Vinte e uma horas e trinta de um vazio que lhe era já
familiar.
Tinha sido mais um daqueles dias
perfeitamente alucinados, por entre telefonemas, mails, reuniões, assuntos
complexos para tomar decisões, já para não falar dos filhos e das respectivas
vidas, e da habitual visita a casa dos pais, antes de descalçar os sapatos e mudar de
roupa.
Vestida de uma outra pele
recostou-se no sofá. Exausta. Os dias já não eram mais do que um somatório de
obrigações, deveres, dar resposta a solicitações, acorrer às múltiplas
situações para que era requisitada, sem ter tempo para pausar sequer. Verdade
que sempre se mostrou disponível para ajudar, para colaborar, e se algumas
vezes pensou escusar-se a alguns desafios, outras tantas vezes, era de si que
partiam as ideias que empenhadamente
punha em prática. O certo é que ultimamente se sentia desgastada e cansada.
Eram anos seguidos a manter o mesmo ritmo, com preocupações e responsabilidades
acrescidas, às quais o seu sentido perfeccionista, estético e exigente , colocava sempre num patamar
acima. Sabia que conseguia fazer bem feito, por isso a inquietação que a
habitava, não lhe dava espaço para erros.
Há já alguns dias que andava
pensativa, algo melancólica, misto de realidade e interrogação. Os serões
começaram a ter um peso diferente no seu estar, como diferente começou a
sentir-se. Não era já a conversa com os amigos que lhe animava o final do dia.
Muito menos a televisão, que ligava apenas para ver o noticiário. Talvez uma
música suave que lhe apaziguasse a alma e lhe fizesse descansar a mente.
“Cuidado com os vazios de uma
vida cheia demais”… tinha-lhe dito um amigo há dias, quando tomaram um café a
correr, notando-lhe sinais de desgaste, de pressão e de alguma solidão.
Fez um chá e retornou ao sofá.
Aconchegou-se na manta e ficou a ouvir o silêncio. O seu e o da casa. Recordou
as palavras de Rui. Tão verdadeiras lhe pareciam… De facto tinha uma vida
preenchida em questão de horários. Em
termos profissionais tinha inteira dedicação e somava horas de trabalho nos
projectos em que se envolvia. A família, cujo bem estar sempre fora o seu
principal objectivo, e a quem dedicou toda uma vida, que conseguiu conciliar
com tudo o resto, absorvia-lhe grande
parte do tempo disponível, já que sempre fora a âncora emocional, materna e
lúdica daquela casa. Nas poucas horas de lazer, procurava outros projectos que
a completassem em termos interiores, já que a frieza empresarial não lhe
permitia enfatizar a sua parte emocional e relacional, tão importantes à alma
humana. Era nesta vertente que cruzava os caminhos dos amigos, com quem privava
quando possível, com quem assistia a espectáculos e com quem viajava, se bem
que cada vez menos.
No silêncio da sua conversa
consigo própria, percebeu estar esgotada, vazia. Vazia de uma vida cheia, que
não lhe deixava espaço para se encontrar consigo. Os filhos haviam crescido, e
mantendo-se a preocupação sobre si próprios e sobre as suas vidas, tinham
seguido o seu caminho. A casa parecia-lhe enorme, de tão vazia de gente. E se o
silêncio era bem vindo e a acompanhava, era esse mesmo silêncio que a fazia
despertar para a realidade em que vivia. Deu-se conta que a pressão que lhe
impunham e que ela mesma se impunha, era uma má companhia. Teve vontade de
fugir, de partir para longe, sem telefone, sem internet, apenas partir para
onde pudesse reencontrar-se. Sentia uma dor enorme, que não conseguia explicar.
Sempre na vida fizera tudo com convicção, com a perfeição que lhe era característica
e onde nada podia falhar. Sentia-se bem ao ver à sua volta rostos alegres,
realizados, muito pela sua ajuda. Sentia-se bem ao perceber que os valores
transmitidos aos filhos tinham dado os seus frutos. Sentia-se bem por sentir
que cuidava dos pais o melhor que podia e sabia. Sentia-se bem por ter ajudado
a criar projectos de vida. Todos a consideravam uma espécie de mulher de ferro,
que tudo aguentava e a que nada amedrontava. Só não aguentava a dor que começava a
consumi-la, silenciosa…
Partir seria a solução?
Conseguiria de facto desligar-se de uma vida tão intensa, que nem lhe deixava
tempo para uns laivos de romance?
Os pensamentos sucediam-se,
frenéticos, em corropio. Mais uma caneca de chá e uma música calma como
companhia. O telefone tocou. Decidiu não atender. Voltou a tocar e de novo não
atendeu. Sucederam-se mensagens que não leu. Afinal era possível parar o tempo,
passar as urgências a não urgências, perceber que a pressa também pode ser
repouso, e que nessas circunstâncias, a vida não acabou.
“Um Lugar” era a música que
tocava. As teclas, suaves, transportavam-na numa viagem emocional e de alma, na
procura do seu Lugar…
Maria
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