quinta-feira, 16 de abril de 2020

Estrela


Às vezes dou comigo a pensar como teria sido a minha vida se não te tivesse conhecido, e percebo que muitas coisas não fariam sentido. Nem eu faria sentido… Lembro-me tão bem do dia em que nos conhecemos. Fazia eu o percurso diário entre casa e o clube onde,  nos fins de tarde, enquanto estrangeiros com côr de lagosta se rendiam ao um bom vinho branco ou rosé português por entre gargalhadas estridentes, eu dava asas à minha imaginação numa tela cuidadosamente colocada no cavalete, e onde o pincel ia abrindo caminhos ao sabor das cores da paleta, do momento, do ambiente e da motivação.
Tinha parado para cumprimentar um amigo de longa data que não via há alguns anos, e com o entusiasmo da conversa e do encontro, acabei por me esquecer da mochila, encostada ao muro da praia e segui o meu caminho normal em passo apressado. Tu vieste a correr atrás de mim, e qual anjo da guarda, entregaste-me um dos meus bens mais preciosos no momento. Era lá que guardava as tintas e os pincéis com que, como me dirias mais tarde, “escrevia poesia” nas telas. Reconhecido e atordoado agradeci-te. “ Muito obrigado. Nem imagina o quanto lhe agradeço. Há momentos de sorte. Encontrei um amigo que não via há anos e com tanta conversa, acabei por me esquecer da mochila. Ainda há pessoas de bem, como a menina. Sem isto não conseguiria trabalhar hoje.” - Não tem de quê. Estava sentada no muro e reparei que quando se despediu do seu amigo a deixou esquecida. Só tinha que lha entregar. Ainda por cima, se me diz que é o seu material de trabalho, muito mais importante. Fico contente por ter contribuído para que o seu dia não ficasse estragado.
Um sorriso enorme emoldurado por um rosto bronzeado e cabelo castanho apanhado, mas com meia dúzia de falripas desalinhadas, não sei se de propósito. As mulheres por vezes esmeram-se num look que pensamos ser casual, mas onde tudo é estudado. Não consegui ver a cor dos teus olhos, pois os óculos com lentes escuras e espelhadas, não me permitiam passar para o lado de lá.  A tua voz era calma e clara. Gostei da tua dicção e imaginei-te a minha musa para esse dia. “ E não queira saber de que forma contribuíu. Nem sei como agradecer.” - Não precisa agradecer. Fiz o meu dever. Desejo-lhe uma boa tarde de trabalho. Adeus.
Rodopiaste sobre os calcanhares e viraste costas. Tinhas um andar elegante num vestido de praia branco, solto e que te realçava o bronzeado. Eras o anjo da guarda perfeito. Segui para o clube. Nessa tarde tinham convidado um pianista e iríamos ensaiar um experiência nova. Eu tentaria compor a minha tela e nela traduzir imagens que o cérebro me transmitia tendo como fonte o som que vinha das teclas. Seria o desafiar dos sentidos em modo live. Sentia-me bem, leve, inspirado e o trabalho fluíu. A tua boa energia tinha-me contagiado e eu estava a precisar dela… Um artista, aspirante a artista, pseudo-artista ou fosse lá o que me quisessem chamar, tinha grandes dificuldades em sobreviver e ser reconhecido, num país onde a cultura é acessório, e onde é visto como uma pessoa de um sub mundo algo “parasita” e de outra dimensão. O artista era uma pessoa “estranha” aos olhos da sociedade. Esse era o motivo de grande parte da minha inconstância, das minhas semi-depressões, das minhas fugas e da constante procura por algo novo que me trouxesse boas vibes.
- Very nice work, disseram uns; ohhh… amazing picture, disseram outros; très joli! J´aime beaucoup ce travail! Vous avez l´âme d´un grand artiste! - Fiquei contente com os comentários e o meu ego sentiu-se mais aconchegado. No entanto, o sucesso desse dia devia-se a ti.
A direcção do clube decidiu repetir o formato semanalmente até final de Outubro. Face à boa receptividade por parte dos clientes, decidiu também que com a minha concordância, os quadros seriam leiloados entre os visitantes. Foi assim que consegui amealhar alguns escudos extra que permitiram, mais tarde,  partir contigo mundo fora.
Acabada a maratona estial, arrendei um quarto em Lisboa, próximo do Largo de Camões, numas águas furtadas de um prédio centenário e algo decrépito. Era o mais económico dos que tinha visto, e a dona da casa permitia que cozinhasse as minhas refeições, evitando gastos extra nos restaurantes ou nas tascas. Afinal, a minha passagem pela capital era de pouca dura. Apenas o tempo suficiente para me organizar e partir em viagem à procura de outros mundos, de outras fontes de inspiração, de outras técnicas e de novos conhecimentos.
- Boa tarde. Desculpe, mas estava sentada naquela mesa e acho que o reconheci pela mochila. É o senhor a quem devolvi a esperança numa tarde de verão no Algarve, certo?
Upssss….. ali estavas tu! O meu pensamento tinha divagado tanto durante estes meses…. Quem seria a musa que nunca mais tinha avistado? Não que não tivesse percorrido toda a praia, toda a localidade, todos os cafés e bares, mas nada… de ti nem sinal… contigo sonhei, contigo falei em silêncio, a ti pintei, a ti devo um novo recomeço. “ Olá! Boa tarde! Sou exactamente eu! Que bom voltar a encontrá-la! Não nos cruzámos mais lá pelo reino dos Algarves… Quero que saiba que lhe estou extremamente agradecido. Quer sentar-se?”
E pronto! Ali ficámos a conversar na esplanada da Brasileira, entre cafés, águas e dois duchesses maravilhosos e cremosos.
Eva. Quando me disseste o teu nome, embora não me sentisse na pele de um qualquer Adão, pensei que era o nome perfeito para ti. Eva, fazia-me sentido.
Fiquei a saber da tua sensibilidade artística, que não olhavas os artistas como gente “estranha e parasita”, e que te movimentavas com um certo à vontade nesses meios. Questão de educação e de cultura. Quando te contei da minha intenção de viajar e descobrir novos mundos, o teu saber e o teu entusiasmo redobraram-me a expectativa e a ânsia de partir aumentou. Sabias tantas coisas… que gosto imenso falar contigo. Nem se dava pelo tempo passar.
A essa tarde na Brasileira seguiram-se outras tantas, em cafés, esplanadas, bares, jardins, museus; acho que tomámos Lisboa de assalto e que em simultâneo, de assalto também os nossos sentidos e os nossos sentimentos iam sendo tomados. Entre nós cresceu muito mais do que uma amizade e uma cumplicidade ímpar. Floresceu e cresceu uma paixão bonita, assente na admiração e no respeito mútuos. Não nego que me ensinaste muito, que me ajudaste a desbravar um mundo que eu apenas conhecia pela rama. A ti devo os horizontes que fui descobrindo, uma nova forma de viver e encarar a vida, e as muitas noites e dias de amor, partilha, entrega e carinho, em forma de sinceridade e pureza.
Dei-te o melhor de mim, aquilo que nem eu sabia existir no esconderijo mais profundo do meu ser. Sei que te dei paz, amor infindo e intenso vivido entre quartos de hoteis ou de casas que íamos arrendando quando a permanência num local era mais demorada, fosse ela Paris, Nice, Roma, Florença, Atenas, Londres, ou qualquer outra cidade ou vila onde nos sentíssemos felizes.  Dei-te o meu corpo, a minha alma,  o meu ser. Ambos crescemos por dentro e percebemos o sentido das nossas vidas.
Nunca fizemos promessas nem juras de amor eterno. As promessas esfumam-se no ar e nós preferíamos viver aquilo que cada dia nos dava. Sabíamos que os nossos afazeres profissionais por vezes nos trocavam as voltas, e se eu precisava de paz e um certo ambiente para criar e pintar, o ritmo alucinante das gravações dos teus takes no cinema deixavam-te frenética, nervosa e faziam perigar a minha liberdade de estar e de criar. Enfrentámos momentos difíceis, que com inteligência soubemos superar. Afinal os dois éramos um só, não apenas quando unos fazíamos do chão o nosso quadro de amor e paixão, mas também no cenário e no palco que escolhemos seguir.
Hoje, recordo-te com uma saudade imensa, indescritível. Abri o teu roupeiro e não resisti a pegar num dos teus vestidos que mais gosto, aquele que tinhas vestido no dia em que nos conhecemos e que tinha lugar cativo na mala de viagem, sempre que mudávamos de terra. Uma espécie de amuleto que transportavas sempre, embora já não o usasses. Ah como o teu cheiro impregna os tecidos, os sentidos e todo o ambiente onde tu estás.
Ainda enebriado pelo teu perfume sentei-me no terraço.  Olhei para a imensidão de estrelas e lá estavas tu. Cintilavas mais do que todas as outras, com a luz que te é tão própria e tão tua, como se estivesses a piscar-me o olho. Boa noite, meu amor.
Jorge e Eva

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