Se há amores e paixões que nos
marcam, arriscaria dizer que os mais verdadeiros e puros são os da
adolescência. Essa fase da descoberta de nós próprios e dos outros é
fascinante, intensa e desprovida de segundas intenções, na maior parte dos
casos.
Foi o que aconteceu com Isabel e
Fernando. Hoje com vidas feitas, famílias, percursos de vida diferentes, mas
unidos por uma amizade cúmplice de um passado remoto de descoberta, de emoções,
de sensações e de um olhar o mundo.
Tinham passado vinte e cinco anos
desde a última vez que se cruzaram na vila. Impossível não reconhecer o sorriso
de Fernando. O cabelo já a apresentar uns laivos grisalhos, mas com a mesma
melena teimosa e irreverente a descaír
para a testa. O rosto, moreno, quiçá
mais acentuado pelo bronzeado, mantinha a expressão franca a aberta que lhe
conhecia. Uns olhos verdes sorridentes
compunham aquilo a que se chama uma moldura perfeita.
- Fernando, há quanto tempo… não
posso acreditar … Ainda te lembras de mim?
- Olha a minha Isabelocas! Há
tantos anos… Claro que me lembro de ti, mas confesso que de repente não te
reconheci. Estás gira miúda!
Um abraço, as normais trocas de
galhardetes entre ambos, onde residem, as famílias, o que fazem na vida, enfim…
um palrar sem termo à vista.
- De vez em quando sei notícias
tuas pela tua prima Zé. Todos os anos fazemos um almoço de curso e lá vamos
sabendo as novidades. Tenho acompanhado o teu percurso à distância e fico muito
feliz por perceber que agarraste a oportunidade de fazer o que realmente gostas
e sempre gostaste. A música sempre fez parte de ti e do teu ADN.
- É verdade Isabel. Tinhas razão
quando me dizias para seguir o caminho da música, custasse o que custasse.
Muitas vezes duvidei de mim, tive inseguranças, mas as tuas palavras ecoavam
sempre na minha cabeça. Quero que saibas que grande parte do que sou hoje
devo-o a ti. Apesar da nossa separação, de teres partido da vila e da minha
vida, durante muito tempo foram as tuas frases e as tuas expressões que me
fizeram seguir em frente. Foste sempre muito sincera e transparente. Pena as
nossas vidas terem levado rumos diferentes.
- Os rumos possíveis face às
circunstâncias na altura. Mas olha que fico mesmo contente por ti. E tinha
tantas saudades de te ver e de falar contigo… Já algumas vezes pensei enviar-te
mensagem nas redes sociais, mas depois acabo por desistir. E pronto, aqui estás
tu, igualzinho, apesar dos anos, e aqui estamos a conversar como nos velhos
tempos.
- Como nos velhos tempos, não! Só
se nos formos sentar na muralha. Assim sim, será como nos velhos tempos!
- E porque não?
- Vamos então. No caminho vais só
deixar-me passar pelo carro para ir buscar uma coisa.
Era a guitarra.
- Pronto, assim podemos
reconstituír a cena.
Entre gargalhadas e conversas
mais sérias, as horas passaram sem que dessem por isso. Confissões da partida
brusca de Isabel, apaziguaram uma mágoa latente no coração de Fernando. Ela não
o abandonara pelo fim de uma paixão, mas por pressão familiar que não conseguia
contornar na altura. Os seus estratos sociais eram diferentes aos olhos da
família de Isabel, e um namorico entre os dois envergonhava todo um conjunto
familiar, que se intitulava da aristocracia. De facto Fernando tinha origens
humildes, mas um coração tamanho do mundo. Era uma pessoa educada, que
procurava saber e cultivar-se, mas cujo
mundo era diferente do de Isabel. Não que eles o sentissem, já que as suas
conversas e interesses estavam em consonância. O que diferia era o meio
familiar e social, mas Isabel foi sempre resistindo às pressões, até que os
pais a obrigaram a mudar de terra, matriculando-a numa escola em Lisboa e
arranjando todos os pretextos para que não voltasse à vila, nem nas férias,
altura em que lhe arranjavam ocupação de baby-sitter na casa de amigos na linha
de Cascais. Foram anos de revolta, de frustração, de um mau estar que só mais
tarde conseguiu digerir e utilizar como mola para uma nova vida.
Fernando, após o liceu, decidiu
sair do país. Arranjou trabalho para se sustentar e em simultâneo iniciou
estudos de música numa escola bem reputada. Reagiu muito mal à partida de
Isabel, e ir para longe foi a solução que procurou por forma a evitar
recordações. Isabel era a sua metade, a sua paixão, a sua confidente, a sua
musa inspiradora, a sua maior fã entusiasta e franca, aquela que queria para
sempre a seu lado.
Ambos passaram por outros
relacionamentos, por casamentos falhados, e ali estavam agora sentados na
muralha como há trinta anos atrás, a partilhar saberes, pensamentos, dores de existência, a falar dos filhos, como se nada tivesse acontecido.
- Isabel, tinha tantas, mas
tantas saudades destas conversas, das tuas dissertações sobre quem somos e qual
o nosso propósito, da tua forma de raciocinar sobre os assuntos. Nunca, mas
nunca me cruzei com alguém que me prendesse na conversa e nos temas como tu.
Durante muitos anos imaginava ver-te a atravessar uma rua de Paris e correr
para ti. Muitas outras vezes pensei regressar e ir ao teu encontro, mas o
orgulho falava mais alto. Tu tinhas-me deixado e a tua vida tinha seguido outro
rumo. De facto, nada poderia esperar. A tua família nunca iria permitir que me
reaproximasse de ti, e tu talvez até já me tivesses esquecido. Foi muito
doloroso.
- Para mim também foi, acredita. A dor e a revolta consumiram-me
durante anos. Não consegui ter estabilidade emocional e se pensei alguma vez
resignar-me, foi a maior asneira que fiz. Portanto, está à vista...
Fernando pegou na guitarra e aos
primeiros acordes as lágrimas começaram a correr dos olhos de ambos. Sim, tinha
sido aquela canção a banda sonora do
início da sua paixão. Se dúvidas restavam, estavam dissipadas: metades perfeitas…
Isabel e Fernando
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