quinta-feira, 17 de setembro de 2020

Imortal


A notícia chegou como uma bomba. Confesso que nos primeiros minutos não consegui articular uma única palavra. Tinha um nó enorme na garganta, a cabeça a latejar e um aperto no peito. Transpirava mas estava gelada e trémula.
- Que se passa Maria? Estás branca… Fala! Aconteceu alguma coisa? Estás de telefone na mão, hirta, como se fosses uma estátua… O que foi?
Não conseguia falar. Corri para o jardim e atirei-me para a piscina, ainda de pijama. Precisava sentir a água fria despertar-me daquele pesadelo e refrescar-me a cabeça ardente.
- Maria! Não estás bem! Fala, rapariga! Ana, Clara! Zé, Francisco, Rui! Cheguem aqui por favor! Passa-se algo grave. Não estou a perceber nada…
Depois de umas quantas braçadas e de mergulhar vezes sem conta, com todos em volta da piscina, cada um a gralhar para seu lado, saí e embrulhei-me na toalha que a Ana me estendia. “Maria, estás gelada. Toma, enxuga-te e vai mudar de roupa. Tem calma. Já percebi que se passa alguma coisa grave. Respira fundo. Queres que vá contigo lá dentro?” Não. Não queria ir lá dentro, nem queria mudar de roupa. Respirei fundo e sentei-me.
- Amigos, aconteceu algo terrível. Não estou a conseguir lidar com a situação, mas tenho que vos contar. É transversal a todos. Estamos todos no mesmo barco. É mau, muito mau …
As lágrimas começaram a caír numa torrente sem fim. A raiva, a revolta, o sentimento de injustiça apoderaram-se de mim.
- Então Maria… tem calma … Clara, trás um copo de chá frio com açúcar por favor.
Fui bebendo o chá e balbuciando palavras que ninguém entendia.
- Carro? Mas qual carro? Os carros estão todos à porta, excepto o do Paulo que deve ter passado a noite em casa da Lúcia de novo.
Ante o meu grito, fez-se silêncio … carro? Paulo? … “Aconteceu alguma coisa ao Paulo? Maria! Fala por favor!”
Com esforço e perfeitamente dessincronizada, lá consegui dizer que tinha recebido um telefonema da GNR a perguntar se conhecia um Paulo da Costa. Que esse Paulo tinha tido um acidente do qual resultou a morte imediata dele e da pessoa que seguia com ele, uma Lúcia Abreu. Que pediam que fosse ao hospital para fazer o reconhecimento dos corpos e avisasse os familiares.
Do silêncio geral, passou-se ao borburinho. Cada um a falar para seu lado. Que não, não era possível, como tinha sido, onde tinha sido, porque tinha sido, que o Paulo e a Lúcia não mereciam, que devia ser engano, Paulos da Costa pode haver muitos certamente …
- Gente, párem, por favor! É o nosso Paulo e a nossa Lúcia … Eu explico, mas calem-se um minuto. É mau demais e muito difícil para todos nós.
Era de facto muito doloroso. O nosso grupo de amigos vinha de há mais de dez anos. Todos os anos arrendávamos uma moradia grande nas férias e passávamos duas ou três semanas juntos. Éramos cúmplices, amigos, irmãos, e os namorados e namoradas que se iam juntando ao grupo, adquiriam o mesmo estatuto.  Era como se de repente nos sentíssemos amputados de uma parte de nós.
O Paulo despistou-se e foi embater numa árvore. Excesso de velocidade ao que o guarda me disse. De facto, sempre lhe conheci essa veia de adrenalina máxima ao conduzir. Gostava de velocidade e os carros que tinha, sempre potentes, desafiavam-no no asfalto. Muitas vezes lhe tínhamos chamado a atenção. Já não era nenhum garoto inconsciente e o prazer de voar pela estrada, tinha que ser refreado. Além disso, a sede de vida e o gosto com que desfrutava cada momento, por vezes tiravam-lhe o raciocínio lógico das situações. Vivia cada dia e cada momento como se fosse o último. Era um prazer imenso tê-lo como companhia. Nele não existia negativismo, e se a vida era para ser vivida, então que se cumprisse com o máximo prazer em cada momento. Amigo do seu amigo. Bem disposto. Jovial. Educação extrema e cultura apurada. Os olhos verdes rasgados faziam furor no sector feminino, que gostava de atiçar. Namoradas conheci-lhe muitas. Aliás, era-lhe difícil fixar-se numa por muito tempo, pois a forma como vivia, não era compatível com relações profundas e duradouras. Até que apareceu a Lúcia. Miúda pacata, que sabia gerir-lhe as emoções e os impulsos e por quem se apaixonou como nunca antes. Lúcia tinha casa própria não muito distante da nossa, e o Paulo por lá pernoitava sempre que ela conseguia conciliar três ou quatro dias de folga. Por isso não estranhávamos a sua ausência em casa de noite. Era uma relação já com mais de ano e meio, e apesar de Lúcia ser uma mulher para quem o valor da independência e da liberdade tinha um peso fundamental, o certo é que conseguiu através da sua noção de liberdade, gerir a liberdade do Paulo e torná-lo menos impulsivo e menos ávido de vida e de aventura. Gostava de os ver. Uma relação que todos testemunhámos, que de início nos pareceu estranha, mas que estava a dar frutos. “Contigo vou até ao fim do mundo”, dissera-lhe Paulo num dos nossos últimos jantares. Ironia do destino ….
O desespero era geral. Cabisbaixos, dirigimo-nos ao hospital, para aquele momento terrível da confirmação.
Regressados a casa, depois das formalidades, a única vontade que tínhamos era a de acabar com as férias. Não fosse a intervenção do Rui, e as malas eram feitas naquele momento.
- Meus queridos amigos, estamos todos muito tristes e com uma enorme sensação de vazio. Pode parecer a maior estupidez, neste momento, mas tenho vindo a pensar qual seria o desejo do Paulo no dia de hoje. De facto nos milhões de conversas que tivemos, a morte nunca foi tema. Estava muito longe dele, tal a paixão que tinha pela vida. Por isso, e se me colocar no pensamento dele, acredito que não quereria que estivéssemos tristes e derrotados como estamos. O Paulo está vivo nas nossas memórias, com a sua alegria, o seu charme, a sua bondade e a sua ponta de loucura sã, de que tanto gostamos e que tanto nos puxou para cima sempre que estivemos em momentos menos bons. Penso que a maior homenagem que poderemos fazer-lhe é celebrarmos a vida. A dele e a da Lúcia. Não haverá choros, não haverá coroas de flores a debitar um cheiro sinistro de funeral. Vamos organizar rapidamente um vídeo com os melhores momentos do Paulo e da Lúcia, vamos projectá-lo na quinta dele e será lá e desta forma que nos despediremos deles antes de os devolvermos à natureza. Estou certo de que ambas as famílias vão aceitar esta ideia. Afinal, somos um todo.
Anoiteceu. Sentada na varanda da casa da quinta do Paulo, olho para o rio, lá em baixo. Corre sereno. Um raio de lua ilumina-o. Sombras parecem dançar. Na minha cabeça ouço o Paulo cantar na sua voz sincopada e depois dar uma das suas gargalhadas “ passei ao largo de uma bela carreira de cantor” – tantas vezes assim foi …
As sombras continuam a dançar sob a luz do luar – há pessoas imortais!...

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