quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Vidas Adiadas



Sentados naquele pedaço de rocha, com os pés a roçar o mar de um verde imenso, e com o olhar preso no horizonte, percorríamos as nossas vidas.
Tínhamos assentado arraiais num parque de campismo não muito longe do mar e próximo de uma povoação que nos pudesse servir de base para as refeições.  Estávamos ali há quatro dias e tínhamos como rotina diária, levantar cedo e caminhar ora junto à orla marítima, ora pela serra que a poucos quilómetros, oferecia paisagens indescritíveis, por entre trilhos, cascatas, subidas e descidas, vegetação das mais variadas espécies, e um ar leve e perfeitamente respirável.
O dia anterior tinha sido cansativo pelos muitos quilómetros percorridos e resolvemos dar-nos uma ligeira folga. Almoçámos numa das tascas da aldeia e caminhámos em direcção à praia. Não havia muitos veraneantes e o areal estendia-se por entre os dois molhes de rochas, tão naturais e tão perfeitos, que parecia terem ali sido colocados de propósito a formar a pequena baía. Estava bonito o mar. Uma leve ondulação serena, de um verde intenso e cheiro profundo. Ali sim, o mar cheirava a verdadeiro.  Por entre salpicos, e com a maré a descer, escolhemos como plateia daquele horizonte sem fim, a rocha de um dos molhes. Por entre brincadeiras e conversas, o tema foi ficando mais sério, e a tarde acabou meio reflexiva, meio angustiada, ante a realidade de cada um de nós.
Conhecemo-nos na faculdade e anualmente programávamos entre uma semana e semana e meia para férias em conjunto. Se de início as preocupações não eram muitas, já que os tempos de lazer eram ainda custeados pelos nossos pais, ou complementados com uns trocos de trabalhos esporádicos que arranjávamos para o efeito, com o correr dos anos, as necessidades foram aumentando e a forma como encarávamos a vida começava a alterar-se. Tínhamos crescido numa classe média ascendente, onde o poder e o consumo foram igualmente ascendentes. A juventude afigurou-se-nos fácil, pois tudo tínhamos ao nosso alcance. A sociedade, ela própria, se encarregava de fomentar a competição, o consumismo, e quis convencer-nos de que a nossa geração seria pujante. Um perfeito engano. Por entre as curvas dos índices e dos raitings, concluímos as nossas licenciaturas e a nossa aspiração seria entrar no mercado de trabalho, nas nossas áreas de formação. Novo engano. A malha apertava. A dificuldade crescia.
Do nosso grupo de seis, dois eram engenheiros civis, três arquitectos e um licenciado em filosofia.  Passaram três anos desde que recebemos os nossos “canudos”. Por entre estágios, part-times, trabalhos precários e uma grande vontade, fomos, cada um à sua maneira, tentando construír uma vida, que cada vez mais, víamos adiada. Alguns permaneciam em casa dos pais, pois era manifestamente impossível sobreviverem sozinhos. Os que conseguiram o feito de arranjar o seu espaço, contavam os cêntimos e viviam uma vida de privações. Afinal, a ideia de plenitude que nos tinham “vendido” durante anos, era uma perfeita mentira. Aquela sociedade onde crescemos, não mais era do que uma fachada utópica de algo que era impossível prosseguir. Pior, a falta de valores humanos a ela associada, veio revelar a hipocrisia, a ruindade e tudo aquilo que de pior há na espécie humana. A ambição desmedida e a falta de lisura por parte daqueles que emergiram, teve consequências nefastas para a vida de grande parte da população.
Hoje, temos trinta anos e as nossas vidas continuam adiadas. Hoje, olhamos para o imenso horizonte verde que temos em frente, e sentados na rocha, pensativos e preocupados, perguntamos como vão ser, para onde vão caminhar e de que serão feitas a nossas vidas…
O pôr do sol começou a desenhar-se. A maré baixou de vez. O parque de campismo dista três quilómetros e a aldeia dois.  Já comíamos qualquer coisa…
Grupo de amigos

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