Um fim de tarde que tinha tudo
para ser perfeito. Lugar privilegiado aquele onde serenamente contemplava a natureza.
No cume da serra, onde o único barulho era o dos pássaros e o de alguns cães
das quintas em redor, enebriava-me de paisagem, de céu e de sol. No cadeirão
virado a poente ajeitava-me para desfrutar e fotografar o imenso pôr-do-sol que
se adivinhava. Olhando para norte, e depois do imenso vale onde povoados
pintalgavam uma enorme mancha verde e castanha, erguia-se a mãe das serras
portuguesas, a impôr-se à região beirã.
Mais uma vez olhei para o seu recorte, e me lembrei de tantas subidas
feitas por estradas estreitas e curvas. Gostava mais da serra no Verão.
Definitivamente não sou pessoa de frio, nem de neve, apesar de lhe reconhecer
uma beleza desafiante, e de me ter já divertido bastante em escorregadelas e
tentativas de esquiar. No entanto, é a paisagem agreste da serra que me cativa.
As pedras, as encostas onde podemos imaginar e adivinhar figuras, a componente
selvagem.
Se a paz existia, era ali naquele
lugar, onde o tempo parecia não avançar, e onde a chamada “civilização” ficava
distante, sem televisão que trouxesse notícias e imagens negativas, nem
telefone, por não existirem cabos até à quinta. Eram minha companhia além dos
proprietários, alguns hóspedes que procuravam essa mesma paz, os livros que
trazia, um ou dois cadernos, a máquina fotográfica e um rádio de pilhas que se
encarregava de me actualizar face ao mundo, mas que, sobretudo, me trazia para
companhia as vozes e as músicas dos meus artistas preferidos, e que ajudavam de
alguma forma a compor uma parte da banda sonora da minha vida.
Quando o liguei naquela tarde,
alguém lia as notícias. Escutei-as e fiquei melancólica, como se uma espécie de
luto se apoderasse de mim. Eram sobre a guerra na Bósnia. Mais um ataque a
Sarajevo. Mais um acto de terror, de destruição maciça e de mortes. Mortes de
pessoas inocentes, numa terra à procura de sarar as feridas das duas Guerras
Mundiais que a devastaram. Resilientes e determinados, os seus habitantes
deitaram mãos à obra na sua reconstrução, tornando-a num importante centro
industrial, mas passadas poucas décadas outro capítulo de devastação estava a
escrever-se na história da humanidade.
Olhei para o vale. Imaginei aquela
cidade recheada de história, ali instalada. Em redor montanhas. Como é possível
alguém tentar defender-se ou escapar, quando das colinas que a cercam chovem
bombas, morteiros e mísseis de forma
aleatória, destruindo tudo? Missão hercúlea e quase impossível para uma cidade
recém reconstruída e sem meios equivalentes que lhe permitam defender-se.
Lembrei-me da última viagem que
fiz a Sarajevo. Foi em 1990. Já nessa altura se notava a força da reconstrução
e do desenvolvimento. Nos quatro dias que lá passei tive a oportunidade de
privar com algumas pessoas. Simpáticos,
cultos, determinados, mas sofridos. Eram bem evidentes os traumas e as
dificuldades destas gentes. A alma da cidade
era de uma beleza misto de história, misto da vivência dos seus habitantes.
Em nome de quem se cometem estes
crimes? Em nome de quem se tiram vidas a inocentes, se privam crianças de ter
um futuro, se hipotecam economias com tanques de guerra e canhões assassinos?
Alguém tem o direito de ocupar o espaço dos outros numa carnificina
inqualificável? E o Mundo, tal como o conhecemos demite-se e deixa que esta
barbárie aconteça? Onde estão as instituições para a paz? Onde estão as
instituições de solidariedade para apoiar estas gentes sofridas e necessitadas
de tudo? Fiquei profundamente incomodada
e revoltada.
Ao pensar nos factos que
desencadeiam estas situações, concluo que estamos nas mãos de pessoas
perigosas, profundamente desequilibradas psicologicamente e mal amadas. A sua
defesa interior refugia-se na arrogância,
na prepotência, numa ambição desmedida, e numa falta de ética moral
aberrante e incomensurável.
Desliguei o rádio. Triste,
senti-me impotente. Queria gritar. Gritar bem alto a revolta, a injustiça a que
aquele povo estava novamente sujeito.
Esqueci as fotografias do
pôr-do-sol. Tirei o caderno do saco e pus-me a escrever. Sabia que não seriam
muitas pessoas a ler-me, mas não podia ficar quieta nem calada. Conhecia uma
meia dúzia de jornalistas em algumas redacções, e com um pouco de sorte
conseguiria uma publicação ainda que num jornal ou revista de segunda ou
terceira categoria. Também podia fotocopiar o artigo e distribuí-lo. Seria uma
forma de sensibilizar as pessoas para a catástrofe humanitária em Sarajevo. Era
impossível ficar indiferente. Era esta a única forma, ao meu alcance, de fazer
a minha parte, por aqueles que diariamente com asas de anjo, subiam ao céu.
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