quinta-feira, 9 de abril de 2020

Asas de Anjo


Um fim de tarde que tinha tudo para ser perfeito. Lugar privilegiado aquele onde serenamente contemplava a natureza. No cume da serra, onde o único barulho era o dos pássaros e o de alguns cães das quintas em redor, enebriava-me de paisagem, de céu e de sol. No cadeirão virado a poente ajeitava-me para desfrutar e fotografar o imenso pôr-do-sol que se adivinhava. Olhando para norte, e depois do imenso vale onde povoados pintalgavam uma enorme mancha verde e castanha, erguia-se a mãe das serras portuguesas, a impôr-se à região beirã.  Mais uma vez olhei para o seu recorte, e me lembrei de tantas subidas feitas por estradas estreitas e curvas. Gostava mais da serra no Verão. Definitivamente não sou pessoa de frio, nem de neve, apesar de lhe reconhecer uma beleza desafiante, e de me ter já divertido bastante em escorregadelas e tentativas de esquiar. No entanto, é a paisagem agreste da serra que me cativa. As pedras, as encostas onde podemos imaginar e adivinhar figuras, a componente selvagem.
Se a paz existia, era ali naquele lugar, onde o tempo parecia não avançar, e onde a chamada “civilização” ficava distante, sem televisão que trouxesse notícias e imagens negativas, nem telefone, por não existirem cabos até à quinta. Eram minha companhia além dos proprietários, alguns hóspedes que procuravam essa mesma paz, os livros que trazia, um ou dois cadernos, a máquina fotográfica e um rádio de pilhas que se encarregava de me actualizar face ao mundo, mas que, sobretudo, me trazia para companhia as vozes e as músicas dos meus artistas preferidos, e que ajudavam de alguma forma a compor uma parte da banda sonora da minha vida.
Quando o liguei naquela tarde, alguém lia as notícias. Escutei-as e fiquei melancólica, como se uma espécie de luto se apoderasse de mim. Eram sobre a guerra na Bósnia. Mais um ataque a Sarajevo. Mais um acto de terror, de destruição maciça e de mortes. Mortes de pessoas inocentes, numa terra à procura de sarar as feridas das duas Guerras Mundiais que a devastaram. Resilientes e determinados, os seus habitantes deitaram mãos à obra na sua reconstrução, tornando-a num importante centro industrial, mas passadas poucas décadas outro capítulo de devastação estava a escrever-se na história da humanidade.
Olhei para o vale. Imaginei aquela cidade recheada de história, ali instalada. Em redor montanhas. Como é possível alguém tentar defender-se ou escapar, quando das colinas que a cercam chovem bombas,  morteiros e mísseis de forma aleatória, destruindo tudo? Missão hercúlea e quase impossível para uma cidade recém reconstruída e sem meios equivalentes que lhe permitam defender-se.
Lembrei-me da última viagem que fiz a Sarajevo. Foi em 1990. Já nessa altura se notava a força da reconstrução e do desenvolvimento. Nos quatro dias que lá passei tive a oportunidade de privar com  algumas pessoas. Simpáticos, cultos, determinados, mas sofridos. Eram bem evidentes os traumas e as dificuldades destas gentes. A  alma da cidade era de uma beleza misto de história, misto da vivência dos seus habitantes.
Em nome de quem se cometem estes crimes? Em nome de quem se tiram vidas a inocentes, se privam crianças de ter um futuro, se hipotecam economias com tanques de guerra e canhões assassinos? Alguém tem o direito de ocupar o espaço dos outros numa carnificina inqualificável? E o Mundo, tal como o conhecemos demite-se e deixa que esta barbárie aconteça? Onde estão as instituições para a paz? Onde estão as instituições de solidariedade para apoiar estas gentes sofridas e necessitadas de tudo?  Fiquei profundamente incomodada e revoltada.
Ao pensar nos factos que desencadeiam estas situações, concluo que estamos nas mãos de pessoas perigosas, profundamente desequilibradas psicologicamente e mal amadas. A sua defesa interior refugia-se na arrogância,  na prepotência, numa ambição desmedida, e numa falta de ética moral aberrante e incomensurável.
Desliguei o rádio. Triste, senti-me impotente. Queria gritar. Gritar bem alto a revolta, a injustiça a que aquele povo estava novamente sujeito.
Esqueci as fotografias do pôr-do-sol. Tirei o caderno do saco e pus-me a escrever. Sabia que não seriam muitas pessoas a ler-me, mas não podia ficar quieta nem calada. Conhecia uma meia dúzia de jornalistas em algumas redacções, e com um pouco de sorte conseguiria uma publicação ainda que num jornal ou revista de segunda ou terceira categoria. Também podia fotocopiar o artigo e distribuí-lo. Seria uma forma de sensibilizar as pessoas para a catástrofe humanitária em Sarajevo. Era impossível ficar indiferente. Era esta a única forma, ao meu alcance, de fazer a minha parte, por aqueles que diariamente com asas de anjo, subiam ao céu.

Sem comentários:

Enviar um comentário