quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Alma


- Tão sossegada a olhar o horizonte… em que pensas Kica querida?
“Em ti…”
- Em mim, como? Bem ou mal?
“Não posso pensar mal. Não tenho razões para isso. Aliás, como poderia pensar algo menos bom de alguém que me tem feito tão bem?...”
Manel, envolveu-lhe o pescoço e os ombros com os seus braços e  beijou-a na testa. Olhou o luar, de um brilho intenso, e manteve-se assim. Kica recostou-se num afago meigo e doce.
- Posso saber onde é que eu andava então no teu pensamento?
“ Podes claro. Sabes, têm sido tão bons estes dias nesta paz de vista maravilhosa, que já tenho saudades…”
- Acredita que para mim tem sido uma bênção esta semana contigo. Por aqui ficaria mais uns tempos. Fazes-me tão bem, minha querida, mesmo quando estamos em desacordo ou refilas…
“Ahahah, olha lá o meu mau feitio … deves ser a primeira pessoa que me diz que a minha refilice lhe faz bem! Só tu mesmo …
- Falo a sério. A forma simples como colocas os assuntos, como equacionas a vida, tem-me feito pensar, e por isso me sinto tão bem ao teu lado. Já falámos bastantes vezes sobre as nossas diferenças de vida e de estar, mas no fundo, penso que toda a nossa relação se resume àquilo que é a simplicidade e a autenticidade. Gosto do teu despretensiosismo e da tua frontalidade, ainda que saibas que eu possa pensar de outra forma. Não receias dizer o que te vai na alma, e aprecio isso. Não gosto de pessoas que dizem sempre que sim, apenas para fazer jeito, mas que ficam a remoer. Nem mesmo daquelas que de tão ocas que são,  não conseguem ter uma opinião formada e deixam-se ir embaladas conforme o vento sopra. Para mim és um desafio que nunca tinha vivido. És uma luz que se acende quando o breu se instala e me desperta para o caminho.
“ Bem, com tantos elogios, fico sem jeito… Mas olha, eu sou assim, como vês. Não me vergo para fazer jeitos, tão pouco me calo se acho que devo intervir. Prezo a sinceridade e a honestidade acima de tudo e gosto das coisas simples da vida, como já percebeste. Estar aqui contigo, longe da civilização, a percorrer caminhos que nem imaginava,  comer em tascas de pura genuinidade, conversarmos horas a fio sentados no chão ou num muro qualquer, tem sido tudo aquilo que eu gosto e que eu sou.  Lido mal com frivolidades e aparências. Fujo delas a sete pés. Gosto de passar sem que reparem em mim, por forma a poder manter-me sempre quem sou em qualquer lugar e em qualquer ocasião. Podes até pensar que serei um pouco bicho-do-mato, o que possivelmente terá a sua pontinha de verdade, mas o certo é que ou estou bem, ou não estou. Cheguei àquele patamar em que não faço nada que vá contra mim.”
- É isso Kica querida. É isso que me encanta e fascina em ti. Seres tu. Como deves calcular, muitas pessoas têm cruzado a minha vida, mas sempre com um objectivo. Cansei-me dessa vida, dessa gente. Prefiro este recato, nosso, cúmplice, verdadeiro e simples, do que todos os outros caminhos que tenho pisado. Sei bem que dentro de dias voltaremos aos nossos mundos reais e que esta paz acabou. Mas enquanto a temos, e teremos mais vezes, se a vida o permitir, desfrutemos sem angústias e sem sofrermos por antecipação.
“ Não estou a sofrer por antecipação, meu amor. Aliás, estou muito, muito bem, como podes ver. Estava apenas a pensar que me fazes falta. Quando os rios e as pontes nos afastarem, o vazio vai aparecer, embora atenuado por tão boas memórias que vão viver comigo. Serão elas a dar-me alento para prosseguir os meus dias alucinadamente preenchidos. Já sinto falta desta paisagem, deste ar, deste cantinho tão maravilhosamente nosso. “
- Anda, vamos dar uma volta ao luar. Vou lá dentro buscar agasalhos.
Um gentleman. Simpático, educado, culto, divertido, temperamental e por vezes impaciente. Eis o homem por quem Cristina (Kica para Manel) se tinha apaixonado. Um amor sem explicação uniu-os, sabendo ambos de antemão quão difícil seria terem uma vida “normal” de casal. Talvez tivesse sido esse o desafio para ambos. Sobreviver a um relacionamento distante, gastos que estavam de relacionamentos moribundos e que nada lhes acrescentavam. Tinham as vidas profissionais separadas por muitos quilómetros, intensas e imprevisíveis, o que lhes dificultava a previsibilidade de momentos a dois. Aproveitavam todas as alturas em que havia algum vazio nas suas actividades para viverem dias só deles, longe de tudo e de todos, e onde só os dois existiam.
A noite estava luminosa. Uma aragem ligeira fazia lembrar que o Outono se aproximava. Caminharam por entre os vinhedos, juntos, na alma, no coração, e na paixão. O silêncio da encosta quase deixava ouvir a conversa das estrelas. Entre eles criaram histórias de pessoas improváveis, tão improváveis quanto eles,  e que mais tarde seriam transcritas. Entre o beijo, o afago e a gargalhada, tiveram a certeza de si. Almas gémeas? Não … não existem. Existe sim o gosto, a essência, a cumplicidade e um caminho de alma a percorrer…
Kica e Manel

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