O tempo era para mim um conceito
abstracto e vazio, tal a ansiedade que carregava comigo. Tinha sido um ano
extremamente difícil em termos pessoais e profissionais, trabalhando dias e
noites a fio, mal dormindo e tomando refeições de raspão.
Sentia-me como se carregasse nos
ombros a muralha de um qualquer castelo, e a cabeça começava a dar sinais de
esgotamento, que tentava enganar com cafés e ben u rons. Foi naquele fim de
tarde, que soou o alerta. Não conseguia pensar. Não conseguia sequer ouvir o
mínimo barulho, nem conseguia interagir. Uma estrondosa dor de cabeça
instalou-se e tudo me ecoava no interior do crânio, deixando-me numa aflição
nunca vista. Confesso que pela primeira vez na minha vida entrei em pânico. De
tão atordoado que estava só me apetecia gritar, ante a sensação de impotência
que sentia face ao burnout instalado,
declarado e assumido. Telefonei para o Zé João, meu amigo e o único
médico com quem podia conversar à vontade. Ele percebeu na minha voz que algo
não estava bem e não demorou quinze minutos a chegar. Resultado: uma semana em
casa, sem telefone e sem computador, a tentar fazer turn-off. Extremamente
doloroso. O ritmo a que me tinha habituado, não era compatível com a paragem
forçada. Meio sonolento em consequência de um ansiolítico que o Zé João
insistiu que tomasse, não conseguia equacionar os dias “vazios” de actividade.
Fazia uma espécie de carreiro entre a cama e o sofá, divergindo apenas para ir
à cozinha preparar alguma coisa para comer. Certo é que, ao final do quarto dia
começava a conviver melhor com a privação e até já me apetecia descer ao
jardim, ver o sol e apanhar ar.
O Zé João chegou para a sua
visita de acompanhamento diária e conduzi-o para o exterior. Recostámo-nos nas
espreguiçadeiras junto à piscina, e notei-lhe um ar de satisfação. “Mas que
bem! Estou a gostar de te ver fora de portas! Saberás dizer-me por acaso, há
quantos meses não vinhas aqui?” – É verdade. Não sabia ao certo. A pressão do
trabalho, as corridas, o facto de vir a casa apenas para dormir rapidamente e
regressar ao ritmo frenético, tinham-me afastado deste espaço, que percebo
agora, é de tão boa energia e bonito.
- Nem sei. Olha, hoje a seguir ao
almoço olhei pela janela e deu-me vontade de descer até aqui. Observei as hortênsias,
tão bonitas e frescas, andei descalço na relva e soube-me tão bem… senti-me um
estranho na minha casa. Se não fossem os cuidados do senhor António a tratar o
jardim, certamente estaria uma selva, se dependesse de mim. Sabes, sentei-me
naquele canto por baixo do jacarandá, senti o cheiro das plantas e consegui
alcançar alguma paz, que me fez pensar. De facto, tens razão quando me dizes
que existe algo mais além do trabalho, além das quinhentas reuniões, dos mails
e dos dossiers. Confesso que não me apercebi da passagem dos meses e de
repente, há um ano que os meus dias são consecutivamente cheios, desregrados e
cansativos, de tal forma, que acho que não vinha ao jardim há mais de oito
meses.
A retórica do meu amigo médico já
a sabia de cor. Desta vez comecei a dar-lhe razão, finalmente. Estava a
perceber a solidão e a frieza de uma vida demasiado cheia, que me privava de
coisas simples e prazenteiras que fazem parte da nossa existência. Tão simples
como o estar sentado debaixo do jacarandá e olhar a relva e as plantas. Tão
simples, como fazer um sumo e tomá-lo sob um raio de sol luminoso e
reconfortante. Tão simples ainda como estar recostado na espreguiçadeira a
falar com o Zé João sobre coisas banais. Acabámos por improvisar uma salada de
camarão e jantámos, por escolha sua, no jardim. Apesar da leveza da refeição,
consegui tirar dela um gosto que há muito tempo não sentia. Partilhar um
momento com tranquilidade, conversar e colocar em causa o próprio caminho, é um
excelente ponto de partida para um virar de página, que eu não queria ver, mas
que era necessário. No último ano não dei sequer hipótese ao meus amigos de se
aproximarem. Vivia num mundo por mim criado, onde qualquer sinal de invasão era
de imediato obstaculizado, refugiando-me sempre no escritório.
“ Sabes que estou a gostar da
forma como estás a falar hoje? Parece que houve um clique em ti Tó Pê! Diz-me
que é mesmo lá de dentro que estás a falar! Da forma como te encontrei no
escritório, custa acreditar que em tão poucos dias de afastamento conseguiste
já fazer uma boa parte do caminho. “
- Olha, hoje tem sido um dia
importante para mim. É o dia de aniversário da minha mãe. Lembrei-me disso
quando cheguei ao jardim e vi as hortênsias. As suas plantas preferidas que
cuidava com tanto carinho. Confesso-te que chorei. Chorei muito e, sentado no
chão, deitei contas à vida. A uma vida que não lhe faria sentido. A minha mãe
tinha uma forma muito própria de estar e viver. Procurava energia e luz nos
mínimos detalhes. Se uma adversidade tentava derrubá-la, ela erguia-se sempre,
com um sorriso luminoso e tentava abraçar o mundo e a vida, naquele seu jeito
místico mas sincero. Tive tantas saudades dela hoje… da palavra, do olhar, do
toque, até da reprimenda. Senti vontade
de fazer a mala e partir para os lugares por onde passeávamos. Tempos onde fui
tão feliz…Ainda hoje não consigo aceitar o seu desaparecimento tão repentino …
Foi no meio de todo este turbilhão que dei comigo a reflectir e a meditar sobre
o presente e sobre o futuro. Não quero andar medicado. Sei que neste momento
não havia alternativa, mas o trilho que estou a pensar, passa pelo tratamento
da alma com aquilo que me pode ajudar, e não com comprimidos para dormir, para
acordar , para aliviar ou seja lá o que for.
“Bem… parece-me que temos homem!
Tó Pê, a medicação que te dei, foi de choque, mas não será para continuar
eternamente, nem é isso que eu pretendo. Fico contente por saber que equacionas
outro caminho e outra terapia que, tenho que concordar, é bem melhor do que
qualquer pastilha química. Vais é fazer-me o favor de descansar mais dois ou
três dias aqui em casa, no mesmo registo. Depois falamos e faço-te um programa
de medicação mais ligeiro, para poderes ir abandonando conforme te disser. Nada
de aventuras precoces. E sabes uma coisa? Se achas que te faz bem, porque não
programas o tal passeio de que falaste? Desde que me vás dando notícias tuas,
obviamente…”
Era tudo o que queria ouvir da
boca do Zé João. Agora, gostava de estar
na minha casa. Sentia-me um privilegiado. Tinha-me ficado de herança após a
morte da mãe. Filho único, filho de pais divorciados, tinha sempre tido uma
relação muito cúmplice com a mãe, média burguesia e professora num colégio
propriedade da família.
- Até hoje não tinha tido este
sentimento de pertença a esta casa, nem da casa me pertencer. Sempre a vi como
o forte onde aportava quando me perdia em naufrágios diversos, e onde me
aguardava uma guerreira sempre pronta a ajudar e não deixar afundar. Percebi que essa força é
tão forte, que o que tenho a fazer é tão somente dar-lhe sequência o melhor que
conseguir. É a alma desta casa que me empurra. É o silêncio deste jardim que
hoje tem falado comigo.
“Os silêncios são um excelente
aliado no nosso caminho interior. Os silêncios podem dizer-nos tudo, se os soubermos
escutar”.
O resto da semana foi marcado por
várias conversas com o Zé João. Ia-lhe dando conta do meu estado e do meu
pensamento, mas também da minha enorme vontade de saír dali por uns dias. Acedeu. Qual menino da escola, fez-me
prometer que iria cumprir o tratamento à risca, e que ao mínimo sinal de
ansiedade lhe telefonaria. Que não andaria sozinho em locais isolados, nem
conduziria muitas horas. Resumindo, em conjunto elaborámos o programa quer do
tratamento, quer do passeio. Ele ficaria mais descansado e eu, que lhe tenho
uma estima e amizade enormes, não poderia deixá-lo preocupado e inseguro.
Rumei ao Douro. O meu rio de
eleição, onde aprendi a apreciar paisagens e silêncios na companhia da minha
mãe. Fiz os circuitos que nos eram
familiares, cruzei os mesmos caminhos, retive cada canto, cada momento e
comecei a tomar notas numa espécie de diário. A cada dia que passava sentia-me
mais liberto e mais leve. Após alguns dias por entre vinhas a serpentear o rio
nas suas encostas, num caminho lento e sem nunca o perder de vista, iniciei a
descida até ao Porto, que me aguardava esplendoroso, como era costume a minha
mãe adjectivá-lo. Era de noite e as luzes conferiam uma magia única àquela
cidade que a minha mãe tanto amara e me ensinara a amar. Estava cansado, mas
após um duche reconfortante e uma francesinha no Café Santiago, fui caminhar
pela baixa até à ribeira. Sentei-me no chão, no cais. Os barcos estavam
amarrados a descansar do dia de navegação. Os cafés e restaurantes começavam a
fechar. Os turistas retiravam-se. Por ali fui ficando. Recordei-me da noite em
que a minha mãe me falou sobre uma das lendas do Porto, ali mesmo naquele
lugar. Os dois sentados no cais. Sentia-me bem, tão bem, que apesar da hora
tardia tinha que partilhar com o Zé João aquele momento. Enviei-lhe uma foto do
rio onde o reflexo das muitas luzes, o tornava de uma rara beleza, e uma mensagem que dizia “ Este silêncio de
luz é o início de um novo tempo. Obrigado por teres permitido e ajudado no reencontro dos eus. Abraço!”
Tó Pê
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