Tinha acabado de chegar a casa
quando o telefone tocou. Estranhou a hora tardia, mas atendeu com o coração a
aumentar o ritmo e um leve tremor na voz.
- Olá! Desculpa ligar-te a esta
hora, mas sabia que não estarias deitada ainda. Estás bem?
“Olá boa noite. Estou bem sim. E
tu como estás? Na realidade acabei de chegar a casa.”
- Calculei isso. Dei algum tempo
desde que saíste e pensei que a esta hora já estarias sozinha. Estive a ver-te
toda a noite com o teu grupo de amigos. Estavam bastante divertidos. Confesso
que hesitei antes de te ligar, mas a verdade é que pensei que poderíamos falar
um pouco pessoalmente. Sei que é tarde, mas amanhã vou embora ao final da manhã
e não queria adiar esta conversa por muito mais tempo…
Maria nem sabia que pensar ou
dizer. Estava ao rubro com aquele telefonema que em simultâneo a deixava
ansiosa e nervosa, mas determinada e com uma imensa vontade de se encontrar com
Miguel. Aos poucos foi perdendo o tremor na voz – afinal não podia vacilar nem
dar a entender o quão importante Miguel era na sua vida. Com suores, mas a
mostrar segurança “ Miguel, de facto a noite já vai alta, mas falar contigo é
sempre um prazer redobrado. Tens a certeza que queres falar agora e não de
manhã cedo antes de partires?”
- Maria, minha querida, se me
deres o gosto de podermos encontrar-nos agora, é tudo o que quero para final de
um dia cheio de emoções. Apanho-te onde?
Uma penteadela no cabelo, um leve
retoque da maquiagem, três borrifos de perfume, um copo de água gelada e estava
pronta. Respirou fundo e com passo firme
desceu as escadas. O jipe de Miguel já estava estacionado frente à porta. Um
sorriso enorme vinha lá de dentro. Maria devolveu o sorriso e entrou.
Parecia-lhe mentira o que estava a viver. Tanto o desejou, tanto o receou. “Boa
noite Miguel! Chegaste rápido. Presumo que não tiveste dificuldade em encontrar
a rua. Aqui é tudo pertinho e fácil.”
- Boa noite … foi fácil sim.
Sabes, há muitos anos que venho para estes teus domínios e já vou controlando a
coisa… Não vale a pena perguntar como estás, pois é visível. (gargalhada).
Quero agradecer-te por estares aqui, apesar da hora tardia. Podíamos ter
combinado de tarde, mas o facto é que não sabia bem a que horas iria
despachar-me de todos os compromissos e não queria estar a assumir horários que
não pudesse cumprir. Portanto, as minhas desculpas pela madrugada e pela
privação de mais algum tempo de sono…
Miguel tinha um timbre de voz
forte e meigo e uma boa energia contagiante. Para Maria o facto de serem duas
da manhã estava perfeitamente ultrapassado. Teria todo o dia de domingo para
recuperar as horas de sono.
O carro rolava lentamente na
estrada. Miguel parecia dominar o caminho. A conversa fluía, entre assuntos
mais sérios, brincadeiras, banalidades ou existencialismo. Bebia-lhe as
palavras. Aquele homem era um poço de sabedoria. Despretensioso, falava com um
à vontade, que era impossível não ficar presa naquelas conversas. Um fascínio
antigo, agora tornado realidade.
Reconheceu o caminho que estavam
a tomar ao saír da estrada principal.
- Não tenhas receio, Maria. Não
te vou fazer mal. Quando chegarmos ao sítio, vais perceber porque o escolhi
para falar contigo.
De facto, não se sentia receosa
fosse do que fosse. Apesar de ser a primeira vez que estavam a sós, no meio do
nada e de madrugada, Miguel inspirava-lhe extrema confiança. Uma admiração
longínqua no tempo e no espaço, que lhe tinha permitido estudar os traços de personalidade e perceber quem era a
pessoa que a levava estrada fora a deshoras, depois de um dia de trabalho
intenso.
- Chegámos. O carro não pode ir
mais além, mas o luar permite que nos vejamos e que olhemos a encosta e o rio a
correr ali em baixo. Sabes, este é um lugar de que gosto particularmente. Foi
há muitos anos que aqui vim pela primeira vez, meramente por acaso. Estava numa fase menos boa, a necessitar de
pausa e vim refugiar-me para estes lados. Um dia, comecei a caminhar com os
cães e vim aqui parar. Fiquei fascinado com a beleza da paisagem, agreste,
pura, autêntica. É um local que tem muito significado para mim, pois aqui
consegui descer à terra, fazer o trabalho de casa e recentrar-me.
O cheiro das estevas perfumava
deliciosamente aquele pedaço de terra, onde a lua cheia incidia sobre o rio que
corria tranquilamente. O silêncio enchia a alma de qualquer mortal sensível.
Lindo. “Fantástico Miguel. Como é possível que alguém de tão longe descubra
estes paraísos tão escondidos, que a maior parte das pessoas de cá nem sabe
onde ficam?.... Fabuloso mesmo.”
Miguel sentou-se no chão. Ficou
em silêncio algum tempo. Maria esforçou-se para não fazer barulho e não
interromper aquele momento. Olhava-o com os olhos a brilhar e o coração a
palpitar. Não que fosse uma estampa, mas era um homem interessante, com charme,
com atitude, com postura, com luz.
- Desculpa Maria. Sentar-me no
chão, sentir a terra e respirar esta
ar, foi mais forte do que eu. Senta-te
aqui também. Posso ir buscar qualquer coisa ao jipe, para não sujares a roupa.
“Não te preocupes com a roupa. A
máquina lava.”
Sentados no chão, cúmplices com a
terra, tendo as estevas, o rio e a lua por testemunhas, deram início a um
capítulo fascinante das suas vidas. Se
foi naquele local que Miguel encontrou alguma paz em tempos idos, foi também
naquele local que começou uma das mais bonitas histórias de amor, cumplicidade
e partilha.
- Sabes que neste preciso momento
estamos reduzidos à nossa essência? Não há estatutos, divisões, ou profissões.
Somos apenas nós, com os nossos defeitos, as nossas virtudes, as nossas impaciências,
as nossas complacências, os nossos medos, os nossos anseios, mas também a nossa
força e a nossa vontade. Somos o que há
de mais verdadeiro. Estamos num patamar de igualdade. É esse o poder da terra,
do chão que nos serve de âncora e nos prende. A química e a energia conjugam-se
naquilo que há de mais simples, que não é nada além da circunstância de
comungarmos de um mesmo espaço, de um mesmo propósito e de um mesmo querer.
Ouvia-o tecer reflexões sobre a simplicidade, sobre o
ser possível uma relação com base naquilo que é puro e desinteressado, sobre o
artificialismo reinante na sociedade e nos relacionamentos. Tão verdade e tão
bonito, não fossem os seus mundos completamente diferentes. Maria tinha
perfeita consciência da insignificância do mundo onde vivia e do qual gostava,
face ao mundo onde Miguel se movimentava, tão cheio de gente das mais variadas
áreas, tão cheio de agenda, tão cheio de solicitações várias. Era uma diferença
abissal, que sempre fez Maria recuar. Não que não soubesse ter a atitude e o
comportamento adequados, mas simplesmente porque aquele não era o seu mundo,
simples, com à vontade, sem espartilhos e sobretudo sem exposição. Gostava de
passar anónima.
- Espera só dois minutos. Vou
buscar uma coisa ao carro.
Uma garrafa de vinho branco
gelado, dois copos e uns salgados. “Não reparei que tinhas a geladeira ligada
no carro. Que bom! Vem mesmo a calhar!” – Por entre risos e duas ou três músicas
cantadas a dois, brindaram a um futuro desconhecido, mas que queriam deles,
independentemente dos mundos, das profissões e dos condicionalismos existentes.
Estavam cientes de que o caminho não seria fácil, mas sim o possível. Miguel
iria manter a sua vida itinerante, super-preenchida e exposta. Maria, iria
continuar a permanecer low profile, discreta e a tentar estabelecer o
equilíbrio entre dois mundos distintos, sem que dessem por ela. Era uma
dualidade desafiante para ambos.
A manhã começava a dar os
primeiros sinais. A brisa morna de um Junho quente passava-lhes pelo rosto,
afagando-lhes a expressão de felicidade. Que noite bonita…
Ao saír do carro, após um longo
beijo de até logo, Maria guardou o sorriso e a boa energia de Miguel. Seriam
eles a força nos momentos de saudade nos dois mundos divididos…
Maria e Miguel
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