quinta-feira, 2 de abril de 2020

Uma Viagem Chamada Vida

O jantar tinha sido animado e a boa disposição característica do nosso grupo pedia que a noite prosseguisse algures. Decidimos ir para a praia. A noite estava quente, estrelada e a lua reflectia num imenso mar prateado.
As gargalhadas eram gerais e rir das nossas próprias parvoíces era já um hábito. Que sorte mantermos este grupo de praia ao longo do anos. Crescemos a jogar à bola ou badmington ou em ritmo mais calmo, a jogar king debaixo dos toldos. Era o período do ano pelo qual ansiávamos. Os dois meses de Verão que passávamos na praia, eram a inspiração para o estudo e para tirarmos boas notas, não fosse dar-se o caso de os nossos pais nos colocarem de castigo, o que se revelaria injusto aos nossos olhos, e uma enorme frustração. Com o correr dos anos fomos alargando o grupo, já que cada um trazia para as férias mais maravilhosas do planeta, alguém que comungasse do espírito de festa e quisesse desafiar o tempo, o espaço e os momentos que saudavelmente partilhávamos. Dos seis iniciais, fundadores do grupo por assim dizer, contávamos já quinze pós teen. Engraçado como o país quase estava representado entre nós. Porto, Guimarães, Coimbra, Lisboa, Mafra, Beja e Silves. E como nos ríamos dos vários sotaques, acabando por arranjar uma espécie de dialecto que só nós entendíamos e que nos dava o maior gozo na presença de terceiros, que ficavam literalmente a pensar que seríamos um bando de jovens malucos. Os anos foram-se passando, todos fomos crescendo e organizando as nossas vidas, mas a amizade que nos unia era saudavelmente sincera. Durante o ano arranjávamos forma de nos encontrarmos todos pelo menos durante dois fins de semana, um a Norte e outro em Lisboa, já que as nossas Faculdades eram lá.

- Luís, podias ir buscar a viola a casa. A noite está tão boa que podemos ficar pela praia e fazer uma jam. Vais?
- Pois … nada mais havendo para fazer, lá terei que ir. Vocês têm a certeza que não querem ir sair a lado nenhum?
Não! Resposta geral. Além de todos termos exagerado um pouco na sangria e ser contraproducente ir conduzir, sair todas as noites para ir a discotecas em localidades próximas, era cansativo. De vez em quando era necessário fazermos a chamada “noite higiénica”, sem o som altíssimo da Horta 2, do Kiss, da Trigonometria ou outra qualquer discoteca que nos desafiasse.
- Olha, tu trazes a viola e de caminho eu vou com alguém ver se ainda conseguimos apanhar o supermercado aberto e trazer umas bebidas frescas e uns salgados. Quem se oferece? Tu? Bora lá então. Até já people.
Hummm … uma espécie de nervoso miudinho misturado com borboletas tomou conta de mim. Conhecía-mo-nos há 10 anos. Todos os verões passávamos juntos mais horas do que com as nossas famílias enquanto durava a estadia algarvia. Tínhamos imensas cumplicidades, e éramos por assim dizer, o elo de ligação daquele grupo maravilhoso. Crescemos e a nossa amizade nunca foi beliscada, nem quando me “picava” com anedotas de alentejanos, ou quando gargalhava e troçava das minhas expressões ingénuas e simples de miúda da província. Não era por mal que o fazia. Apenas porque lhe dava graça, como a mim me divertia aquele sotaque nortenho que ao fim de três dias de convivência, me punha a trocar os vês pelos bês, ou a pedir um cimbalino na esplanada.
Ainda só estávamos de férias há uma semana, mas qualquer coisa tinha mudado em mim, e arriscava-me a pensar, em nós dois. Uma serenidade aparente escondia algo que estaria a inflamar-nos. Seria uma forma diferente de atracção? Não fazia sentido. Conhecía-mo-nos há tantos anos e agora é que nos tínhamos “olhado” com olhos de ver? Queria afastar o nervosismo que estupidamente me provocava o facto de estarmos sós. Nunca tal acontecera. Em passo apressado dirigi-me ao supermercado com a desculpa de que deveria estar quase a fechar, e rapidamente fizemos as compras, numa ânsia de voltar para junto do grupo. Não percebia muito bem o que se estava a passar comigo. Só sabia que pela primeira vez me sentia perturbada na sua presença e que a voz me tremia.
- Espera! Estás tão apressada porquê? Passa-se alguma coisa? Não estás bem? - Pronto! E agora? Responder o quê? ...Não, não se passa nada. Que ideia a tua. Era apenas para nos despacharmos porque o Luís já deve estar na praia e o resto do pessoal aguarda pelas bebidas e pelos salgados. Além disso sabes bem como adoro quando estamos todos juntos a cantar e a gargalhar.
E assim me desculpei, meio atabalhoadamente.
Na roda já só restavam dois lugares. Os nossos. Ficámos lado a lado. Não sei se de propósito, ou se por inspiração de uma qualquer força superior, as canções que nos calhavam nos improvisos, tinham sempre sequência e versavam amores e paixões. Ditavam as regras, as nossas regras de grupo, que quem terminasse uma estrofe, passaria o último verso a quem estivesse ao seu lado. Eu, que tinha tanta facilidade no improviso, bloqueei ao fim de quatro versos. Como pegar no verso dele sem me denunciar? Sem transparecer a minha luta interior? O pior é que ele já tinha percebido e seguríssimo de si, continuava a debitar palavras que cada vez me tornavam mais sensível ao tema.
Desculpei-me com uma enxaqueca repentina que nem sequer existia, e entre os comentários de uns a dizer que tinha sido da sangria, e outros a argumentar com sol a mais de tarde, ou até com o desgraçado do gin que jazia ao meu lado, em meio de beber.
Consegui concentrar-me, respirei fundo, e lá me organizei mentalmente para desfrutar a noite. Certamente tudo não passava de um devaneio meu…
Já o sol queria dar os primeiros sinais de uma nova manhã quando a nossa jam super improvisada acabou. Não demoraria para que os “abridores” da praia chegassem. Gente madrugadora que ao raiar do sol agarra nas cadeiras e nas cestas e ruma em direcção ao areal para aproveitar as melhores horas, diziam. Melhores horas? Melhores horas são aquelas em que nos sentimos felizes, rematei face à observação da Maria.
- Achas mesmo? Então diz-me lá se esta é uma das tuas melhores horas? - ai ai ai… pensei, estás a desafiar-me, mas não vou perder o controle da conversa…. Claro que sim! Estarmos juntos, estarmos vivos, celebrarmos a amizade e partilharmos estes momentos não te traz felicidade? A mim traz-me, por isso, a resposta é sim! - Só isso? … - Sim. Faltou dizer alguma coisa?
Aproximou a sua boca do meu ouvido e sussurrou: “ E o amor não entra nas tuas melhores horas? Deixa-os afastarem-se que quero falar contigo”. … Fitei-o de olhos esbugalhados, coração aos saltos e o estômago a borboletar de tal forma, que vomitei todos os salgados que devorei durante a noite. Denunciei-me por completo. Sorte que já todos tinham subido para a avenida e ninguém deu por nada. Lavei a cara no mar, e mais calma disse-lhe: “ Queres falar comigo? Sobre?”
Antes que eu pronunciasse mais uma única palavra, agarrou-me contra si e calou-me com um longo beijo.
- É isto o que tenho para falar contigo. Mexeste comigo desde o primeiro dia de férias deste ano e sei que sentes o mesmo. Aliás, mexes comigo há já alguns anos, sem que quisesse reconhecê-lo. Não é uma paixão de Verão. É muito mais do que isso. Quero estar sempre contigo. Amo-te.
Credo… tudo tão de repente. O discurso estava alinhado, treinado… Mas a verdade é que comigo o sentimento era igual. A amizade profunda e cúmplice deu origem a algo mais. Algo estruturado, amadurecido.
De mãos dadas caminhámos à beira-mar. Era tão bom sentir o fresco da água nos pés e um calor no coração… Falámos sobre as nossas vidas, sobre os nossos projectos individuais, sobre viagens, sobre as nossas paixões, sobejamente conhecidas um do outro, mas não exploradas a fundo. Uns dois quilómetros à frente, naquele imenso areal, sentámo-nos numa duna. O sol já se declarava, mas a brisa da manhã não permitia que aquecesse muito. Escondemo-nos na vegetação numa entrega total. Aquela seria a nossa duna. A duna do nosso contentamento, nossa cúmplice, confidente, chão dos nossos projectos e asas da nossa liberdade. Lá ,voltaríamos amiúde durante aquele Verão. Sabíamos que dois meses eram nossos e que o horizonte da Faculdade estava além, numa distância de 4 horas de caminho, em cidades diferentes, e que a solidão dos livros nos esperava. Decidimos não antecipar a angústia da separação, mas viver o presente, amar-mo-nos, viajarmos dentro de nós, descobrirmos as pequenas coisas, e desfrutarmos daquela nossa história de encantar.

Hoje, como naquela noite, reunimos o grupo, jantámos, fomos para a praia e apesar dos cabelos grisalhos ou com madeixas, da uma dor aqui ou ali, de umas barrigas mais proeminentes, ou de umas rugas algo teimosas, todos ocupámos os mesmos lugares, contámos anedotas, cantámos ao som da nova viola do Luís, e agradecemos pela amizade, pelo amor e por esta viagem tão enigmática como desafiante chamada vida. Cheers!

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