quinta-feira, 23 de abril de 2020

Leviana Sedução

Ali estava eu sentada na esplanada do Café “Les Peintres”. Na mesa um café duplo em chávena escaldada, um croissant que fazia as delícias de qualquer mortal, e o Le Monde, o meu suporte informativo e o meu elo de ligação ao mundo.  Tinha chegado há três meses a Paris, cidade que sempre me fascinou desde criança, talvez por aos cinco anos de idade ter começado as aulas de francês, língua que me acompanhou ao longo da vida até à conclusão dos estudos universitários, e me abriu os horizontes para a cultura, valores e história de França. Lembro-me de a partir dos  meus oito anos, me dirigir à Biblioteca Municipal e procurar livros de banda desenhada escritos em francês, e gradualmente as minhas preferências irem recaindo sobre livros mais “sérios”, o que levava a minha tia, a bibliotecária na altura, a fazer requisições em nome dela, já que eu era demasiado jovem para aquelas literaturas.  Eu e um grupo de amigas tínhamos tal fixação por tudo o que dizia respeito a França , que chegámos ao ponto em que a nossa  conversa era em francês, as refeições eram inspiradas na culinária francesa, as revistas que encomendávamos na papelaria eram obviamente sobre os artistas franceses, e tentávamos copiar os modelos dos costureiros franceses para costurarmos as nossas próprias roupas. Sentiamo-nos umas teen-agers perfeitamente cativas da  cidade luz, se bem que nenhuma de nós tivesse visitado Paris antes de termos concluído a faculdade, nem existirem canais de televisão à nossa disposição para melhor apreendermos a realidade. Tudo era baseado nos livros, nos filmes que íamos ver ao cinema, nas revistas que encomendávamos ao Sr.António e que nos chegavam às mãos passados dois meses, nos discos de alguns artistas que chegavam aos escaparates das lojas e que pontualmente conseguíamos ouvir na rádio.
No rescaldo da Faculdade e após encontrarmos  trabalho, o mealheiro começou de imediato a ser feito. E assim, passado um ano conseguimos o nosso objectivo: conhecer Paris. Confesso que superou em muito as minhas expectativas. Apaixonei-me de imediato e digeri muito mal a angústia do regresso passados quatro dias. Havia tanto para conhecer, tanto para explorar e perceber…
Sempre que conseguia amealhar uns escudos o meu destino era invariavelmente Paris. Por último comecei a ir sozinha. Era uma necessidade. Sentia que lá me conseguia encontrar comigo própria. Longe da pressão do escritório. Longe dos rostos sinistros que diariamente me sugavam energia. Longe de uma vida algo ambígua, onde por um lado tinha que fazer e parecer bem, e por outro, o meu eu discutia comigo e tentava empurrar-me para outro caminho mais feliz, mas menos convencional e menos óbvio.
Entre ser a “executiva” bem posta, onde nada podia falhar, e ser a autêntica, após anos de debate interior, optei pela segunda, mau grado as opiniões e censura da família. Onde já se viu ter um emprego bom, certo, e deixar tudo para trás para recomeçar noutro país? Que eu devia ter enlouquecido, que era uma desprendida, enfim… Apesar  da incompreensão da família, decidi abandonar o meu gabinete, abandonar Lisboa e ir viver na cidade do Sena. Já tinha feito umas pesquisas de trabalho e de apartamentos para arrendar, e percebi que teria uma relativa facilidade em me desenrascar. Afinal a cidade já me era familiar. Os seus bairros, com características distintas entre si tinham todos os seu encanto particular. Até já conhecia uma boa dúzia de pessoas, que iam cruzando os meu caminho nas viagens anteriores. Não iria sentir-me completamente só, apesar de o que mais prezava naquela altura, ser o silêncio de estar só, comigo.
Após quatro dias de estadia num hotel barato, consegui encontrar um apartamento simpático no meu bairro preferido, Montmartre. Ali respirava-se a cultura francesa, mas não só. Muitos eram os que ali vinham fixar-se na procura de inspiração, de integração nos meios culturais, de partilha de experiências de vida, do pensamento, da utopia. Gentes de todos os quadrantes culturais e intelectuais povoavam as ruas, as praças, os cafés e o restaurantes do chamado bairro dos artistas. A minha escolha não recaíu naquela zona, por uma qualquer tendência artística, mas sim pela liberdade de pensamento que sentia no ar. Pela sensibilidade e disponibilidade dos residentes. Pela beleza típica das ruas e dos prédios. Por um certo viver mundano e de tertúlias, que me fascinava e me permitia “estudar” as pessoas, as suas vivências, e assim ir percebendo e aprendendo um pouco mais sobre o mundo.
Comecei a seleccionar ofertas de emprego. O meu francês era fluente, e não tinha qualquer dificuldade de abordagem. Curiosamente, numa das entrevistas a que fui, o meu interlocutor era português. Licenciado em sociologia e história de arte, tinha fundado uma associação ligada aos vários tipos de arte, onde integrava jovens com reduzidas possibilidades financeiras para desenvolver os estudos, permitindo-lhes não só potenciarem as suas competências artísticas, mas também proporcionar-lhes um grau de ensino adequado. Um projecto ambicioso e super interessante.  A minha experiência nos ramos artísticos não era muita, mas existia em mim uma alma criativa que aliás, me “empurrou” para fora do escritório rotineiro e cinzento que ocupava em Lisboa. Com algum trabalho,  recolha de informação, dedicação e humildade, pensei conseguir corresponder ao desafio que me era colocado. Um mundo diferente, com mais calor humano, com ideias, e projectado para ajudar pessoas. Pareceu-me muito, muito bem. Fiquei com o lugar de adjunta de Nuno. Assim se chamava.
O facto de sermos os dois portugueses, embora com histórias de vida diferentes, contribuíu para o cimentar do trabalho em equipa.  Apesar de estarmos num país estrangeiro, o nosso pensamento tinha uma raiz comum, o que facilitava imenso toda a complexa organização e funcionamento da associação. Através dele conheci pessoas incríveis que me acrescentaram imenso enquanto pessoa e enquanto profissional.
Nuno estava em Paris há quinze anos. Chegou para fazer o mestrado e acabou por ficar. Pessoa extremamente metódica no trabalho, mas sonhador nos projectos, tem um ritmo frenético e intenso. Quarenta anos feitos, continuava a viver na primeira casa que o albergou, tendo por companhia um labrador. Confessou-me tempos depois que continuava solteiro e só, pois tinha tido uma paixão mal sucedida, tanto  doentia, como  arrebatadora e obsessiva. Conhecera a sua diva na Faculdade. Ao que parece uma daquelas miúdas giras, atraentes e que sabe insinuar-se de forma a deixar a cabeça de um homem à roda. Tão depressa o seduzia profundamente, fazendo-o acreditar que nada nem ninguém mais existia, como lhe travava a entrega e a expressão da louca paixão que sentia por ela. Era uma espécie de bipolaridade onde o sensual despertava o carnal, fazendo-o perder qualquer tipo de raciocínio, e deixando-se levar, para logo depois se remeter ao papel de subjugado a uma vontade e um querer caprichoso. Era assim uma espécie de querer e não querer, de atiçar e refrear, de incendiar e deixar arder sozinho. Definitivamente uma relação, perdição ou maldição que deixou Nuno miseravelmente descrente no que a relacionamentos amorosos diz respeito. Tem tido umas namoradas, mas nenhuma conseguiu ainda curar-lhe a ferida aberta por aquele corpo serpenteado e quente, habitado por uma mente demoníaca.
Dizia eu que estava sentada no “Les Peintres” a tomar o pequeno almoço enquanto passava os olhos pelo jornal. A manhã estava soalheira mas extremamente fria, como frias são as manhãs de Dezembro em Paris. “Bom dia Carla.” - Bom dia Nuno! Tão cedo por aqui? Estou só a aquecer a alma com o café e vou já para a associação. Passa-se alguma coisa?
“Nada de especial, mas sabia que te encontraria aqui e tenho um pedido a fazer-te.  É uma ideia que ando a remoer, mas hoje decidi partilhá-la contigo, porque sei que consegues.”
Medooo… quando Nuno falava neste tom de voz, com tantas certezas de eu conseguir fosse o que fosse, era pela certa, desafio daqueles que me deixavam noites sem dormir …
“Carla, precisamos de um guião para um sketch que vai ser musicado. Aliás, o que precisamos mesmo é de uma história que alguém irá ler, enquanto personagens representam em silêncio ao som da música.  O tema não é fácil, mas sei que vais conseguir abordá-lo. “ - Eu?? Nuno, mas tens o tal guionista de que já me falaste … Ele não tem disponibilidade? - “Não Carla. Não falei com ele sequer. Gostava que fosses tu. Tu tens a sensibilidade e a elegância para escrever a peça que vai exorcizar o meu medo e o meu mau estar… não posso falar deste assunto a mais ninguém, percebes? É uma fragilidade minha que desabafei contigo e que sei que percebeste e que respeitas.”
- Nuno, queres que ponha por escrito, para apresentar publicamente a história da relação doentia entre ti e a tal diva? Passados estes anos todos queres voltar ao assunto? “Exactamente. Disseste-me há tempo que só nos libertamos dos nossos fantasmas se conseguirmos exorcizá-los, seja qual for a forma. É isso que quero fazer. Uma pequena peça para onde possa transpor toda essa realidade em forma de imaginário. Só assim acabarei com esse fantasma e devolver-me-ei o acreditar. Não posso continuar a pensar no mesmo. Não dá.”
Seis meses depois estávamos em Portugal a fazer a apresentação do trabalho, depois de uma calorosa recepção em Paris, na sede da associação, ali mesmo naquele bairro onde se respirava liberdade, onde a luz das ideias se propagava e onde era tão fácil pensar…
Leviana Sedução, assim se chamou.
Carla, Nuno

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