Saí do comboio com as pernas
entorpecidas. Sem me aperceber adormeci mal sentado e acordei com as vozes e o
barulho dos meus companheiros de viagem ao avistar a estação.
Duas malas carregavam lá dentro a
esperança de uma vida melhor.
No exterior da estação olhei
atordoado para um vai e vem de pessoas de semblante carregado e apressadas.
Tirei do bolso do casaco o bilhete onde tinha apontado a morada da pensão, e
apanhei um táxi. O motorista, nos seus sessenta anos, percebeu que eu não
pertencia à cidade e perguntou-me: “ O senhor veio de onde? Vê-se bem que não
conhece a cidade. A morada que me está a dar, fica já ao virar da esquina desta
rua. Uns trezentos metros. Quer mesmo pagar para eu o deixar lá?”. Confesso que
fiquei atrapalhado. Trezentos metros faziam-se bem a pé. O problema eram as
malas. Não me apetecia nada carregá-las depois da maçada da viagem. Olhei-as. O
motorista percebeu a minha pouca vontade e solícito “Deixe estar senhor. Deve
estar cansado. Não tem problema. Eu conduzo-o e levo-lhe as malas sem qualquer
custo. Afinal, temos que receber bem quem vem para a nossa cidade.”
Agradeci-lhe e entrei no carro. Na bagageira, a esperança, acomodada. No curto
trajecto contei-lhe ao que vinha, de onde vinha e quais as minhas expectativas.
De sobrolho franzido olhou-me e disse “ Eu desejo que tudo lhe corra bem por
aqui, mas aviso-o já de que este é um mundo muito diferente do seu. As pessoas
são egoístas e querem vencer a todo o custo. Maltratam quem lhes faz sombra, e
as oportunidades são só para alguns. Tenha sempre os olhos e os ouvidos bem
abertos, senhor.” Pensei para mim, que não poderia ser assim tão mau… afinal as
pessoas da aldeia que tinham partido, quando regressavam em férias mostravam
uma vida diferente. Seria só fachada? Não valorizei e chegados à pensão,
agradeci, paguei, retirei as malas do carro e parei no passeio, antes de
entrar. Olhei em redor. A rua era estreita, mas acolhedora. Nas fachadas dos prédios
de quatro andares e águas furtadas, dependuravam-se vasos de flores de cores
diversas. A roupa pendurada nas janelas, em cordas sustidas por uma ripa de
madeira, a formar um vê. Aqui e ali, cabeças assomavam-se, ao barulho de mais
um carro.
Determinado entrei na pensão. Um
homem de cabelo ralo e óculos grossos mirou-me e disse: “Boa tarde. Se procura
quarto, estamos cheios”. Mau … eu tinha telefonado a pedir para reservarem um
quarto. Expliquei a situação, e por entre rabiscos a lápis num caderno, lá
estava o meu nome. “João Silva, é o senhor? “. Ufa, estava safo…
Instalei-me num pequeno quarto do
primeiro andar. Cama, mesa de cabeceira, um pequeno armário para a roupa e uma
casa de banho improvisada num recanto que deveria ter sido arrecadação. Nada do
outro mundo, mas para já, dava para dormir,
organizar o meu tempo e a procura de trabalho.
Arrumei os pertences, guardei
comigo a esperança e saí para dar uma volta e jantar. Percorri uns quantos
quarteirões, e enquanto por ali deambulava no passeio de reconhecimento da
zona, várias foram as percepções que tive. Depois de ter caminhado uns quatro
quilómetros, entrei numa pequena tasca cujo cheiro da comida me chamou a
atenção. Umas dez mesas, toalhas de xadrez azul e branco, pratos brancos , tudo
muito asseado. Pedi o prato do dia e um copo de vinho tinto. Enquanto fui
degustando demoradamente o cabrito com batatas, ia ouvindo conversas nas mesas
laterais. Pessoas com bom ar, via-se que eram clientes habituais, tal o à
vontade no relacionamento. Falavam sobre política, insegurança e tentáculos do
poder. A conversa interessava-me e fui-me demorando mais e mais. O que ouvia
era um mundo novo para mim. Um mundo que sabia existir, mas que era distante do
meu até então. Ali havia de regressar muitas vezes, para perceber, para
aprender, para conseguir interpretar realidades que começavam a despontar em
mim um interesse crescente.
Ao fim de uma semana a procurar
trabalho, contava já com inúmeras histórias curiosas, que um dia mais tarde
haveria de resumir num caderno. Afinal, não era fácil encontrar o tão almejado
e falado lugar ao sol. Ou seria questão minha, que me bloqueava certos
trabalhos? Sempre tive tendência para as questões da sociedade e da humanidade.
Não que fosse desprimor trabalhar como operário numa fábrica, ou atrás de um
balcão de café. Nada disso. Se tivesse que ser, seria. De qualquer forma,
aquilo que de facto me cativava era a relação com as pessoas num sentido mais
lato. Os estudos que tinha limitavam-se ao ensino secundário, mas o muito que lia
permitia-me ter uma absorção fácil da conjuntura e da sociedade.
Nas longas caminhadas que fazia
pelas ruas e avenidas, reparava cada vez mais nas pessoas e naquilo que saltava
à vista. Uma classe emergente, ávida e apressada, olhava com desprezo para o
lado. Funcionava tipo clubite fechada em
si, mas ramificando o seu poder e influência a lugares chave. Do outro lado, os
que viviam com cada vez maiores dificuldades quer em termos laborais, quer em
termos económicos e sociais. Um mundo extremado pela ganância, pelo interesse e
pelo desrespeito pelos mais fracos.
Certa noite, cedo ainda, ao
chegar junto à pensão, fui abordado por
alguém que parava um carro junto a mim. Fiquei pouco à vontade. Uma história
mal contada por um indivíduo com ar de quem tinha posses, mas com um olhar
alucinado, que se fazia transportar num carro de boa cilindrada. Apesar da
agitação e da forma como me olhava, pensei que devia ouvi-lo naquela versão
titubeante de quem queria pedir dinheiro. Percebi-lhe a dependência da droga.
Percebi-lhe o desespero da privação. Tentei encetar uma conversa sensata e didáctica,
mas acabei por desistir e remeter-me ao meu mundo. O Sr. Carlos, dono da
pensão, contou-me que se tratava de um indivíduo que tinha sido completamente
apanhado pela cocaína. Ocupava um bom lugar numa empresa, era bem relacionado,
mas a teia onde se movimentava tinha-o desgraçado. Mais um… pensei. Tinha já noção da influência
dessas teias. Por vezes era um assunto abordado nas pequenas tertúlias da tasca
onde jantava, e onde tinha começado a sentir-me tão à vontade, que era já
convidado a dar o meu modesto contributo de opinião.
Já no quarto, fui à janela e
acendi um cigarro. Respirei o ar fresco da noite e reparei nas luzes.
Engraçado, como durante aquela semana, fora a primeira vez que as luzes me
prendiam a atenção. Candeeiros grandes em formato de lanterna, iluminavam a rua
e o que se via mais além. Sim, era de luz que a humanidade precisava. Era luz
que a sociedade tinha que absorver. Começava a desenhar-se um tempo estranho e
cujo futuro se adivinhava difícil. No País, no mundo, a velocidade era
estonteante, a superficialidade ganhava cada vez mais espaço, os interesses
escavavam alicerces e túneis difíceis de desmontar e de grande perigosidade
social e económica. Não podia valer tudo. Nada nas nossas vidas poderia estar
na mão de meia dúzia de influentes. Foi uma noite angustiante, onde mergulhado
nos pensamentos, mal consegui dormir. Tinha terminado uma semana onde tinha
aprendido mais sobre a vida, do que nos vinte e cinco anos passados.
Hoje, a uma distância que me
permite fazer uma análise crítica, estou grato aos meus pais, para quem a minha
partida foi dolorosa, mas que veio confirmar o que eu queria da vida. Não fosse
o cabrito na tasca do Sr.Manuel e nunca teria sido desafiado para fazer parte
de um movimento de pensadores humanistas. Já não habito a pensão do Sr. Carlos,
mas ainda guardo comigo toda a esperança contida nas malas.
João
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