quinta-feira, 23 de julho de 2020

Vazio Das Vinte e Uma e Trinta


Vinte e uma horas e trinta de um vazio que lhe era já familiar.
Tinha sido mais um daqueles dias perfeitamente alucinados, por entre telefonemas, mails, reuniões, assuntos complexos para tomar decisões, já para não falar dos filhos e das respectivas vidas, e da habitual visita a casa dos pais,  antes de descalçar os sapatos e mudar de roupa.
Vestida de uma outra pele recostou-se no sofá. Exausta. Os dias já não eram mais do que um somatório de obrigações, deveres, dar resposta a solicitações, acorrer às múltiplas situações para que era requisitada, sem ter tempo para pausar sequer. Verdade que sempre se mostrou disponível para ajudar, para colaborar, e se algumas vezes pensou escusar-se a alguns desafios, outras tantas vezes, era de si que partiam as ideias  que empenhadamente punha em prática. O certo é que ultimamente se sentia desgastada e cansada. Eram anos seguidos a manter o mesmo ritmo, com preocupações e responsabilidades acrescidas, às quais o seu sentido perfeccionista, estético  e exigente , colocava sempre num patamar acima. Sabia que conseguia fazer bem feito, por isso a inquietação que a habitava, não lhe dava espaço para erros.
Há já alguns dias que andava pensativa, algo melancólica, misto de realidade e interrogação. Os serões começaram a ter um peso diferente no seu estar, como diferente começou a sentir-se. Não era já a conversa com os amigos que lhe animava o final do dia. Muito menos a televisão, que ligava apenas para ver o noticiário. Talvez uma música suave que lhe apaziguasse a alma e lhe fizesse descansar a mente. 
“Cuidado com os vazios de uma vida cheia demais”… tinha-lhe dito um amigo há dias, quando tomaram um café a correr, notando-lhe sinais de desgaste, de pressão e de alguma solidão.
Fez um chá e retornou ao sofá. Aconchegou-se na manta e ficou a ouvir o silêncio. O seu e o da casa. Recordou as palavras de Rui. Tão verdadeiras lhe pareciam… De facto tinha uma vida preenchida em questão de horários.  Em termos profissionais tinha inteira dedicação e somava horas de trabalho nos projectos em que se envolvia. A família, cujo bem estar sempre fora o seu principal objectivo, e a quem dedicou toda uma vida, que conseguiu conciliar com tudo o resto,  absorvia-lhe grande parte do tempo disponível, já que sempre fora a âncora emocional, materna e lúdica daquela casa. Nas poucas horas de lazer, procurava outros projectos que a completassem em termos interiores, já que a frieza empresarial não lhe permitia enfatizar a sua parte emocional e relacional, tão importantes à alma humana. Era nesta vertente que cruzava os caminhos dos amigos, com quem privava quando possível, com quem assistia a espectáculos e com quem viajava, se bem que cada vez menos.
No silêncio da sua conversa consigo própria, percebeu estar esgotada, vazia. Vazia de uma vida cheia, que não lhe deixava espaço para se encontrar consigo. Os filhos haviam crescido, e mantendo-se a preocupação sobre si próprios e sobre as suas vidas, tinham seguido o seu caminho. A casa parecia-lhe enorme, de tão vazia de gente. E se o silêncio era bem vindo e a acompanhava, era esse mesmo silêncio que a fazia despertar para a realidade em que vivia. Deu-se conta que a pressão que lhe impunham e que ela mesma se impunha, era uma má companhia. Teve vontade de fugir, de partir para longe, sem telefone, sem internet, apenas partir para onde pudesse reencontrar-se. Sentia uma dor enorme, que não conseguia explicar. Sempre na vida fizera tudo com convicção, com a perfeição que lhe era característica e onde nada podia falhar. Sentia-se bem ao ver à sua volta rostos alegres, realizados, muito pela sua ajuda. Sentia-se bem ao perceber que os valores transmitidos aos filhos tinham dado os seus frutos. Sentia-se bem por sentir que cuidava dos pais o melhor que podia e sabia. Sentia-se bem por ter ajudado a criar projectos de vida. Todos a consideravam uma espécie de mulher de ferro, que tudo aguentava e a que nada amedrontava.  Só não aguentava a dor que começava a consumi-la, silenciosa…
Partir seria a solução? Conseguiria de facto desligar-se de uma vida tão intensa, que nem lhe deixava tempo para uns laivos de romance?
Os pensamentos sucediam-se, frenéticos, em corropio. Mais uma caneca de chá e uma música calma como companhia. O telefone tocou. Decidiu não atender. Voltou a tocar e de novo não atendeu. Sucederam-se mensagens que não leu. Afinal era possível parar o tempo, passar as urgências a não urgências, perceber que a pressa também pode ser repouso, e que nessas circunstâncias, a vida não acabou.
“Um Lugar” era a música que tocava. As teclas, suaves, transportavam-na numa viagem emocional e de alma, na procura do seu Lugar…
Maria

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