quinta-feira, 30 de abril de 2020

Um Jogo Imperfeito


De repente caíu-me a ficha e vi a vida a desmoronar-se como um castelo de cartas.
Não estava em nenhum casino, nem o jogo decorria numa qualquer slot machine ou mesa de pano verde.
Jogo? Sim, poderei chamar-lhe jogo, já que tudo começou com um jogo de sedução mútuo que acabou por nos unir sob o mesmo tecto. Um jogo feito paixão, possessão, alucinação, opressão e por fim desilusão, frustração, separação.
Durante meses, qual gato e rato, corremos atrás um do outro, inventámos encontros, propiciámos desencontros, fugimos do óbvio e do rápido, e fomos alimentando um jogo que se por um lado nos desafiava e nos empurrava na mesma direcção, por outro, de tão ocupados com os contornos desse desafio, fomo-nos perdendo em detalhes que viriam  revelar-se fundamentais numa relação a dois.
A atracção física provocada por um flash repentino que encandeia e ao mesmo tempo incendeia o olhar, tem muitas vezes um revés a que poderei chamar de discernimento ofuscado, tal a vontade de vermos apenas o que está diante de nós, esquecendo que do outro lado existe uma parte racional, sentimental e  intelectual que compõe o todo.  E é esse todo que constitui a peça que nos falta e nos complementa. Uma relação a dois não é de todo um jogo de casino, rebuscado,  sofisticado e cautelosamente pensado e estudado,  mas uma espécie de puzzle. Algo muito mais simples, embora complexo, mas que permite ver o desenho na sua quase totalidade enquanto se organizam e encaixam as peças, com perspectiva e sabedoria.
Completo amanhã cinco anos de um qualquer jogo tipo casino, cheio dos vícios inerentes. Por ele, fui-me aprisionando, anulando nas minhas escolhas, caminhando como peça-alvo do tabuleiro mais perfeito e mais rebuscado, e vivendo uma vida interior miserável onde o meu próprio e genuíno eu  deixou de existir.
Impossível continuar assim.
O que de início era uma paixão intensa e carnal, transformou-se em fixação perfeitamente psicótica por parte dela. Estabelecia ideais fora da realidade e tudo fazia para levar a sua ideia avante, não fugindo nunca ao círculo por si criado e para onde me transportou, sem que na verdade, me opusesse. O que julguei ser organização, revelou-se pura obsessão. O que acreditei ser amor, mostrou-se ser opressão motivada por um ciúme e uma insegurança doentios.  O que pensei ser pura descontracção, não passava de  alucinação como que originada pelo consumo de substâncias químicas. Enfim… com esforço fui deixando arrastar uma situação condenada. Tanto a amei e paradoxalmente cheguei a ter pena dela;  se não parti antes, foi porque acreditei que talvez conseguisse ajudar a atenuar as suas tendências obsessivas.  Em vão. Só se pode ajudar quem quer ser ajudado. Para ela apenas existia a sua realidade. Eu era já uma carta fora do baralho.
Senti-me infeliz, impotente face à situação, e com o sentimento de não pertença àquele exíguo espaço onde tudo tinha que ser perfeito. Era como se tivesse uma máscara que me dificultava a respiração, e que dia após dia ia ficando mais apertada, dificultando a entrada e saída do ar.
Já há uns meses largos que tinha perdido o gosto por sair e conviver, embora a minha vida profissional fosse feita da interacção com os outros e começasse a dar sinais de debilidade.
Naquela manhã tinha decidido ir apanhar um pouco de sol e caminhar junto ao mar, esse conselheiro que no silêncio ajuda a reorganizar os pensamentos e nos devolve energia. Deixei-a sair  e rapidamente me despachei. T-shirt, calções e ténis, e aí ia eu! Sim, ia, porque quando tentei sair de casa, a porta estava fechada à chave , o meu porta-chaves havia desaparecido, bem como a carteira com os documentos e o cartão multibanco. Quase enlouqueci, de raiva, de revolta, de frustração. Nem consigo descrever a torrente de sentimentos e tudo o que me passou pela cabeça. Tive vontade de  bater em mim próprio e de partir o que estava ali em diante. Como era possível ter chegado a este ponto? Como me deixei manipular e anular em nome de um suposto amor que de tão doente, me reprimia e me asfixiava?
Impossível permanecer ali mais um dia. Saír como? Podia chamar os bombeiros. Podia ligar-lhe a exigir que viesse abrir a porta… Ao fim de algum tempo e de uma meia dúzia de murros nos armários e na mesa, decidi que iria esperar por ela.  Teria os meus pertences arrumados e dir-lhe-ia que o jogo tinha chegado ao fim. Gritasse ela ou não, nada me iria demover.
Seduzir não é amar.
Jogar psicologicamente com o(a) companheiro (a) não é amor.
Amor, eu dei, eu senti, eu vivi.
Não sei se algum dia a ele voltarei.
Fernando

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