Ali estava eu sentada na
esplanada do Café “Les Peintres”. Na mesa um café duplo em chávena escaldada,
um croissant que fazia as delícias de qualquer mortal, e o Le Monde, o meu
suporte informativo e o meu elo de ligação ao mundo. Tinha chegado há três meses a Paris, cidade
que sempre me fascinou desde criança, talvez por aos cinco anos de idade ter
começado as aulas de francês, língua que me acompanhou ao longo da vida até à
conclusão dos estudos universitários, e me abriu os horizontes para a cultura,
valores e história de França. Lembro-me de a partir dos meus oito anos, me dirigir à Biblioteca
Municipal e procurar livros de banda desenhada escritos em francês, e
gradualmente as minhas preferências irem recaindo sobre livros mais “sérios”, o
que levava a minha tia, a bibliotecária na altura, a fazer requisições em nome
dela, já que eu era demasiado jovem para aquelas literaturas. Eu e um grupo de amigas tínhamos tal fixação
por tudo o que dizia respeito a França , que chegámos ao ponto em que a
nossa conversa era em francês, as
refeições eram inspiradas na culinária francesa, as revistas que encomendávamos
na papelaria eram obviamente sobre os artistas franceses, e tentávamos copiar
os modelos dos costureiros franceses para costurarmos as nossas próprias
roupas. Sentiamo-nos umas teen-agers perfeitamente cativas da cidade luz, se bem que nenhuma de nós tivesse
visitado Paris antes de termos concluído a faculdade, nem existirem canais de
televisão à nossa disposição para melhor apreendermos a realidade. Tudo era
baseado nos livros, nos filmes que íamos ver ao cinema, nas revistas que
encomendávamos ao Sr.António e que nos chegavam às mãos passados dois meses,
nos discos de alguns artistas que chegavam aos escaparates das lojas e que
pontualmente conseguíamos ouvir na rádio.
No rescaldo da Faculdade e após
encontrarmos trabalho, o mealheiro
começou de imediato a ser feito. E assim, passado um ano conseguimos o nosso
objectivo: conhecer Paris. Confesso que superou em muito as minhas
expectativas. Apaixonei-me de imediato e digeri muito mal a angústia do
regresso passados quatro dias. Havia tanto para conhecer, tanto para explorar e
perceber…
Sempre que conseguia amealhar uns
escudos o meu destino era invariavelmente Paris. Por último comecei a ir
sozinha. Era uma necessidade. Sentia que lá me conseguia encontrar comigo
própria. Longe da pressão do escritório. Longe dos rostos sinistros que
diariamente me sugavam energia. Longe de uma vida algo ambígua, onde por um
lado tinha que fazer e parecer bem, e por outro, o meu eu discutia comigo e
tentava empurrar-me para outro caminho mais feliz, mas menos convencional e
menos óbvio.
Entre ser a “executiva” bem
posta, onde nada podia falhar, e ser a autêntica, após anos de debate interior,
optei pela segunda, mau grado as opiniões e censura da família. Onde já se viu
ter um emprego bom, certo, e deixar tudo para trás para recomeçar noutro país?
Que eu devia ter enlouquecido, que era uma desprendida, enfim… Apesar da incompreensão da família, decidi abandonar
o meu gabinete, abandonar Lisboa e ir viver na cidade do Sena. Já tinha feito
umas pesquisas de trabalho e de apartamentos para arrendar, e percebi que teria
uma relativa facilidade em me desenrascar. Afinal a cidade já me era familiar.
Os seus bairros, com características distintas entre si tinham todos os seu
encanto particular. Até já conhecia uma boa dúzia de pessoas, que iam cruzando
os meu caminho nas viagens anteriores. Não iria sentir-me completamente só,
apesar de o que mais prezava naquela altura, ser o silêncio de estar só,
comigo.
Após quatro dias de estadia num
hotel barato, consegui encontrar um apartamento simpático no meu bairro
preferido, Montmartre. Ali respirava-se a cultura francesa, mas não só. Muitos
eram os que ali vinham fixar-se na procura de inspiração, de integração nos
meios culturais, de partilha de experiências de vida, do pensamento, da utopia.
Gentes de todos os quadrantes culturais e intelectuais povoavam as ruas, as
praças, os cafés e o restaurantes do chamado bairro dos artistas. A minha
escolha não recaíu naquela zona, por uma qualquer tendência artística, mas sim
pela liberdade de pensamento que sentia no ar. Pela sensibilidade e
disponibilidade dos residentes. Pela beleza típica das ruas e dos prédios. Por
um certo viver mundano e de tertúlias, que me fascinava e me permitia “estudar”
as pessoas, as suas vivências, e assim ir percebendo e aprendendo um pouco mais
sobre o mundo.
Comecei a seleccionar ofertas de
emprego. O meu francês era fluente, e não tinha qualquer dificuldade de
abordagem. Curiosamente, numa das entrevistas a que fui, o meu interlocutor era
português. Licenciado em sociologia e história de arte, tinha fundado uma
associação ligada aos vários tipos de arte, onde integrava jovens com reduzidas
possibilidades financeiras para desenvolver os estudos, permitindo-lhes não só
potenciarem as suas competências artísticas, mas também proporcionar-lhes um
grau de ensino adequado. Um projecto ambicioso e super interessante. A minha experiência nos ramos artísticos não
era muita, mas existia em mim uma alma criativa que aliás, me “empurrou” para
fora do escritório rotineiro e cinzento que ocupava em Lisboa. Com algum
trabalho, recolha de informação,
dedicação e humildade, pensei conseguir corresponder ao desafio que me era
colocado. Um mundo diferente, com mais calor humano, com ideias, e projectado
para ajudar pessoas. Pareceu-me muito, muito bem. Fiquei com o lugar de adjunta
de Nuno. Assim se chamava.
O facto de sermos os dois
portugueses, embora com histórias de vida diferentes, contribuíu para o
cimentar do trabalho em equipa. Apesar
de estarmos num país estrangeiro, o nosso pensamento tinha uma raiz comum, o
que facilitava imenso toda a complexa organização e funcionamento da
associação. Através dele conheci pessoas incríveis que me acrescentaram imenso
enquanto pessoa e enquanto profissional.
Nuno estava em Paris há quinze
anos. Chegou para fazer o mestrado e acabou por ficar. Pessoa extremamente
metódica no trabalho, mas sonhador nos projectos, tem um ritmo frenético e
intenso. Quarenta anos feitos, continuava a viver na primeira casa que o
albergou, tendo por companhia um labrador. Confessou-me tempos depois que
continuava solteiro e só, pois tinha tido uma paixão mal sucedida, tanto doentia, como
arrebatadora e obsessiva. Conhecera a sua diva na Faculdade. Ao que
parece uma daquelas miúdas giras, atraentes e que sabe insinuar-se de forma a
deixar a cabeça de um homem à roda. Tão depressa o seduzia profundamente,
fazendo-o acreditar que nada nem ninguém mais existia, como lhe travava a
entrega e a expressão da louca paixão que sentia por ela. Era uma espécie de
bipolaridade onde o sensual despertava o carnal, fazendo-o perder qualquer tipo
de raciocínio, e deixando-se levar, para logo depois se remeter ao papel de
subjugado a uma vontade e um querer caprichoso. Era assim uma espécie de querer
e não querer, de atiçar e refrear, de incendiar e deixar arder sozinho.
Definitivamente uma relação, perdição ou maldição que deixou Nuno
miseravelmente descrente no que a relacionamentos amorosos diz respeito. Tem
tido umas namoradas, mas nenhuma conseguiu ainda curar-lhe a ferida aberta por
aquele corpo serpenteado e quente, habitado por uma mente demoníaca.
Dizia eu que estava sentada no
“Les Peintres” a tomar o pequeno almoço enquanto passava os olhos pelo jornal.
A manhã estava soalheira mas extremamente fria, como frias são as manhãs de
Dezembro em Paris. “Bom dia Carla.” - Bom dia Nuno! Tão cedo por aqui? Estou só
a aquecer a alma com o café e vou já para a associação. Passa-se alguma coisa?
“Nada de especial, mas sabia que
te encontraria aqui e tenho um pedido a fazer-te. É uma ideia que ando a remoer, mas hoje
decidi partilhá-la contigo, porque sei que consegues.”
Medooo… quando Nuno falava neste
tom de voz, com tantas certezas de eu conseguir fosse o que fosse, era pela
certa, desafio daqueles que me deixavam noites sem dormir …
“Carla, precisamos de um guião
para um sketch que vai ser musicado. Aliás, o que precisamos mesmo é de uma
história que alguém irá ler, enquanto personagens representam em silêncio ao
som da música. O tema não é fácil, mas
sei que vais conseguir abordá-lo. “ - Eu?? Nuno, mas tens o tal guionista de
que já me falaste … Ele não tem disponibilidade? - “Não Carla. Não falei com ele
sequer. Gostava que fosses tu. Tu tens a sensibilidade e a elegância para
escrever a peça que vai exorcizar o meu medo e o meu mau estar… não posso falar
deste assunto a mais ninguém, percebes? É uma fragilidade minha que desabafei
contigo e que sei que percebeste e que respeitas.”
- Nuno, queres que ponha por
escrito, para apresentar publicamente a história da relação doentia entre ti e
a tal diva? Passados estes anos todos queres voltar ao assunto? “Exactamente.
Disseste-me há tempo que só nos libertamos dos nossos fantasmas se conseguirmos
exorcizá-los, seja qual for a forma. É isso que quero fazer. Uma pequena peça
para onde possa transpor toda essa realidade em forma de imaginário. Só assim
acabarei com esse fantasma e devolver-me-ei o acreditar. Não posso continuar a
pensar no mesmo. Não dá.”
Seis meses depois estávamos em
Portugal a fazer a apresentação do trabalho, depois de uma calorosa recepção em
Paris, na sede da associação, ali mesmo naquele bairro onde se respirava
liberdade, onde a luz das ideias se propagava e onde era tão fácil pensar…
Leviana Sedução, assim se chamou.
Carla, Nuno
Carla, Nuno
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