quinta-feira, 9 de julho de 2020

Metades Perfeitas


Se há amores e paixões que nos marcam, arriscaria dizer que os mais verdadeiros e puros são os da adolescência. Essa fase da descoberta de nós próprios e dos outros é fascinante, intensa e desprovida de segundas intenções, na maior parte dos casos.
Foi o que aconteceu com Isabel e Fernando. Hoje com vidas feitas, famílias, percursos de vida diferentes, mas unidos por uma amizade cúmplice de um passado remoto de descoberta, de emoções, de sensações e de um olhar o mundo.
Tinham passado vinte e cinco anos desde a última vez que se cruzaram na vila. Impossível não reconhecer o sorriso de Fernando. O cabelo já a apresentar uns laivos grisalhos, mas com a mesma melena teimosa  e irreverente a descaír para a testa.  O rosto, moreno, quiçá mais acentuado pelo bronzeado, mantinha a expressão franca a aberta que lhe conhecia. Uns  olhos verdes sorridentes compunham aquilo a que se chama uma moldura perfeita.
- Fernando, há quanto tempo… não posso acreditar … Ainda te lembras de mim?
- Olha a minha Isabelocas! Há tantos anos… Claro que me lembro de ti, mas confesso que de repente não te reconheci. Estás gira miúda!
Um abraço, as normais trocas de galhardetes entre ambos, onde residem, as famílias, o que fazem na vida, enfim… um palrar sem termo à vista.
- De vez em quando sei notícias tuas pela tua prima Zé. Todos os anos fazemos um almoço de curso e lá vamos sabendo as novidades. Tenho acompanhado o teu percurso à distância e fico muito feliz por perceber que agarraste a oportunidade de fazer o que realmente gostas e sempre gostaste. A música sempre fez parte de ti e do teu ADN.
- É verdade Isabel. Tinhas razão quando me dizias para seguir o caminho da música, custasse o que custasse. Muitas vezes duvidei de mim, tive inseguranças, mas as tuas palavras ecoavam sempre na minha cabeça. Quero que saibas que grande parte do que sou hoje devo-o a ti. Apesar da nossa separação, de teres partido da vila e da minha vida, durante muito tempo foram as tuas frases e as tuas expressões que me fizeram seguir em frente. Foste sempre muito sincera e transparente. Pena as nossas vidas terem levado rumos diferentes.
- Os rumos possíveis face às circunstâncias na altura. Mas olha que fico mesmo contente por ti. E tinha tantas saudades de te ver e de falar contigo… Já algumas vezes pensei enviar-te mensagem nas redes sociais, mas depois acabo por desistir. E pronto, aqui estás tu, igualzinho, apesar dos anos, e aqui estamos a conversar como nos velhos tempos.
- Como nos velhos tempos, não! Só se nos formos sentar na muralha. Assim sim, será como nos velhos tempos!
- E porque não?
- Vamos então. No caminho vais só deixar-me passar pelo carro para ir buscar uma coisa.
Era a guitarra.
- Pronto, assim podemos reconstituír a cena.
Entre gargalhadas e conversas mais sérias, as horas passaram sem que dessem por isso. Confissões da partida brusca de Isabel, apaziguaram uma mágoa latente no coração de Fernando. Ela não o abandonara pelo fim de uma paixão, mas por pressão familiar que não conseguia contornar na altura. Os seus estratos sociais eram diferentes aos olhos da família de Isabel, e um namorico entre os dois envergonhava todo um conjunto familiar, que se intitulava da aristocracia. De facto Fernando tinha origens humildes, mas um coração tamanho do mundo. Era uma pessoa educada, que procurava saber e  cultivar-se, mas cujo mundo era diferente do de Isabel. Não que eles o sentissem, já que as suas conversas e interesses estavam em consonância. O que diferia era o meio familiar e social, mas Isabel foi sempre resistindo às pressões, até que os pais a obrigaram a mudar de terra, matriculando-a numa escola em Lisboa e arranjando todos os pretextos para que não voltasse à vila, nem nas férias, altura em que lhe arranjavam ocupação de baby-sitter na casa de amigos na linha de Cascais. Foram anos de revolta, de frustração, de um mau estar que só mais tarde conseguiu digerir e utilizar como mola para uma nova vida.
Fernando, após o liceu, decidiu sair do país. Arranjou trabalho para se sustentar e em simultâneo iniciou estudos de música numa escola bem reputada. Reagiu muito mal à partida de Isabel, e ir para longe foi a solução que procurou por forma a evitar recordações. Isabel era a sua metade, a sua paixão, a sua confidente, a sua musa inspiradora, a sua maior fã entusiasta e franca, aquela que queria para sempre a seu lado.
Ambos passaram por outros relacionamentos, por casamentos falhados, e ali estavam agora sentados na muralha como há trinta anos atrás, a partilhar saberes, pensamentos,  dores de existência, a falar dos filhos,  como se nada tivesse acontecido.
- Isabel, tinha tantas, mas tantas saudades destas conversas, das tuas dissertações sobre quem somos e qual o nosso propósito, da tua forma de raciocinar sobre os assuntos. Nunca, mas nunca me cruzei com alguém que me prendesse na conversa e nos temas como tu. Durante muitos anos imaginava ver-te a atravessar uma rua de Paris e correr para ti. Muitas outras vezes pensei regressar e ir ao teu encontro, mas o orgulho falava mais alto. Tu tinhas-me deixado e a tua vida tinha seguido outro rumo. De facto, nada poderia esperar. A tua família nunca iria permitir que me reaproximasse de ti, e tu talvez até já me tivesses esquecido. Foi muito doloroso.
- Para mim também foi,  acredita. A dor e a revolta consumiram-me durante anos. Não consegui ter estabilidade emocional e se pensei alguma vez resignar-me, foi a maior asneira que fiz. Portanto, está à vista...
Fernando pegou na guitarra e aos primeiros acordes as lágrimas começaram a correr dos olhos de ambos. Sim, tinha sido aquela  canção a banda sonora do início da sua paixão. Se dúvidas restavam, estavam dissipadas:  metades  perfeitas…
Isabel e Fernando

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