quinta-feira, 30 de julho de 2020

O Que De Nós Se Vê


- Que se passa Rui? Estás tão cabisbaixo e silencioso…
- Não se passa nada. Apenas não me apetece falar. Estou cansado. – Sentado na beira da piscina a balançar os pés dentro da água morna, Rui permanecia de semblante fechado.
- Como não se passa nada? Vieste calado durante toda a viagem. Mal chegámos, jogaste as malas para o quarto e vieste a correr para a piscina, sem quase dizeres uma palavra. Talvez fosse preferível termos adiado o fim de semana e virmos numa altura em que o teu humor estivesse um pouco melhor. Sinto-me viajar sozinha na companhia de um estranho.
Existem alturas complicadas, que nem sequer sabemos como traduzir em palavras. O certo é que quanto menos queremos magoar aqueles de que gostamos, mais as nossas angústias existenciais se encarregam de nos fazer tomar atitudes que não conseguimos explicar. Como fazer perceber a Susana que o que se passa não é com ela? Que a amo incondicionalmente, mas que neste momento preciso do meu espaço interior para pensar? Que não a quero magoar, pois iria culpabilizar-me para sempre se a ferisse? Planeámos este fim de semana a dois, longe de tudo e de todos. A pressão do dia a dia tem-me consumido e tem desgastado a nossa relação. Era imperioso fazer um reset e devolvermo-nos, antes que não houvesse solução. Deixei que a Susana escolhesse o local, já que é perita em descobrir sítios verdadeiramente idílicos, onde a natureza e a paz nos abraçam. E não falhou em nada. A viagem demorou três horas; três longas horas em estradas secundárias, ora a serpentear a serra, ora por entre vales verdejantes, cuja paisagem era povoada por aldeias de granito dispersas, campos de cultivo e algumas explorações pecuárias de pequena dimensão. Essencialmente agricultura de subsistência. A reduzida velocidade a que tinha que conduzir permitia-me contemplar e observar os mínimos detalhes. Nem por um minuto fiz observações acerca do percurso, pois não queria melindrar a Susana, mas o facto é que estava desejoso de chegar ao destino, pensando já que passados dois dias teria que fazer o caminho inverso. Ao meu lado, percebi alguma indisposição na Susana, fruto das muitas curvas, mas também ela não deu parte de fraca.  Esperança que o nosso refúgio compensasse o incómodo da viagem…
- Susana, a viagem foi um pouco cansativa e se pouco falei, foi porque tive que estar atento à estrada, que como percebeste não é das melhores. Não dramatizes. Tu própria estavas mal disposta, ou pensas que não percebi? Tem calma. Respira. Senta-te aqui junto a mim. Incrível como a água da piscina está a uma temperatura superior à temperatura do ar. Certamente que é aquecida.
- Sim, eu vinha mal disposta, mas tu não ajudaste, de tão calado… Podias ao menos ter dito se gostas do hotel. – Estava nervosa e impaciente. Desiludida talvez…
- Gosto sim, querida. É um sítio lindo, com magia e poesia para nos envolver. Ninguém iria imaginar que no meio do nada existiria algo assim. Parabéns pela escolha. Vamos mergulhar? De facto nunca tomei banho numa piscina de ar livre com esta temperatura e ainda por cima no Inverno.
Tentei desfrutar ao máximo aqueles dias de pausa. Tentei que os momentos de cumplicidade a dois voltassem a ter o frisson de antes, o desejo calado, o toque escaldante, o beijo silencioso e atrevido, a conversa interminável, a gargalhada espontânea. Confesso que por momentos me esqueci da conversa com o médico, de tão normal que estava. A Susana tinha um brilhozinho nos olhos como não lhe via há muito tempo. Afinal, independentemente de tudo, tinha sido uma decisão acertada a de virmos. É necessário fazer pausas e reequacionar a vida. Sobretudo para mim, que naquele momento vivia a uma só voz um drama interior difícil de abordar.  Andei durante meses a adiar uma ida ao médico, por cobardia, por medo, por insegurança. A pressão do trabalho e os problemas recorrentes na empresa serviam-me para me esquivar a um relacionamento mais íntimo, depois de algumas tentativas falhadas, que não conseguia aceitar nem explicar. Só a paciência e a compreensão da Susana conseguiram que não enlouquecesse de frustração e complexo. Para mim era um assunto tabu, acerca do qual nem queria falar. Fui-me arrastando com o meu sofrimento, e só no dia em que percebi que estava a fazer sofrer a minha companheira de forma injusta e sem o merecer, aceitei para mim consultar um médico, não sem que antes tenha feito uma profunda pesquisa na net. Fiz exames e nada comentei em casa. A última consulta tinha sido precisamente na véspera desta nossa escapadinha. Tinha ainda a memória fresca da conversa com o Dr.Sá. Que tudo se ia resolver, com tempo, com paciência e com mudança de hábitos de vida. Não tinha ainda conseguido contar à Susana. Se por um lado pensei que não seria a altura certa para termos esta conversa, por outro lado, ante a normalidade evidenciada, achei que lhe deveria revelar toda a minha angústia dos últimos tempos. Percebi que quando duas pessoas se amam, a dor partilhada é muito mais fácil de suportar e que a ajuda mútua pode fazer toda a diferença.
- Realmente esta estrada é péssima, mas valeram a pena estes dias meu amor. Foi preciso um exílio forçado para te fazer falar. Eu sabia que alguma coisa se passava contigo, mas pensei que a situação tivesse a ver com o facto de teres outra pessoa na tua vida e já não me desejares. Devias ter partilhado tudo comigo antes, querido. Eu própria teria tido outra atitude e outro comportamento. Sabes, a minha avó tinha uma expressão de que gosto muito e que utilizava quando as coisas não eram muito perceptíveis, ou quando achava que as pessoas escondiam alguma coisa: “podemos ser quem nós sabemos que somos, mas aos olhos dos outros, somos o que de nós se vê”.
Susana e Rui

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