Já não sei quantas vezes acendi a
luz para ver as horas. Horas lentas numa noite interminável … Disseste-me que
virias ao início do serão. Tenho-te aguardado naquela ânsia de te tocar, de te
olhar, de sentir o teu cheiro, e de profundamente te amar.
Prisioneiro dentro do meu próprio
eu, sinto-me desgraçado na tua ausência.
Habituaste-me ao teu calor, ao
toque suave da tua pele, às conversas intermináveis, enfim… habituaste-me a ti.
Lembro-me do nosso primeiro
encontro. Mero acaso. Eu descia a rua em direcção a casa, aborrecido e frustrado por não ter conseguido
escrever o artigo com que me comprometera para o jornal. Certo que o tema que
me tinham dado, não tinha muito a ver comigo, mas o simples acto de criar
escrita, obriga a que nos projectemos e vejamos além. Tinha-me dado uma branca,
e não conseguia escrever uma única frase que fosse coerente. De irritado que
estava, ao tropeçar numa pedra mais saliente, atirei com o caderno onde
esboçava os rascunhos. Quis não o apanhar do chão. Quis que aquela nuvem que me
bloqueava, e que para mim tudo tinha a ver com o caderno, desaparecesse de vez.
Talvez não devesse ter aceite o convite do Daniel. Talvez tivesse sido
preferível continuar a ser um mero funcionário dos correios, ordenado no final
do mês, horário fixo, e ter uma vida pacata e acomodada à minha condição. Não
era de todo um dos meus melhores dias...
Cruzaste-te comigo e rapidamente resgataste o caderno do passeio húmido
e escorregadio. Ficámos presos no olhar. Agradeci-te e lembro-me de te ter dito
que não valia a pena teres apanhado o caderno. Que não continha nada a não ser
frases sem nexo. “ O sentido das frases e das palavras é subjectivo”,
retorquiste. “Por vezes é do caos e da desorganização que surgem as grandes
ideias”, acrescentaste. “Pense nisso”, e seguiste o teu caminho. Fiquei a
olhar-te. O caos? Caos era o que eu sentia naquele momento, e a palavra ficou a
batucar-me no cérebro, qual pêndulo … caos… caos … caos…
Nessa noite sonhei contigo. Não
me perguntes porquê. Há coisas que são maiores do que nós. Sonhei ver-te no
mesmo sítio e entregares-me um caderno completamente escrito. Era a tua letra.
Eram as tuas palavras, as tuas frases. No início e no final a frase “ o desabrochar dos nossos
caos”...Acordei transpirado, desorientado. Percebi então que tudo não passava
de um sonho. Levantei-me, e ao passar pelo espelho fiquei a olhar-me. Nunca
passo mais do que quatro ou cinco segundos frente a um espelho, a não ser para
fazer a barba. Por norma não gosto de espelhos.
Aquela contemplação de mim mesmo,
fez-me questionar. Quem, o quê, como, porquê… uma imensidão de perguntas que me
coloquei e para as quais tentei arranjar uma reposta, ou talvez um
incentivo. Se voltasse a encontrar-te
falaríamos sobre o caos.
Não dormi mais nessa noite.
Peguei no caderno e na caneta, e foi como se de repente todas as ideias
fluissem, organizadas, metódicas e coerentes. Escrevi o meu artigo de uma
assentada. Li, revi, passei para o pc e enviei para o jornal. Estava-te grato,
tão grato que tive vontade de te escrever um poema…
Não nego que fiz de tudo para
voltar a encontrar-te. Afinal a vila não é grande, e existia essa
possibilidade. Em vão. Nem sinal de ti, até ao dia em que entraste nos correios
para levantar uma encomenda. Estremeci. Sem querer mostrar a minha surpresa, a
minha alegria, e ao mesmo tempo a minha atrapalhação, cumpri todo o protocolo
do atendimento. No final, não resisti: “ Fátima, tenho que lhe agradecer pelo
outro dia. Lembra-se de mim? Apanhou do chão um caderno que tinha acabado o seu
percurso… “. “Claro que sim! Estava a pensar que já tínhamos falado, e ia
precisamente perguntar-lhe se devolveu vida ao caderno?”
Ousei convidar-te para um café ao
final da tarde. Tinha tanto para te contar …
Falámos imenso tempo. A tua
inteligência cativou-me. Era fácil estar na tua companhia. Alguém a quem a vida
moldou, mas que se impunha às situações com uma sobranceria tão elegante, quão
elegante era todo o teu ser.
Continuámos a encontrar-nos nos
finais de tarde, após o teu regresso da faculdade. A minha vida tomou um único
sentido: tu. Lentamente fui-me construindo
a gravitar em torno de ti. Se me pedisses a maior das enormidades,
fá-lo-ia por ti. Amava-te intensamente e mal podia esperar pelo próximo
encontro. Tu, por vezes parecias distante, facto que eu relacionava com o
stress do estudo, outras vezes, eras a perfeita musa que descrevi no tal poema
e que te ofereci na noite no nosso primeiro encontro íntimo. Uma
inevitabilidade.
Os meses sucederam-se e junto a
ti sentia-me ancorado. Inseguro e desgraçado quando não podias vir. A prisão
que eu próprio havia criado, iria levar-me para a antecâmara da loucura, sem
sentido e sem nexo.
Percebo hoje o quanto fui
possessivo, obcecado e egoísta. Se te aguardo nesta inquietação, é porque te
amo e te quero, mais do que tudo na
vida, mas é também porque quero dizer-te que mais uma vez o caos cumpriu o seu
papel, ao fazer-me perceber que estava no caminho errado.
Já não sei quantas vezes acendi a
luz para ver as horas, e percebo agora que tu já não vens…
Paulo e Fátima
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