quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Mala Da Esperança


Saí do comboio com as pernas entorpecidas. Sem me aperceber adormeci mal sentado e acordei com as vozes e o barulho dos meus companheiros de viagem ao avistar a estação.
Duas malas carregavam lá dentro a esperança de uma vida melhor.
No exterior da estação olhei atordoado para um vai e vem de pessoas de semblante carregado e apressadas. Tirei do bolso do casaco o bilhete onde tinha apontado a morada da pensão, e apanhei um táxi. O motorista, nos seus sessenta anos, percebeu que eu não pertencia à cidade e perguntou-me: “ O senhor veio de onde? Vê-se bem que não conhece a cidade. A morada que me está a dar, fica já ao virar da esquina desta rua. Uns trezentos metros. Quer mesmo pagar para eu o deixar lá?”. Confesso que fiquei atrapalhado. Trezentos metros faziam-se bem a pé. O problema eram as malas. Não me apetecia nada carregá-las depois da maçada da viagem. Olhei-as. O motorista percebeu a minha pouca vontade e solícito “Deixe estar senhor. Deve estar cansado. Não tem problema. Eu conduzo-o e levo-lhe as malas sem qualquer custo. Afinal, temos que receber bem quem vem para a nossa cidade.” Agradeci-lhe e entrei no carro. Na bagageira, a esperança, acomodada. No curto trajecto contei-lhe ao que vinha, de onde vinha e quais as minhas expectativas. De sobrolho franzido olhou-me e disse “ Eu desejo que tudo lhe corra bem por aqui, mas aviso-o já de que este é um mundo muito diferente do seu. As pessoas são egoístas e querem vencer a todo o custo. Maltratam quem lhes faz sombra, e as oportunidades são só para alguns. Tenha sempre os olhos e os ouvidos bem abertos, senhor.” Pensei para mim, que não poderia ser assim tão mau… afinal as pessoas da aldeia que tinham partido, quando regressavam em férias mostravam uma vida diferente. Seria só fachada? Não valorizei e chegados à pensão, agradeci, paguei, retirei as malas do carro e parei no passeio, antes de entrar. Olhei em redor. A rua era estreita, mas acolhedora. Nas fachadas dos prédios de quatro andares e águas furtadas, dependuravam-se vasos de flores de cores diversas. A roupa pendurada nas janelas, em cordas sustidas por uma ripa de madeira, a formar um vê. Aqui e ali, cabeças assomavam-se, ao barulho de mais um carro.
Determinado entrei na pensão. Um homem de cabelo ralo e óculos grossos mirou-me e disse: “Boa tarde. Se procura quarto, estamos cheios”. Mau … eu tinha telefonado a pedir para reservarem um quarto. Expliquei a situação, e por entre rabiscos a lápis num caderno, lá estava o meu nome. “João Silva, é o senhor? “. Ufa, estava safo…
Instalei-me num pequeno quarto do primeiro andar. Cama, mesa de cabeceira, um pequeno armário para a roupa e uma casa de banho improvisada num recanto que deveria ter sido arrecadação. Nada do outro mundo, mas para já, dava para dormir,  organizar o meu tempo e a procura de trabalho.
Arrumei os pertences, guardei comigo a esperança e saí para dar uma volta e jantar. Percorri uns quantos quarteirões, e enquanto por ali deambulava no passeio de reconhecimento da zona, várias foram as percepções que tive. Depois de ter caminhado uns quatro quilómetros, entrei numa pequena tasca cujo cheiro da comida me chamou a atenção. Umas dez mesas, toalhas de xadrez azul e branco, pratos brancos , tudo muito asseado. Pedi o prato do dia e um copo de vinho tinto. Enquanto fui degustando demoradamente o cabrito com batatas, ia ouvindo conversas nas mesas laterais. Pessoas com bom ar, via-se que eram clientes habituais, tal o à vontade no relacionamento. Falavam sobre política, insegurança e tentáculos do poder. A conversa interessava-me e fui-me demorando mais e mais. O que ouvia era um mundo novo para mim. Um mundo que sabia existir, mas que era distante do meu até então. Ali havia de regressar muitas vezes, para perceber, para aprender, para conseguir interpretar realidades que começavam a despontar em mim um interesse crescente.
Ao fim de uma semana a procurar trabalho, contava já com inúmeras histórias curiosas, que um dia mais tarde haveria de resumir num caderno. Afinal, não era fácil encontrar o tão almejado e falado lugar ao sol. Ou seria questão minha, que me bloqueava certos trabalhos? Sempre tive tendência para as questões da sociedade e da humanidade. Não que fosse desprimor trabalhar como operário numa fábrica, ou atrás de um balcão de café. Nada disso. Se tivesse que ser, seria. De qualquer forma, aquilo que de facto me cativava era a relação com as pessoas num sentido mais lato. Os estudos que tinha limitavam-se ao ensino secundário, mas o muito que lia permitia-me ter uma absorção fácil da conjuntura e da sociedade.
Nas longas caminhadas que fazia pelas ruas e avenidas, reparava cada vez mais nas pessoas e naquilo que saltava à vista. Uma classe emergente, ávida e apressada, olhava com desprezo para o lado.  Funcionava tipo clubite fechada em si, mas ramificando o seu poder e influência a lugares chave. Do outro lado, os que viviam com cada vez maiores dificuldades quer em termos laborais, quer em termos económicos e sociais. Um mundo extremado pela ganância, pelo interesse e pelo desrespeito pelos mais fracos.
Certa noite, cedo ainda, ao chegar junto à pensão,  fui abordado por alguém que parava um carro junto a mim. Fiquei pouco à vontade. Uma história mal contada por um indivíduo com ar de quem tinha posses, mas com um olhar alucinado, que se fazia transportar num carro de boa cilindrada. Apesar da agitação e da forma como me olhava, pensei que devia ouvi-lo naquela versão titubeante de quem queria pedir dinheiro. Percebi-lhe a dependência da droga. Percebi-lhe o desespero da privação. Tentei encetar uma conversa sensata e didáctica, mas acabei por desistir e remeter-me ao meu mundo. O Sr. Carlos, dono da pensão, contou-me que se tratava de um indivíduo que tinha sido completamente apanhado pela cocaína. Ocupava um bom lugar numa empresa, era bem relacionado, mas a teia onde se movimentava tinha-o desgraçado.  Mais um… pensei. Tinha já noção da influência dessas teias. Por vezes era um assunto abordado nas pequenas tertúlias da tasca onde jantava, e onde tinha começado a sentir-me tão à vontade, que era já convidado a dar o meu modesto contributo de opinião.
Já no quarto, fui à janela e acendi um cigarro. Respirei o ar fresco da noite e reparei nas luzes. Engraçado, como durante aquela semana, fora a primeira vez que as luzes me prendiam a atenção. Candeeiros grandes em formato de lanterna, iluminavam a rua e o que se via mais além. Sim, era de luz que a humanidade precisava. Era luz que a sociedade tinha que absorver. Começava a desenhar-se um tempo estranho e cujo futuro se adivinhava difícil. No País, no mundo, a velocidade era estonteante, a superficialidade ganhava cada vez mais espaço, os interesses escavavam alicerces e túneis difíceis de desmontar e de grande perigosidade social e económica. Não podia valer tudo. Nada nas nossas vidas poderia estar na mão de meia dúzia de influentes. Foi uma noite angustiante, onde mergulhado nos pensamentos, mal consegui dormir. Tinha terminado uma semana onde tinha aprendido mais sobre a vida, do que nos vinte e cinco anos passados.
Hoje, a uma distância que me permite fazer uma análise crítica, estou grato aos meus pais, para quem a minha partida foi dolorosa, mas que veio confirmar o que eu queria da vida. Não fosse o cabrito na tasca do Sr.Manuel e nunca teria sido desafiado para fazer parte de um movimento de pensadores humanistas. Já não habito a pensão do Sr. Carlos, mas ainda guardo comigo toda a esperança contida nas malas.
João

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