanho do mundo. Crescemos juntos, brincámos de quintal para quintal, andámos sempre na mesma turma até que a faculdade nos empurrou para sítios diferentes. Afastados na geografia, mas juntos como sempre, nos bons momentos e nos menos bons, a apoiar, a ajudar. O João é uma pessoa sensata, inteligente e perspicaz. Dono de uma calma imensa, analítica e certeira. Foi ele a primeira pessoa que me disse que a relação que tinha assumido com o Manel nunca iria dar certo. Teimosa e crente de que poderia mudar o mundo e as pessoas, não lhe dei ouvidos e segui a minha vida a meu belo prazer. Reconhecia uma certa ambiguidade e incongruência em alguns comportamentos do Manel, mas acreditei que seriam traumas de infância e que conseguiria dar a volta à situação e ajudá-lo a tornar-se outra pessoa. Afinal, tínhamos imensas coisas em comum, e a coisa não iria correr mal. Cedência daqui, afinação dali, é o que acontece com a maioria dos casais. Enganei-me redondamente. Entrei num caminho de nevoeiro, onde me perdia, tropeçava, caía, para depois me reerguer, cada vez com mais dificuldade.  Se de início não me faltava a força, o correr do tempo foi-me desgastando e continuar a percorrer o mesmo caminho tornou-se demasiado penoso. O João tinha razão. Nunca, durante todo o tempo em que vivi com o Manel deixei transparecer o mau estar. Apenas falava com o João ao telefone, tal como com as poucas pessoas que me restavam, família próxima e duas ou três amigas. Tinha perdido a alegria e a vontade. A distância e o desalento impediam que fizesse a viagem de regresso, ou talvez fosse apenas o pretexto que me dava, para não ter que simular, que enfrentar, que sentir as pessoas, o local e o cheiro dos anos idos… onde tinha sido feliz…
Respirei fundo, e mais fundo ainda, como se quisesse absorver toda aquela boa energia, e guardá-la no peito. Tinha tantas saudades da ilha … do verde, dos riachos, das cascatas, do mar que tudo envolve e devolve. Quando cheguei, resgatada pelo meu querido João, mais não era do que um farrapo. Tinha-me perdido de mim, tinha-me perdido da vida e de um caminho distante, outrora sonhado e planeado… A paixão tem o poder de cegar as pessoas…
Nada acontece por acaso, e quis o acaso que me cruzasse com a Mena, a mulher do João, numa farmácia perto de minha casa. Reconheci-a de imediato, mas fiquei incomodada. Queria abraçá-la e agarrá-la, qual tábua de salvação no meio da tempestade, mas ao mesmo tempo não queria que ela visse como eu estava. Sentia-me miseravelmente esfrangalhada. A Mena olhou para mim e de imediato abriu muito os olhos, o seu sorriso franco e largo e me estendeu o seu braço carinhoso e amigo. Comecei a chorar, numa torrente de lágrimas contidas durante nem sei quanto tempo. Lágrimas de dor, de revolta, mas de uma amizade imensa colocada naquele abraço.  Saímos da farmácia sem os medicamentos e a Mena levou-me para o hotel onde estava alojada, para podermos conversar com sossego. Estava há três dias em Sintra. Tinha vindo a um congresso e partia já no dia seguinte. Disse ter-me telefonado várias vezes, mas que o telefone dava sinal de desligado. Verdade. Tinha cortado relações com mundo há uma semana.  Disse também que como não sabia a minha morada actual, perguntou em dois ou três sítios se me conheciam. Foi o Sr.António do Café Central que lhe disse que eu morava para os lados da farmácia, e era lá que Mena ia perguntar por mim, quando nos deparámos. Que estava preocupada e que o João lhe tinha pedido por tudo para que me encontrasse e falasse comigo. Para ver como eu estava, pois pressentia coisa má.
Ainda que eu pretendesse esconder fosse o que fosse, as minhas lágrimas denunciaram-me, bem como as marcas roxas nos braços.  Falámos durante horas e a Mena apenas me disse: não posso adiar o regresso, porque tenho compromissos, mas tu não vais saír daqui. Vou pedir para que a reserva do quarto prossiga e eu ou o João voltaremos para te vir buscar dentro de poucos dias. Promete-me que não sais daqui. Vou pedir que te tragam as refeições ao quarto. Quanto às tuas coisas, pensaremos como fazer para as ires buscar. Se não queres denunciar o Manel pelos maus tratos, é contigo, mas percebe que a partir deste momento nada será como de antes , porque eu não vou deixar. Tu não mereces o sofrimento que tens tido, muito menos mereces continuar pelo medo. Não consigo sequer reconhecer a minha amiga Laura, aquela mulher forte, determinada, furacão, a arrastar tudo e  todos e a envolvê-los nas suas causas…  
É verdade. O medo tinha-se apoderado de mim. A mente doentia do Manel aterrorizava-me, paralizava-me e remetia-me para um estado da mais profunda resignação. Deixei de trabalhar, já que não tinha condições pricológicas para tal. Meti algumas baixas, mas quando o médico começou a perceber que eu não contava a verdade toda e foi mais directo e incisivo na abordagem, deixei de lá ir. Acabei por me despedir e comecei a fazer pequenos trabalhos em casa, quando estava sozinha, no meu canto, na minha paz. Foi assim que descobri a pintura. Nela escrevia com traços e cores, o que me ia na alma, e que só eu percebia. Toda a arte é passível de várias interpretações, pelo que o que eu via, outros podiam não ver.
O regresso foi complicado e doloroso. Acedi a tudo o que a Mena me disse. O João ligou-me para o hotel e tivemos a conversa que nunca tínhamos tido depois de ele me ter alertado quanto ao Manel. Passados dois dias em que basicamente dormi, descansei a cabeça, me alimentei como deve ser e consegui ter alguma calma, apesar da incerteza futura, chegou o João. Ficou assente que eu iria com ele para a ilha. Antes, e no menor tempo possível, tinha que organizar as minhas coisas e retirá-las de casa enquanto o Manel estava fora. Às quintas-feiras era dia de ir visitar clientes a Coimbra, e estaria mais tempo ausente. O problema é que com a minha ausência e silêncio, deveria andar louco e se calhar nem de casa saía… um problema para resolver… O João, frio, racional e previdente, foi rondar a casa, para ver se havia sinal de vida, ou se o carro estava estacionado à porta. Nada de carro. Nada de movimento. Depois ligou para a empresa a perguntar se seria possível o Dr.Manuel Correia recebê-lo, pois tinha vindo de fora e queria falar assuntos de negócios com ele. A secretária disse que o Dr. tinha saído para fora em serviço e que muito provavelmente só regressaria de noite. Estupendo. Era mesmo o que se pretendia. Enquanto apressadamente juntei o indispensável em casa, o João mantinha-se vigilante dentro do carro, não fosse haver alguma surpresa. Hora e meia depois, tinha tudo ensacado. Apenas faltavam as telas, os cavaletes e os materiais. Rapidamente carregámos o carro, com grande pormenor, nem ciência, pois o tempo corria e saír dali era preciso.
Antes de virar a esquina, com um aperto no peito, olhei para trás. Era um bocado de mim e da minha vida que ali ficara. Foram cinco longos anos de angústia, de desespero, de resignação e de medo. De novo, chorei. Muito. Solucei de raiva de mim do mais profundo do meu ser.
- Laurinha, sei como tudo isto é difícil e penoso. Acredita que nunca pensei que tivesses chegado a este ponto nas mãos de uma mente obcecada, maquiavélica e manipuladora. Agora acabou. Chora, sim. Chorar faz bem. Deita cá para fora todo esse mau estar.  Vais ter uma vida nova. Tens a tua família, tens-nos a nós e nada de mau irá acontecer-te.
O João tinha sempre a palavra amiga a reconfortante. Sabia que sim, que podia contar com ele para o que fosse preciso.  Passámos num shopping para comprar malas de viagem e acomodar as bagagens ensacadas,  caixas de cartão para proteger as telas e sacos para os materiais. Ainda tive tempo para passar no Banco e levantar a minha parte do dinheiro disponível na conta, bem como dar ordem de transferência da minha parte das aplicações para uma outra conta minha que tinha deixado de utilizar por imposição do Manel.
O avião era às dez horas da noite. A Mena tinha tratado das passagens enquanto nós andávamos atarefados com a organização da bagagem e o Banco.
Sentei-me do lado da janela. Lisboa era linda iluminada. Aquela luz cativou-me desde que lá coloquei os pés. A luz das lâmpadas de noite, a luz do sol de dia.  Era uma cidade radiosa, mas que para mim tinha perdido todo o encanto. O avião subiu mais ainda, e Lisboa era já um ponto distante, na geografia e no meu peito.
“Credo”, pensei para mim, “a Mena e o João já devem estar à minha espera para jantar. Perdi-me nos meus pensamentos e nem dei pelo tempo”.
- Olá, desculpem! Atrasei-me um bocadinho. Eu ponho a mesa. Vamos lá!
- Não faz mal, miúda! Sabemos o quanto gostas de estar na falésia e quanto isso te conforta. Estás à vontade, sabes disso.
- Sei. Sei disso e sei que vocês são os melhores amigos do mundo e que não tenho sequer palavras para vos agradecer. Estas duas semanas na vossa casa têm sido indescritíveis. Têm-me mimado tanto, que vou ficar mal habituada.  A propósito, decidi que amanhã vou comprar um telefone, e que vou ligar aos meus pais. Vou fazer-lhes uma surpresa. Vou visitá-los à quinta, mas apenas vou dizer que regressei. Quero poupá-los a tudo o resto.  Afinal já estou com melhor aspecto e pode ser que consiga disfarçar a coisa…
- Claro que não pareces a mesma, Laura! O ar da ilha tem-te feito bem. O sossego e a paz de espírito são alimento para a alma. Quanto ao telefone, sim senhor, bem vinda ao mundo! E já que estás a ressuscitar, tenho uma novidade para ti: a nova galeria da Câmara Municipal vai inaugurar no próximo mês. Como sabes, o Presidente é o Víctor que estudou connosco. Sabe que estás de regresso e que até tens uns quadros interessantes. Pediu para falar contigo.
Fiquei apreensiva. Iria ele pedir para que expusesse alguns dos meus trabalhos? Mas eram tão meus… tão bocados de vida passada … hummm… assunto a pensar. Preferiria muito mais expor telas positivas, com a energia da ilha, do mar, da vila, da quinta. Era de facto essa a força que me agarrava àquele chão. Era essa a minha metade, tanto tempo ausente, adormecida e esquecida… Eu própria era uma ilha, dentro da ilha.
Laura e Manel, Mena e João

Sem comentários:

Enviar um comentário