A notícia chegou como uma bomba.
Confesso que nos primeiros minutos não consegui articular uma única palavra.
Tinha um nó enorme na garganta, a cabeça a latejar e um aperto no peito.
Transpirava mas estava gelada e trémula.
- Que se passa Maria? Estás
branca… Fala! Aconteceu alguma coisa? Estás de telefone na mão, hirta, como se
fosses uma estátua… O que foi?
Não conseguia falar. Corri para o
jardim e atirei-me para a piscina, ainda de pijama. Precisava sentir a água
fria despertar-me daquele pesadelo e refrescar-me a cabeça ardente.
- Maria! Não estás bem! Fala,
rapariga! Ana, Clara! Zé, Francisco, Rui! Cheguem aqui por favor! Passa-se algo
grave. Não estou a perceber nada…
Depois de umas quantas braçadas e
de mergulhar vezes sem conta, com todos em volta da piscina, cada um a gralhar
para seu lado, saí e embrulhei-me na toalha que a Ana me estendia. “Maria,
estás gelada. Toma, enxuga-te e vai mudar de roupa. Tem calma. Já percebi que
se passa alguma coisa grave. Respira fundo. Queres que vá contigo lá dentro?”
Não. Não queria ir lá dentro, nem queria mudar de roupa. Respirei fundo e
sentei-me.
- Amigos, aconteceu algo
terrível. Não estou a conseguir lidar com a situação, mas tenho que vos contar.
É transversal a todos. Estamos todos no mesmo barco. É mau, muito mau …
As lágrimas começaram a caír numa
torrente sem fim. A raiva, a revolta, o sentimento de injustiça apoderaram-se
de mim.
- Então Maria… tem calma … Clara,
trás um copo de chá frio com açúcar por favor.
Fui bebendo o chá e balbuciando
palavras que ninguém entendia.
- Carro? Mas qual carro? Os
carros estão todos à porta, excepto o do Paulo que deve ter passado a noite em
casa da Lúcia de novo.
Ante o meu grito, fez-se silêncio
… carro? Paulo? … “Aconteceu alguma coisa ao Paulo? Maria! Fala por favor!”
Com esforço e perfeitamente
dessincronizada, lá consegui dizer que tinha recebido um telefonema da GNR a
perguntar se conhecia um Paulo da Costa. Que esse Paulo tinha tido um acidente
do qual resultou a morte imediata dele e da pessoa que seguia com ele, uma
Lúcia Abreu. Que pediam que fosse ao hospital para fazer o reconhecimento dos
corpos e avisasse os familiares.
Do silêncio geral, passou-se ao
borburinho. Cada um a falar para seu lado. Que não, não era possível, como
tinha sido, onde tinha sido, porque tinha sido, que o Paulo e a Lúcia não
mereciam, que devia ser engano, Paulos da Costa pode haver muitos certamente …
- Gente, párem, por favor! É o
nosso Paulo e a nossa Lúcia … Eu explico, mas calem-se um minuto. É mau demais
e muito difícil para todos nós.
Era de facto muito doloroso. O
nosso grupo de amigos vinha de há mais de dez anos. Todos os anos arrendávamos
uma moradia grande nas férias e passávamos duas ou três semanas juntos. Éramos
cúmplices, amigos, irmãos, e os namorados e namoradas que se iam juntando ao
grupo, adquiriam o mesmo estatuto. Era
como se de repente nos sentíssemos amputados de uma parte de nós.
O Paulo despistou-se e foi
embater numa árvore. Excesso de velocidade ao que o guarda me disse. De facto,
sempre lhe conheci essa veia de adrenalina máxima ao conduzir. Gostava de
velocidade e os carros que tinha, sempre potentes, desafiavam-no no asfalto.
Muitas vezes lhe tínhamos chamado a atenção. Já não era nenhum garoto
inconsciente e o prazer de voar pela estrada, tinha que ser refreado. Além
disso, a sede de vida e o gosto com que desfrutava cada momento, por vezes
tiravam-lhe o raciocínio lógico das situações. Vivia cada dia e cada momento
como se fosse o último. Era um prazer imenso tê-lo como companhia. Nele não
existia negativismo, e se a vida era para ser vivida, então que se cumprisse
com o máximo prazer em cada momento. Amigo do seu amigo. Bem disposto. Jovial.
Educação extrema e cultura apurada. Os olhos verdes rasgados faziam furor no
sector feminino, que gostava de atiçar. Namoradas conheci-lhe muitas. Aliás,
era-lhe difícil fixar-se numa por muito tempo, pois a forma como vivia, não era
compatível com relações profundas e duradouras. Até que apareceu a Lúcia. Miúda
pacata, que sabia gerir-lhe as emoções e os impulsos e por quem se apaixonou
como nunca antes. Lúcia tinha casa própria não muito distante da nossa, e o
Paulo por lá pernoitava sempre que ela conseguia conciliar três ou quatro dias
de folga. Por isso não estranhávamos a sua ausência em casa de noite. Era uma
relação já com mais de ano e meio, e apesar de Lúcia ser uma mulher para quem o
valor da independência e da liberdade tinha um peso fundamental, o certo é que
conseguiu através da sua noção de liberdade, gerir a liberdade do Paulo e
torná-lo menos impulsivo e menos ávido de vida e de aventura. Gostava de os
ver. Uma relação que todos testemunhámos, que de início nos pareceu estranha,
mas que estava a dar frutos. “Contigo vou até ao fim do mundo”, dissera-lhe
Paulo num dos nossos últimos jantares. Ironia do destino ….
O desespero era geral.
Cabisbaixos, dirigimo-nos ao hospital, para aquele momento terrível da
confirmação.
Regressados a casa, depois das
formalidades, a única vontade que tínhamos era a de acabar com as férias. Não
fosse a intervenção do Rui, e as malas eram feitas naquele momento.
- Meus queridos amigos, estamos
todos muito tristes e com uma enorme sensação de vazio. Pode parecer a maior
estupidez, neste momento, mas tenho vindo a pensar qual seria o desejo do Paulo
no dia de hoje. De facto nos milhões de conversas que tivemos, a morte nunca
foi tema. Estava muito longe dele, tal a paixão que tinha pela vida. Por isso,
e se me colocar no pensamento dele, acredito que não quereria que estivéssemos
tristes e derrotados como estamos. O Paulo está vivo nas nossas memórias, com a
sua alegria, o seu charme, a sua bondade e a sua ponta de loucura sã, de que
tanto gostamos e que tanto nos puxou para cima sempre que estivemos em momentos
menos bons. Penso que a maior homenagem que poderemos fazer-lhe é celebrarmos a
vida. A dele e a da Lúcia. Não haverá choros, não haverá coroas de flores a
debitar um cheiro sinistro de funeral. Vamos organizar rapidamente um vídeo com
os melhores momentos do Paulo e da Lúcia, vamos projectá-lo na quinta dele e
será lá e desta forma que nos despediremos deles antes de os devolvermos à
natureza. Estou certo de que ambas as famílias vão aceitar esta ideia. Afinal,
somos um todo.
…
Anoiteceu. Sentada na varanda da
casa da quinta do Paulo, olho para o rio, lá em baixo. Corre sereno. Um raio de
lua ilumina-o. Sombras parecem dançar. Na minha cabeça ouço o Paulo cantar na
sua voz sincopada e depois dar uma das suas gargalhadas “ passei ao largo de
uma bela carreira de cantor” – tantas vezes assim foi …
As sombras continuam a dançar sob
a luz do luar – há pessoas imortais!...
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